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dezembro 03, 2024

A Herança (2024)

 


Título original: A Herança
Direção: João Cândido Zacharias
Sinopse: Ao saber da morte de sua mãe, Thomas retorna ao Brasil com seu namorado, Beni. Ele fica sabendo a existência de uma casa no interior que pertenceu a uma avó que nunca chegou a conhecer. Movidos pela curiosidade quanto ao seu passado familiar, eles decidem visitar a casa, onde são recebidos por duas senhoras, tias de Thomas, que o tratam como um filho perdido que finalmente volta ao lar. À medida que Thomas vai ficando mais encantado com o lugar, Beni começa a desconfiar que algo macabro se esconde por debaixo daquela fachada de vida tranquila do interior.


João Cândido Zacharias surpreende com sua estreia em longas-metragens ao entregar A Herança, um filme que explora o suspense psicológico com uma abordagem refrescante, raríssima no cinema brasileiro contemporâneo. Em apenas 80 minutos, o diretor consegue condensar uma narrativa tensa e inquietante, com doses equilibradas de mistério e terror psicológico, provando que menos é mais.

A história é centrada em Thomas (Diego Montez), que retorna ao Brasil vindo da gelada Berlim, acompanhado de seu companheiro Beni (Yohan Levy). Ao herdar a fazenda “Dores Felizes” de sua avó, Thomas é recebido por duas tias idosas (vividas por Analú Prestes e Cristina Pereira). O nome da propriedade já prenuncia a ironia da situação, pois logo se torna um palco de tensões familiares, desconfianças e eventos sombrios.

A relação entre Thomas e Beni é explorada com sensibilidade, e a química entre os atores sustenta grande parte da carga emocional do filme. No entanto, o conflito se intensifica à medida que Thomas se deixa seduzir pelo encanto da propriedade e pela manipulação das tias, enquanto Beni, mais cético, percebe que algo não está certo. Essa divergência de perspectivas é central para a construção do suspense, permitindo ao público se identificar ora com o fascínio de Thomas, ora com a angústia de Beni.

Diego Montez (O Sequestro do Voo 375, O Rei da TV) brilha em sua interpretação de Thomas, trazendo uma performance contida e convincente. Seu olhar transmite a complexidade de um homem dividido entre o desejo de pertencer e a lealdade a seu parceiro. Yohan Levy, como Beni, complementa essa dinâmica com uma atuação igualmente sólida, demonstrando vulnerabilidade e determinação.

Por outro lado, as performances de Analú Prestes (Além do Horizonte, Cheias de Charme) e Cristina Pereira (De Pernas Pro Ar, Trair e Coçar É Só Começar) como as tias são um ponto mais frágil. Embora suas personagens tenham um papel crucial na trama, suas atuações tendem ao exagero, beirando o caricatural em alguns momentos, o que pode quebrar a imersão.

Zacharias mostra um domínio surpreendente do cinema de gênero, inspirando-se mais no suspense do que no terror explícito. Sua direção é minimalista, apostando em atmosferas densas e na sugestão em vez da exposição. Isso fica evidente na transição entre os cenários: da fria e moderna Berlim para o ambiente decadente e opressivo da fazenda brasileira. A disparidade entre os dois mundos é explorada visualmente com maestria, ressaltando o desconforto do deslocamento.

Além disso, o diretor imprime uma assinatura única ao filme, trazendo sua sensibilidade pessoal e estética apurada – ele mencionou que sua experiência de luto durante o desenvolvimento do roteiro foi crucial para a autenticidade emocional do filme. Essa profundidade é evidente na narrativa e na direção de atores, criando personagens tridimensionais e envolventes. É raro encontrar um filme de terror que equilibre tão bem o entretenimento e a exploração psicológica.

A produção, liderada pela Bubbles Project em parceria com a Sony Pictures International, contou com a colaboração de um elenco e uma equipe técnica de destaque. A integração de talentos internacionais e nacionais elevou a qualidade do projeto, resultando em uma obra que dialoga com padrões globais do cinema de terror.

