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novembro 30, 2024

Reagan (2024)

 


Título original: Reagan
Direção: Sean McNamara
Sinopse: Narrada pela perspectiva do ex-agente da KGB Viktor Petrovich, cuja vida se entrelaça de forma inescapável com a de Ronald Reagan quando este chamou a atenção dos soviéticos como ator em Hollywood, a história de Reagan mostra como ele superou as adversidades para se tornar o 40º presidente dos Estados Unidos.


Quando se trata de biografias cinematográficas de figuras políticas, o equilíbrio entre capturar o impacto histórico e explorar a complexidade pessoal é crucial. Infelizmente, Reagan (2024), dirigido por Sean McNamara, falha miseravelmente em ambas as frentes. O filme tenta narrar a vida e a carreira do 40º presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, mas o resultado é um trabalho que se assemelha mais a um panfleto promocional do que a uma cinebiografia séria. Com uma direção problemática, um roteiro simplista e escolhas criativas desastrosas, Reagan é um exemplo perfeito de como não se abordar uma figura tão marcante e controversa.

Sean McNamara, cuja filmografia inclui projetos de qualidade questionável como Soul Surfer (2011), parece ter adotado uma abordagem superficial e quase reverencial. A direção é marcada por escolhas de mau gosto, como a narração em off feita por Jon Voight, que interpreta um soviético fictício com uma admiração bizarra por Reagan. Além disso, a decisão de "rejuvenescer" digitalmente Voight com um CGI de baixíssima qualidade transforma cada cena em que ele aparece em um espetáculo desconfortável e involuntariamente cômico. A tentativa de dar ao filme uma aura épica fracassa, e o que sobra é uma narrativa que parece mais um telefilme datado do que uma produção cinematográfica.

O roteiro, escrito por Howard Klausner (Cowboys do Espaço), pinta Reagan como uma figura quase divina, desprovida de falhas ou complexidades. Questões polêmicas, como o escândalo Irã-Contras, as críticas à sua gestão durante a crise da AIDS e os impactos negativos de suas políticas econômicas, são ignoradas ou mencionadas apenas de forma superficial. Em vez disso, o filme se concentra em momentos quase anedóticos, como sua infância em Illinois e sua transição de ator para político, sem oferecer insights significativos.

Um exemplo de má execução do roteiro é a forma como eventos históricos importantes são tratados. A queda do Muro de Berlim, por exemplo, é apresentada como um triunfo puramente pessoal de Reagan, ignorando as nuances geopolíticas e a contribuição de outros líderes como Mikhail Gorbachev. Essa simplificação não só desrespeita a história, mas também aliena espectadores que esperam um retrato mais honesto e equilibrado.

Se há um ponto positivo em Reagan, ele reside na performance de Dennis Quaid. O ator entrega uma interpretação dedicada, capturando com precisão os trejeitos, o tom de voz e o carisma que definiram Reagan como uma figura pública. Em cenas mais intimistas, como sua recuperação após o atentado que quase o matou, Quaid consegue transmitir a humanidade e a vulnerabilidade do presidente, elevando brevemente o nível do filme.

Penelope Ann Miller também merece menção como Nancy Reagan, trazendo uma sensibilidade genuína ao papel da primeira-dama. Sua química com Quaid é um dos poucos aspectos autênticos da produção. Infelizmente, o restante do elenco é amplamente desperdiçado, incluindo Alexey Vorobyov, uma escolha inexplicável para interpretar um papel de destaque (ele é um cantor russo revelado pelo festival de música Eurovision). Sua performance é desajeitada e contribui para a sensação de que o filme não sabe aonde quer chegar.

A trilha sonora de Reagan é um desastre por si só. Composta por Sean Callery (24), ela é genérica e frequentemente intrusiva, sublinhando emoções de forma tão exagerada que chega a distrair o espectador. Os efeitos visuais, especialmente os momentos que tentam recriar eventos históricos, são amadores e muitas vezes risíveis. Em um filme de 140 minutos, essas falhas técnicas tornam a experiência exaustiva.

A escolha de incluir cenas humorísticas sem propósito, como Reagan promovendo produtos na televisão durante os dias finais de sua carreira como ator, é emblemática do tom inconsistente do filme. Momentos como esse, que poderiam adicionar camadas ao personagem, acabam sendo tratados de forma tão cafona que perdem completamente o impacto. Além disso, o ritmo é arrastado, com uma duração injustificável de mais de duas horas que apenas acentua a falta de substância.

