Ao visitar o cinema de vanguarda dos anos 1920, poucos filmes têm o peso histórico e a ousadia estética de A Sorridente Madame Beudet. Dirigido por Germaine Dulac, uma das pioneiras do cinema surrealista e feminista, o filme nos transporta ao mundo de uma mulher presa em um casamento infeliz. Embora o filme seja lembrado principalmente por seu estilo inovador e seus temas progressistas, ele nos deixa também com uma sensação de que, apesar do experimentalismo, a narrativa parece excessivamente restrita, quase presa em si mesma.
A Sorridente Madame Beudet é um retrato íntimo de Madame Beudet (interpretada por Germaine Dermoz), uma mulher de classe média aprisionada em um casamento sem amor com Monsieur Beudet (interpretado por Alexandre Arquillière). A trama é aparentemente simples: enquanto Madame Beudet sonha em se libertar das amarras domésticas e emocionais, Monsieur Beudet, uma figura rude e insensível, insiste em sufocar esses desejos, muitas vezes zombando dela ou realizando atos irritantemente triviais, como fingir ameaçá-la com uma arma, que ele mantém em uma gaveta.
Esse jogo de poder entre o casal se intensifica quando Madame Beudet, em um ato de rebeldia silenciosa, decide sabotar a arma, alterando-a para disparar de verdade. O filme então constrói uma tensão crescente sobre essa arma — um verdadeiro “chekhoviano” que se desenrola diante dos nossos olhos.
Tecnicamente, Germaine Dulac utiliza com maestria o que viria a ser reconhecido como características distintivas do cinema impressionista francês. A fotografia, assinada por Paul Parguel, explora um jogo de luz e sombra cuidadosamente elaborado, com enquadramentos e ângulos de câmera que frequentemente se aproximam dos rostos dos personagens. Esse recurso, em especial, transforma o rosto de Madame Beudet em uma tela para suas angústias internas, destacando-se na maneira como a câmera examina suas emoções — sejam elas de frustração, resignação ou sonho.
Dulac também inova ao utilizar efeitos ópticos para representar os desejos reprimidos de sua protagonista. Em diversas cenas, vemos a subjetividade de Madame Beudet projetada através de distorções visuais e de sequências oníricas que se misturam à realidade. Esses elementos fazem parte de um movimento estético que buscava traduzir a vida interior dos personagens sem depender de diálogos extensos ou de um enredo complexo. A diretora leva o espectador para dentro da mente de Madame Beudet, em imagens que ecoam a profundidade de sua frustração.
Apesar da estética inovadora e dos temas progressistas, A Sorridente Madame Beudet apresenta limitações que se tornam evidentes na lentidão de sua narrativa. Dulac, ao focar em um estudo de personagem, parece por vezes obcecada em repetir os mesmos temas sem avançar significativamente na construção emocional. Isso faz com que o filme, em certos momentos, pareça menos uma narrativa envolvente e mais uma série de quadros belamente compostos, mas desconectados de uma progressão dramática mais coesa.
Os gestos simbólicos, como o hábito de Monsieur Beudet de brincar com a arma descarregada e a atitude de Madame Beudet ao manipulá-la para que se torne perigosa, são explorados com tanta insistência que acabam se tornando previsíveis. É como se o filme, ao repetir esses gestos e olhares, subestimasse a capacidade do espectador de captar o cerne da questão logo nas primeiras cenas. Em um curta-metragem, esse tipo de repetição talvez não causasse tanta estranheza, mas em uma obra com a duração de um longa mais substancial, essa insistência torna-se exaustiva e pode até alienar o espectador.
Por outro lado, não se pode negar o impacto cultural que o filme teve. Dulac, uma das raras mulheres a trabalhar na direção cinematográfica na década de 1920, abordou A Sorridente Madame Beudet como uma metáfora para a opressão feminina. Ela revela, de maneira sutil e poética, os efeitos psicológicos da reclusão e do desdém a que as mulheres estavam sujeitas em casamentos infelizes. Madame Beudet não é uma personagem revolucionária em atos grandiosos, mas em sua frustração silenciosa, ela representa a resistência feminina de uma forma que muitas outras obras da época não conseguiam ou ousavam mostrar.
Aqui, a diretora também faz uso de uma sensibilidade singular ao tratar da monotonia do cotidiano burguês, usando enquadramentos claustrofóbicos e cenários fechados para simbolizar a prisão em que Madame Beudet vive. Os trajes e adereços da protagonista são despojados de adornos, refletindo seu estado emocional e sua falta de esperança. Esse nível de atenção ao detalhe é um mérito inquestionável de Dulac, que confere à personagem uma humanidade tangível, ainda que limitada pela época em que foi concebida.
Apesar das limitações que a narrativa oferece, não há dúvida de que A Sorridente Madame Beudet ocupa um lugar significativo na história do cinema. Ele precede obras de outras diretoras e cineastas que explorariam as tensões psicológicas femininas, como Chantal Akerman e até Agnès Varda. Embora o filme não tenha o poder de cativar com a mesma intensidade que algumas dessas obras posteriores, é inegável que Germaine Dulac abriu portas importantes com essa narrativa.
Dulac desenvolve uma crítica ao modelo de casamento e à sociedade patriarcal de uma maneira quase subversiva para a época, algo que talvez passe despercebido à primeira vista. Não obstante, o filme carece de uma profundidade que sustente a atenção do público contemporâneo. As nuances da rebelião de Madame Beudet são repetidas em ciclos que acabam desgastando a percepção de urgência emocional que a obra tenta incutir.
A obra de Dulac, portanto, tem seu valor mais histórico do que propriamente narrativo. Se A Sorridente Madame Beudet não brilha como um triunfo cinematográfico perene, ele definitivamente serve como um registro da luta feminista de sua época e da coragem de uma cineasta que desafiava as convenções de um mundo dominado por homens. É uma peça para ser admirada por seus feitos técnicos e sua ousadia, mas que talvez não sobreviva à prova do tempo da mesma forma que outras obras-primas do cinema mudo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário