João Cândido Zacharias surpreende
com sua estreia em longas-metragens ao entregar A Herança, um filme que
explora o suspense psicológico com uma abordagem refrescante, raríssima no
cinema brasileiro contemporâneo. Em apenas 80 minutos, o diretor consegue
condensar uma narrativa tensa e inquietante, com doses equilibradas de mistério
e terror psicológico, provando que menos é mais.
A história é centrada em Thomas
(Diego Montez), que retorna ao Brasil vindo da gelada Berlim, acompanhado de
seu companheiro Beni (Yohan Levy). Ao herdar a fazenda “Dores Felizes” de sua
avó, Thomas é recebido por duas tias idosas (vividas por Analú Prestes e
Cristina Pereira). O nome da propriedade já prenuncia a ironia da situação,
pois logo se torna um palco de tensões familiares, desconfianças e eventos
sombrios.
A relação entre Thomas e Beni é
explorada com sensibilidade, e a química entre os atores sustenta grande parte
da carga emocional do filme. No entanto, o conflito se intensifica à medida que
Thomas se deixa seduzir pelo encanto da propriedade e pela manipulação das
tias, enquanto Beni, mais cético, percebe que algo não está certo. Essa
divergência de perspectivas é central para a construção do suspense, permitindo
ao público se identificar ora com o fascínio de Thomas, ora com a angústia de
Beni.
Diego Montez (O Sequestro do Voo 375, O Rei da TV) brilha
em sua interpretação de Thomas, trazendo uma performance contida e convincente.
Seu olhar transmite a complexidade de um homem dividido entre o desejo de
pertencer e a lealdade a seu parceiro. Yohan Levy, como Beni, complementa essa
dinâmica com uma atuação igualmente sólida, demonstrando vulnerabilidade e
determinação.
Por outro lado, as performances
de Analú Prestes (Além do Horizonte,
Cheias de Charme) e Cristina Pereira (De
Pernas Pro Ar, Trair e Coçar É Só Começar) como as tias são um ponto mais
frágil. Embora suas personagens tenham um papel crucial na trama, suas atuações
tendem ao exagero, beirando o caricatural em alguns momentos, o que pode
quebrar a imersão.
Zacharias mostra um domínio
surpreendente do cinema de gênero, inspirando-se mais no suspense do que no
terror explícito. Sua direção é minimalista, apostando em atmosferas densas e
na sugestão em vez da exposição. Isso fica evidente na transição entre os
cenários: da fria e moderna Berlim para o ambiente decadente e opressivo da
fazenda brasileira. A disparidade entre os dois mundos é explorada visualmente
com maestria, ressaltando o desconforto do deslocamento.
Além disso, o diretor imprime uma assinatura única ao filme, trazendo sua
sensibilidade pessoal e estética apurada – ele mencionou que sua experiência de
luto durante o desenvolvimento do roteiro foi crucial para a autenticidade
emocional do filme. Essa profundidade é evidente na narrativa e na direção de
atores, criando personagens tridimensionais e envolventes. É raro encontrar um
filme de terror que equilibre tão bem o entretenimento e a exploração
psicológica.
A produção, liderada pela Bubbles Project em parceria com a Sony Pictures
International, contou com a colaboração de um elenco e uma equipe técnica de
destaque. A integração de talentos internacionais e nacionais elevou a
qualidade do projeto, resultando em uma obra que dialoga com padrões globais do
cinema de terror.
A trilha sonora de Bernardo Uzeda
(Medusa, Minha Mãe É uma Peça 3) merece
destaque especial. Simples e eficiente, ela evita os clichês típicos de filmes
de terror, preferindo criar tensão por meio de sons sutis e atmosferas sonoras.