Existem filmes piores, mas Reagan é uma decepção retumbante. Para aqueles que consideram Ronald Reagan um herói pessoal ou político, o filme pode servir como uma celebração nostálgica, mas para qualquer um que busque veracidade histórica ou profundidade artística, ele falha em todos os aspectos. Dennis Quaid faz o possível para sustentar o projeto, mas nem mesmo seu esforço louvável consegue salvar um filme que parece mais uma propaganda cafona do que uma obra de cinema.

Em última análise, Reagan serve como um lembrete de que grandes figuras históricas merecem retratos cinematográficos à altura de sua complexidade. Este filme, no entanto, é uma caricatura simplificada, empacotada em um embrulho de mau gosto que dificilmente será lembrado como algo além de uma curiosidade frustrante.

novembro 29, 2024

Conclave (2024)

 


Título original: Conclave
Direção: Edward Berger
Sinopse: Após a morte inesperada do Papa, o Cardeal Lawrence é encarregado de administrar o ritual secreto e antigo de eleger um novo. Sequestrado no Vaticano com os líderes mais poderosos da Igreja Católica até que o processo seja concluído, Lawrence se encontra no centro de uma conspiração que pode levar à sua queda.


O suspense e a intriga política raramente encontram um palco tão fascinante quanto o dos bastidores do Vaticano. Em Conclave, Edward Berger, responsável pelo premiado Nada de Novo no Front, mergulha o público nos mistérios e rituais da Igreja Católica com uma abordagem surpreendentemente empolgante. A adaptação do romance de Robert Harris poderia facilmente cair no campo do monótono, mas é magistralmente conduzida com ritmo, estilo e reviravoltas capazes de manter o espectador vidrado.

A história se passa após a morte inesperada do Papa, que abre caminho para a realização de um conclave. Sob os olhos atentos do Cardeal Lawrence (Ralph Fiennes), os cardeais se reúnem para decidir quem será o próximo líder espiritual de mais de um bilhão de fiéis. A chegada de um cardeal misterioso, Benitez (Carlos Diehz), desconhecido pela maioria, quebra as expectativas iniciais e traz à tona intrigas, alianças secretas e dilemas morais.

O roteiro é um verdadeiro labirinto de tensões, com Berger demonstrando habilidade em transformar os diálogos introspectivos em momentos de grande impacto. O ritmo é cuidadosamente calibrado para equilibrar o peso das decisões teológicas com as manobras políticas de bastidores. Sempre que uma questão parece resolvida, outra surge, refletindo o cansaço e a pressão enfrentados por Lawrence. Essa espiral de complicações mantém o espectador tão envolvido quanto os personagens.

Ralph Fiennes entrega uma performance monumental como o Cardeal Lawrence, conferindo ao personagem camadas de empatia, frustração e inteligência. Fiennes, já indicado ao Oscar anteriormente por O Paciente Inglês e O Jardineiro Fiel, atinge aqui um novo patamar. Seu Lawrence é um homem consumido pelo dever, tentando equilibrar a espiritualidade e o pragmatismo político. A atuação transcende os estereótipos de figuras religiosas, tornando-o um personagem acessível e humano.

No entanto, o restante do elenco também impressiona. Carlos Diehz, em sua estreia em Hollywood, surpreende com um retrato delicado de Benitez, que desafia os pilares conservadores da Igreja. Já John Lithgow, como o antagonista velado, faz o que pode com um papel que merecia mais espaço no roteiro. Lithgow, conhecido por sua versatilidade em papéis de vilões (vide ele como o serial killer Trinity em Dexter), está sólido, mas o material lhe dá menos destaque do que poderia.

Se a narrativa brilha, os aspectos técnicos a elevam ainda mais. O design de som é um dos destaques do filme, com o áudio cuidadosamente trabalhado para imergir o espectador nos corredores abafados e quase claustrofóbicos do Vaticano. Cada passo, cada sussurro e cada batida da chuva é amplificado para criar uma sensação de confinamento, como se estivéssemos junto aos cardeais durante o conclave.

A trilha sonora de Volker Bertelmann é um triunfo à parte. Fugindo das composições clássicas e religiosas previsíveis, Bertelmann opta por um som mais moderno e sombrio, com acordes que intensificam a tensão a cada cena. Ele já havia mostrado sua habilidade em Nada de Novo no Front, e aqui reafirma seu talento em criar atmosferas sonoras inesquecíveis.

A cinematografia de Stéphane Fontaine é igualmente notável. O uso das sombras e dos espaços apertados enfatiza o isolamento e a opressão sentidos pelos personagens. O Vaticano, com sua arquitetura imponente, é filmado de maneira quase intimidadora, transformando-se em um personagem por si só.

