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novembro 25, 2024

Emilia Pérez (2024)

 


Título original: Emilia Pérez
Direção: Jacques Audiard
Sinopse: No México, uma advogada recebe uma oferta inesperada para ajudar um temido chefe de cartel a se aposentar de seus negócios e desaparecer para sempre para que possa tornar a mulher que ela sempre sonhou em ser.


A carreira de Jacques Audiard é marcada por uma constante reinvenção. Desde De Tanto Bater, Meu Coração Parou (2005) até O Acontecimento (2021), ele nunca se prende a fórmulas predefinidas. Com Emilia Pérez (2024), o diretor francês mergulha em um território ainda mais experimental, ao combinar drama criminal, musical e comédia de forma ousada. O filme, centrado na história de Emilia Pérez, não apenas desafia as convenções de gênero como também os limites da narrativa cinematográfica tradicional, apresentando um resultado tão intrigante quanto polarizador.

Audiard demonstra uma direção impecavelmente calibrada, oferecendo um tom "suave", quase sereno, que contrasta com a excentricidade da história. Ele opta por uma abordagem que nunca impõe suas mensagens ao espectador; ao contrário, os eventos se desdobram de forma fluida, convidando o público a descobrir as complexidades emocionais e sociais que moldam a trama. Esse controle também reflete sua confiança em um elenco competente e em um roteiro que, embora incomum, possui uma base sólida para explorar temas contemporâneos e urgentes.

A direção de fotografia de Yves Cape é um ponto-chave no sucesso visual do filme. Ela vai além de meramente capturar o espírito das periferias da Cidade do México; ela o vivifica. Ao focar nos pequenos detalhes — desde os mercados lotados até os clássicos anúncios de ferro velho "se compra lavadoras, refrigeradores, micro-ondas" que são onipresentes na capital mexicana —, o longa transporta o público para um espaço que é ao mesmo tempo íntimo e vastamente representativo.

A trama acompanha Emilia Pérez, interpretada por Karla Sofía Gascón, uma mulher trans que abandona sua vida de crimes para buscar uma segunda chance. Sua transição de gênero não é apenas um ponto narrativo, mas também um reflexo das complexas dinâmicas de identidade e aceitação que a personagem enfrenta. Porém, a história vai além de seu caráter pessoal, inserindo Emilia em um enredo que combina dilemas morais e desafios emocionais de forma incomum, até mesmo excêntrica.

Inicialmente, o roteiro parece um tanto esdrúxulo, quase beirando o absurdo. No entanto, à medida que o filme avança, essa estranheza se revela não só deliberada, mas essencial para a jornada emocional de Emilia. Há momentos em que a narrativa caminha na linha tênue entre o surreal e o profundamente humano, tornando-se uma experiência singular que provoca reflexão e empatia.

O destaque do elenco vai para Karla Sofía Gascón, cuja performance transcende clichês e oferece uma representação sincera e multifacetada de Emilia. Gascón encarna a vulnerabilidade e a força de uma personagem que luta para reconciliar suas escolhas passadas com um futuro incerto. Sua Emilia é sempre "incompleta", como ela mesma admite em uma das falas mais marcantes do filme, cantando sobre como se sente "metades de tudo".

Zoe Saldaña também entrega uma performance notável como Rita, a advogada que navega entre suas próprias contradições morais. Sua química com Gascón é palpável e traz um contraste necessário à exuberância da narrativa. Já Selena Gomez, como Jessi Del Monte, é talvez o maior ponto de discussão. Embora sua atuação seja competente, o sotaque americano no espanhol soa deslocado. Além disso, considerando o potencial vocal da artista, é lamentável que Gomez tenha apenas um momento musical de destaque, deixando a impressão de que ela foi subaproveitada.

Como musical, Emilia Pérez se destaca por sua trilha sonora marcante, mas enfrenta desafios na execução de algumas sequências. A música "Las Damas Que Pasan", em particular, é um momento brilhante, impregnado de melancolia e ressonância emocional, que perdura muito além dos créditos finais.

No entanto, as cenas coreografadas nem sempre atingem o mesmo nível de impacto. Enquanto a dança adiciona uma dimensão visualmente rica, algumas sequências parecem excessivamente estilizadas, afastando o público da história em vez de imergi-lo nela. Esse desequilíbrio faz com que a experiência musical oscile entre o sublime e o dispersivo.

A ambientação é, sem dúvida, um dos aspectos mais cativantes do filme. Audiard e sua equipe criativa capturam a essência das periferias da Cidade do México de forma que se aproxima do documental. Para espectadores que já visitaram ou vivenciaram esse ambiente, há um imediatismo que evoca lembranças e uma conexão visceral. Essa autenticidade não é apenas visual; ela permeia o próprio tecido narrativo, tornando o México não apenas um cenário, mas um personagem vivo na história.

Emilia Pérez é um produto profundamente contemporâneo, lidando com questões de gênero, identidade e pertencimento que ressoam nas redes sociais e no discurso público atual. No entanto, não é um filme para todos. Sua estrutura narrativa pouco convencional, combinada com temas provocativos, pode alienar aqueles que buscam um entretenimento mais acessível.

Ainda assim, o filme conquista com um final extraordinário, que sintetiza sua mensagem de forma magistral. Em última análise, Emilia Pérez não é apenas um filme; é uma experiência, um desafio e, para os espectadores dispostos a abraçar sua singularidade, uma recompensa cinematográfica como poucas em 2024. Jacques Audiard nos lembra que o cinema ainda tem o poder de surpreender, incomodar e emocionar — tudo isso em um só espetáculo. Com Emilia Pérez, Audiard adiciona mais uma peça intrigante à sua filmografia, provando que ousar ainda é possível, mesmo em tempos de saturação narrativa.

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