 A trilha sonora de Bernardo Uzeda (Medusa, Minha Mãe É uma Peça 3) merece destaque especial. Simples e eficiente, ela evita os clichês típicos de filmes de terror, preferindo criar tensão por meio de sons sutis e atmosferas sonoras. Já o trabalho de Gustavo Loureiro (Medusa, Vizinhos) na edição de som é notável por sua atenção aos detalhes, como os sons de passos, portas rangendo – em uma excelente distribuição sonora na sala de cinema – e, em especial que me marcou, o efeito sonoro grotesco de uma fatia de bolo com ingredientes questionáveis, que deixa o espectador arrepiado, pois havíamos finalmente visto a origem de bolo tão “gostoso” feito por Tia Berta. Inclusive essa sequência do porão, do queijo, do bolo, de como Beni realmente vê as coisas que estão ocorrendo em Dores Felizes é um excelente símbolo desses raros momentos no cinema de terror no geral e no cinema nacional em especial: o grotesco está nas pequenas coisas e não nas grandes perseguições ou muito sangue em tela como tende a acontecer.

O design de produção, assinado por uma equipe minuciosa, é um dos pontos altos de A Herança. A casa, cenário central, funciona quase como um personagem, com seu estilo arquitetônico e detalhes meticulosamente planejados para evocar uma atmosfera de opressão e mistério. A iluminação utiliza sombras e contrastes para amplificar a sensação de inquietação, enquanto a trilha sonora complementa o suspense sem jamais se sobrepor à narrativa.

A fotografia de Guilherme Tostes (Madalena, Obsessão), especialmente em cenas noturnas, combina um tom claustrofóbico com uma beleza gótica, algo raramente visto no cinema nacional. Cada enquadramento é cuidadosamente pensado para transmitir o isolamento dos protagonistas e a presença quase tangível de algo maligno, sem nunca mostrar além do estritamente necessário que o espectador realmente precisa enxergar. São diversos planos belíssimos durante o filme, especialmente em jogos de luz e sombra que evocam muitos clássicos do expressionismo alemão.

Se há um ponto que enfraquece o impacto de A Herança, é o uso de CGI no clímax. Embora o filme construa tensão de forma exemplar ao longo de seus primeiros dois atos, o recurso digital no final parece desnecessário e até deslocado, considerando a sutileza predominante até então. Um desfecho mais sutil e menos gráfico teria sido mais coerente com o restante da obra.

Além de funcionar como um suspense psicológico, A Herança oferece uma camada de crítica social. A manipulação de Thomas pelas tias reflete uma crítica ao “mito da família” e à forma como laços de sangue podem ser usados para alienar indivíduos, o que também deixa desconfortável grande parte dos espectadores queer do longa – a identificação mais que pessoal com diversas cenas é inevitável. O culto bizarro que permeia a narrativa também serve como metáfora para a influência opressora de certas crenças religiosas, que podem levar as pessoas a rejeitar aqueles que realmente as amam. Exatamente nessa parte do culto é que vemos uma das partes mais perniciosas de A Herança (no bom sentido), com cenas gráficas na medida e uma nada sutil (e gráfica) representação da malevolência da heteronormatividade.

Essa combinação de temas tão absurdamente diferentes em um longa não tão longo assim faz de A Herança uma obra que transcende o gênero, convidando o público a refletir sobre questões profundas, mesmo após os créditos finais.

Outro mérito do filme é sua produção independente, financiada por recursos privados. Em um cenário dominado por projetos patrocinados por leis de incentivo, A Herança representa uma lufada de ar fresco para o cinema nacional, mostrando que é possível criar obras originais e impactantes fora do circuito tradicional. Infelizmente, a distribuição limitada do filme em poucas salas e horários restringe seu alcance. É lamentável que uma obra tão singular não receba a visibilidade que merece, especialmente em um mercado ávido por novidades.

A Herança é uma prova do potencial inexplorado do cinema brasileiro no suspense psicológico. Com uma direção segura, atuações marcantes e uma narrativa instigante, João Cândido Zacharias entrega um filme que merece ser celebrado. Apesar de alguns poucos deslizes citados, a obra é um marco, tanto pelo que representa para o gênero quanto pelo que sugere para o futuro do cinema nacional. Que venham mais heranças criativas como esta!

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