Além do suspense político, Conclave aborda temas profundos de aceitação e identidade. A escolha do novo Papa é um teste não apenas para a Igreja, mas também para os espectadores, que são convidados a refletir sobre preconceitos enraizados. A obra de Berger vai além de um comentário sobre a religião, oferecendo uma análise poderosa sobre as contradições de instituições conservadoras que, em teoria, pregam valores progressistas.

A decisão do Cardeal Lawrence de manter o segredo sobre Benitez revela o pragmatismo necessário para preservar a unidade da Igreja, mas também escancara a hipocrisia de uma organização que se recusa a aceitar a diversidade em sua plenitude.

O clímax do filme, embora emocionante, apresenta um desfecho que pode ser visto como forçado. A decisão de manter o Papa eleito ao final, apesar dos desafios, é envolvente, mas a forma como isso é alcançado parece um tanto idealizada. Ainda assim, o impacto emocional e as mensagens transmitidas compensam essa ligeira falta de realismo.

Conclave é um filme que desafia as expectativas, transformando um ambiente que poderia ser monótono em um palco para intrigas fascinantes e reflexões profundas. Edward Berger demonstra mais uma vez sua habilidade como diretor, entregando uma obra que combina estética, narrativa e relevância com maestria.

Com atuações inesquecíveis, uma direção impecável e um roteiro que não subestima a inteligência do espectador, Conclave se destaca como uma das melhores produções do ano. É um filme que deixa marcas, convidando o público a repensar não apenas a política religiosa, mas também suas próprias concepções sobre identidade e aceitação. Se ainda não assistiu, prepare-se para um thriller que ficará em sua mente por muito tempo após os créditos finais.

novembro 28, 2024

Saturday Night: A Noite Que Mudou a Comédia (2024)

 


Título original: Saturday Night
Direção: Jason Reitman
Sinopse: Às 23h30 de 11 de outubro de 1975, um grupo feroz de jovens comediantes e roteiristas mudou a televisão para sempre. Esta é a história do que aconteceu nos bastidores nos 90 minutos que antecederam a primeira transmissão de Saturday Night Live.


Jason Reitman, conhecido por dirigir obras como Amor Sem Escalas e Juno, tenta com Saturday Night: A Noite Que Mudou a Comédia capturar a energia criativa e a tensão por trás da estreia do lendário programa Saturday Night Live (SNL). Contudo, o filme, que poderia ser uma celebração universal da comédia e do impacto cultural do SNL, é uma obra que não transcende seu contexto americano. Em vez disso, parece uma cápsula autocentrada, destinada apenas à audiência que já nutre apreço pelo programa. Para o público estrangeiro, ou até mesmo para aqueles que não enxergam no SNL um marco histórico, o longa é uma experiência exaustiva e, francamente, irrelevante.

Desde suas primeiras cenas, fica claro que o filme é moldado para um público específico: fãs do SNL e entusiastas da história da comédia americana. Ele se estrutura em torno da preparação frenética para a estreia do programa em 1975, centrando-se na figura de Lorne Michaels, interpretado por Gabriel LaBelle, e em sua equipe criativa. Embora a premissa pareça promissora, especialmente para abordar a história de um dos programas mais longevos da televisão americana, a execução deixa muito a desejar.

Para começar, Saturday Night exige que o espectador já conheça e valorize figuras como John Belushi, Chevy Chase e Gilda Radner. No entanto, mesmo esses personagens são tratados de forma superficial. Belushi, por exemplo, é retratado de maneira melancólica, mas sem profundidade que explore as nuances de sua complexa personalidade. Gilda Radner (Ella Hunt), uma das maiores comediantes de sua geração, é relegada a um papel secundário, quase uma coadjuvante em um filme onde deveria brilhar. Para quem não está familiarizado com essas figuras, o filme soa como uma coleção de referências obscuras e desconexas.

O SNL, frequentemente exaltado como revolucionário na comédia americana, é um programa que divide opiniões, mesmo em seu país de origem. Para muitos, suas piadas são datadas, repetitivas e carregadas de humor regional que raramente ressoa fora dos Estados Unidos. Reitman tenta capturar o impacto cultural do programa, mas sua abordagem não consegue comunicar essa relevância para um público global.

As piadas e diálogos verborrágicos do filme frequentemente caem em um território de constrangimento, com momentos que parecem mais preocupados em reforçar a grandiosidade do SNL do que em realmente serem engraçados. A insistência em mostrar o programa como um marco universal acaba soando arrogante, especialmente para audiências que nunca se conectaram com o humor ou o formato do SNL.