Já o trabalho de Gustavo Loureiro (Medusa,
Vizinhos) na edição de som é notável por sua atenção aos detalhes, como os
sons de passos, portas rangendo – em uma excelente distribuição sonora na sala
de cinema – e, em especial que me marcou, o efeito sonoro grotesco de uma fatia
de bolo com ingredientes questionáveis, que deixa o espectador arrepiado, pois
havíamos finalmente visto a origem de bolo tão “gostoso” feito por Tia Berta.
Inclusive essa sequência do porão, do queijo, do bolo, de como Beni realmente
vê as coisas que estão ocorrendo em Dores Felizes é um excelente símbolo desses
raros momentos no cinema de terror no geral e no cinema nacional em especial: o
grotesco está nas pequenas coisas e não nas grandes perseguições ou muito
sangue em tela como tende a acontecer.
O design de produção, assinado por uma equipe minuciosa, é um dos pontos
altos de A Herança. A casa, cenário central, funciona quase como um
personagem, com seu estilo arquitetônico e detalhes meticulosamente planejados
para evocar uma atmosfera de opressão e mistério. A iluminação utiliza sombras
e contrastes para amplificar a sensação de inquietação, enquanto a trilha
sonora complementa o suspense sem jamais se sobrepor à narrativa.
A fotografia de Guilherme Tostes (Madalena,
Obsessão), especialmente em cenas noturnas, combina um tom claustrofóbico
com uma beleza gótica, algo raramente visto no cinema nacional. Cada
enquadramento é cuidadosamente pensado para transmitir o isolamento dos
protagonistas e a presença quase tangível de algo maligno, sem nunca mostrar além
do estritamente necessário que o espectador realmente precisa enxergar. São
diversos planos belíssimos durante o filme, especialmente em jogos de luz e
sombra que evocam muitos clássicos do expressionismo alemão.
Se há um ponto que enfraquece o
impacto de A Herança, é o uso de CGI no clímax. Embora o filme construa
tensão de forma exemplar ao longo de seus primeiros dois atos, o recurso digital
no final parece desnecessário e até deslocado, considerando a sutileza
predominante até então. Um desfecho mais sutil e menos gráfico teria sido mais
coerente com o restante da obra.
Além de funcionar como um
suspense psicológico, A Herança oferece uma camada de crítica social. A
manipulação de Thomas pelas tias reflete uma crítica ao “mito da família” e à
forma como laços de sangue podem ser usados para alienar indivíduos, o que
também deixa desconfortável grande parte dos espectadores queer do longa – a identificação mais que pessoal com diversas
cenas é inevitável. O culto bizarro que permeia a narrativa também serve como
metáfora para a influência opressora de certas crenças religiosas, que podem
levar as pessoas a rejeitar aqueles que realmente as amam. Exatamente nessa
parte do culto é que vemos uma das partes mais perniciosas de A Herança (no bom sentido), com cenas
gráficas na medida e uma nada sutil (e gráfica) representação da malevolência
da heteronormatividade.
Essa combinação de temas tão
absurdamente diferentes em um longa não tão longo assim faz de A Herança
uma obra que transcende o gênero, convidando o público a refletir sobre
questões profundas, mesmo após os créditos finais.
Outro mérito do filme é sua
produção independente, financiada por recursos privados. Em um cenário dominado
por projetos patrocinados por leis de incentivo, A Herança representa
uma lufada de ar fresco para o cinema nacional, mostrando que é possível criar
obras originais e impactantes fora do circuito tradicional. Infelizmente, a
distribuição limitada do filme em poucas salas e horários restringe seu
alcance. É lamentável que uma obra tão singular não receba a visibilidade que
merece, especialmente em um mercado ávido por novidades.
A Herança é uma prova do potencial
inexplorado do cinema brasileiro no suspense psicológico. Com uma direção
segura, atuações marcantes e uma narrativa instigante, João Cândido Zacharias
entrega um filme que merece ser celebrado. Apesar de alguns poucos deslizes
citados, a obra é um marco, tanto pelo que representa para o gênero quanto pelo
que sugere para o futuro do cinema nacional. Que venham mais heranças criativas
como esta!