Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles e baseado na história de Eunice Paiva e sua luta durante e após a ditadura militar, é a produção mais aguardada do ano no cinema brasileiro. No entanto, o filme se perde em um mar de pretensões artísticas, escolhas narrativas batidas que entediam parte do público (me encaixo aqui). O que poderia ser uma obra tocante e provocativa acaba como uma experiência cansativa e forçada, revelando os problemas recorrentes de um cinema que parece mais preocupado em atender padrões de festivais do que em criar algo genuinamente impactante.
A estrutura do filme é rigidamente dividida em três períodos: os anos de 1970/71, marcados pelo auge da repressão militar; 1996, com a descoberta oficial do destino de Rubens Paiva; e 2014, quando Eunice Paiva enfrenta os últimos anos de sua vida. Essa divisão, embora pareça funcional no papel, é executada com uma falta de originalidade impressionante, transformando cada ato em uma sucessão de clichês e momentos previsíveis (arcos dramáticos com início, meio e fim em cada ato). O filme parece desesperado para "ensinar" a história do regime militar para uma geração que, segundo a narrativa, ignora completamente os horrores do período. No entanto, essa tentativa de pedagogia histórica é feita de forma tão rasa que não educa nem emociona.
Os diálogos são tão explicativos que subestimam a inteligência do público. Não há espaço para sutileza ou interpretação — tudo é mastigado e entregue como se o espectador fosse incapaz de compreender qualquer nuance histórica ou emocional. A cena do recebimento da certidão de óbito de Rubens Paiva em 1996, por exemplo, é um exemplo claro do problema: ao invés de construir tensão ou explorar a complexidade emocional do momento, o filme simplesmente recria ipsis litteris o que já foi amplamente noticiado na época. Até o logotipo da Rede Globo aparece na tela, como se o filme não pudesse sobreviver sem uma muleta de reconhecimento visual.
Muito se fala de Fernanda Torres no papel de Eunice Paiva, mas sua performance é, no máximo, mediana. Torres, conhecida por seu talento em comédias e papéis mais leves, parece completamente deslocada aqui (para mim, ela está muito melhor até na simpática série Tapas e Beijos). Sua interpretação se limita a uma única expressão: um olhar melancólico e distante que não varia ao longo de todo o filme. Isso é especialmente problemático nas cenas que deveriam ser o coração emocional da história, como os interrogatórios. Em uma das sequências mais esperadas do filme, o confronto entre Eunice e os militares deveria ser um momento de tensão sufocante. No entanto, a falta de energia de Torres (em conjunto com o roteiro pífio) transforma a cena em um exercício entediante de diálogo burocrático, sem qualquer resquício de perigo ou emoção.
Além de Fernanda Torres, o filme desperdiça completamente Selton Mello no papel de Rubens Paiva. Sua presença é tão breve e desprovida de profundidade que seu desaparecimento, embora trágico na história real, mal ressoa na narrativa. Já Fernanda Montenegro, um dos maiores nomes do cinema brasileiro, é reduzida a um papel simbólico e constrangedor no ato final. Sua aparição como a Eunice Paiva idosa não passa de uma figura imóvel e quase caricatural, uma escolha que sublinha a incapacidade do filme de explorar o potencial de seus atores veteranos.
Tecnicamente, Ainda Estou Aqui apresenta uma fotografia competente, mas previsível, que utiliza sombras e luzes para simbolizar o medo e a esperança. Embora esteticamente agradável, essa abordagem é superficial e não consegue compensar os problemas narrativos, além de já ter sido utilizada à exaustão em outros longas do diretor. A trilha sonora, por sua vez, é um desastre. Repleta de músicas de artistas consagrados como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Roberto Carlos, ela é usada de maneira tão insistente e óbvia que acaba se tornando irritante. A música, ao invés de enriquecer a narrativa, parece uma tentativa preguiçosa de evocar nostalgia e validar o "clima de época" do filme. Planos desnecessários de discos sendo trocados na vitrola somente para ilustrar as capas e tocar mais uma música para a plateia se tornam irritantes.
Um dos aspectos mais frustrantes do filme é sua abordagem política. Embora claramente crítico ao regime militar, Ainda Estou Aqui evita assumir qualquer posição mais contundente, optando por um tom conciliatório que soa falso e oportunista. É como se a produção estivesse desesperada para não alienar nenhum segmento do público, resultando em um discurso diluído que não faz jus à gravidade do tema.
Além disso, é mais da mesma premissa: "não existia outra opção a não ser comunista" durante o regime militar, se você fosse uma pessoa boa. Ser do governo, é ser sempre "malvado" (incluindo aqui aquele plano da foto do presidente Médici na parede - que "medo"), enquanto a família desfrutava de uma boa vida capitalista, com viagens para Londres, relacionamentos com a elite, uma casa de frente para a Avenida Atlântica em Copacabana, libras e dólares guardados em casa... ou seja, um espelho da família milionária de Walter Salles: rica na ditadura, onde era "cool" ser comunista, desde que você usufrua ao máximo do que o governo tem a oferecer - dólares no bolso para realizar um filme sobre uma história banal direcionada para aparecer em festivais de cinema pela Europa, pelo tapete vermelho do Oscar e demais premiações. Vermelho de sangue? Não, vermelho vil de escarlate de onde esses pretensiosos cineastas aplaudidos cegamente por tudo que fazem estão. Vermelhos e escarlate do distrito da luz vermelha, talvez.
Em última análise, Ainda Estou Aqui é uma decepção monumental. O que poderia ter sido um retrato poderoso da resistência e do sofrimento de alguns durante o regime militar se transforma em um filme arrastado, pretensioso e emocionalmente vazio. Walter Salles, que já demonstrou ser um cineasta de grande talento para a maior parcela da população (eu pessoalmente detesto os longas do diretor), entrega aqui uma obra que parece mais preocupada em agradar jurados de festivais do que em contar uma história com alma e autenticidade, tal como foi com Central do Brasil.
Se você procura um filme que realmente explore os tais "horrores do regime" com coragem e profundidade, Ainda Estou Aqui não é a escolha. Para quem quer conhecer a história de Eunice Paiva, talvez seja melhor recorrer a um documentário ou às próprias memórias de Marcelo Rubens Paiva. O cinema, neste caso, falhou em transformar uma história real e poderosa em uma obra cinematográfica digna de nota.
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