A estrutura narrativa de Saturday Night é outro ponto fraco. O filme introduz dezenas de personagens, muitos dos quais desempenham papéis insignificantes na trama principal. Essa superpopulação narrativa dificulta o engajamento do espectador, que se perde em meio a diálogos rápidos e cenas que parecem desconectadas.

Em teoria, a intenção era replicar o caos criativo que permeava os bastidores do SNL. Na prática, o resultado é uma narrativa caótica, que não sabe onde focar e desperdiça grande parte de seu elenco. O próprio Gabriel LaBelle, em uma tentativa de capturar a energia obsessiva de Lorne Michaels, acaba se perdendo em um desempenho caricatural que beira o irritante.

Reitman opta por longas cenas ininterruptas e diálogos frenéticos, que deveriam transmitir a intensidade do processo criativo nos bastidores do SNL. No entanto, essa escolha estética rapidamente se torna cansativa. As cenas são visualmente monótonas e verbalmente exaustivas, exigindo uma atenção que o roteiro não recompensa.

Além disso, o filme recorre repetidamente a deus ex machina para resolver conflitos. Momentos que deveriam ser o clímax emocional ou narrativo são resolvidos de forma abrupta, deixando o espectador frustrado. Essa falta de desenvolvimento enfraquece ainda mais uma narrativa que já era inconsistente.

Um dos aspectos mais comentados sobre Saturday Night é sua evidente intenção de agradar à Academia. O filme já aparece em listas de previsões ao Oscar de Roteiro Original, mas é difícil entender o porquê. O roteiro, longe de ser inovador, se apoia em um humor forçado e em diálogos que raramente soam naturais. Tentar empurrar piadas a cada minuto não faz de um roteiro “original”; faz dele, no máximo, desesperado. A crítica americana talvez veja o filme como uma homenagem nostálgica, mas para audiências mais exigentes, ele falha em entregar qualquer substância.

Assistir a Saturday Night: A Noite Que Mudou a Comédia é como folhear um álbum de memórias de uma família que você não conhece, enquanto te forçam a rir de piadas internas que não fazem sentido. É um filme que não consegue justificar sua existência fora dos Estados Unidos e que, mesmo dentro de seu contexto cultural, parece mais preocupado em exaltar o SNL do que em contar uma boa história.

Jason Reitman, que já demonstrou ser um cineasta competente, parece aqui estar preso em um projeto autocentrado, que fala mais sobre seu amor pessoal pelo SNL do que sobre qualquer relevância real do programa. Para quem não é fã do programa, o filme é insuportável. Para quem é, talvez seja uma experiência mais agradável, mas isso não o torna um bom filme.

Saturday Night tenta se apresentar como uma comédia universal, mas acaba sendo apenas uma nota de rodapé na história do cinema — um exemplo de como nem todo marco cultural merece ser celebrado na telona.

novembro 25, 2024

Estranho Caminho (2024)

 


Título original: Estranho Caminho
Direção: Guto Parente
Sinopse: Um jovem cineasta que visita sua cidade natal é surpreendido pelo rápido avanço de uma pandemia e precisa encontrar seu pai, com quem não fala há mais de dez anos. Depois do primeiro encontro, coisas estranhas começam a acontecer.


Guto Parente, conhecido por explorar narrativas singulares no cinema independente brasileiro, apresenta Estranho Caminho, uma obra que, ao menos em teoria, busca o diálogo entre o real e o onírico. No entanto, o filme parece mais um exercício de paciência que um convite ao mergulho cinematográfico. O longa, com seus 80 minutos, assume uma ambição artística que se dissolve em uma execução arrastada, sem nuances e repleta de escolhas narrativas questionáveis.

A trama gira em torno de David (Lucas Limeira), um cineasta frustrado que retorna à sua cidade natal no Brasil após um evento cultural cancelado. Na tentativa de reconectar-se com suas raízes, ele confronta figuras do passado, incluindo o pai, Geraldo (Carlos Francisco). Contudo, ao invés de desenvolver uma narrativa emocional ou instigante, Estranho Caminho se afunda em um mar de diálogos tediosos e cenas que não avançam a história. David, com sua postura apática, assemelha-se a uma criança desorientada, incapaz de tomar decisões ou enfrentar qualquer desafio com assertividade.

A relação com o pai, potencialmente o núcleo mais promissor da história, é abordada de forma superficial e repleta de clichês melodramáticos. Já a grande "reviravolta" do roteiro surge como um artifício desnecessário, um truque narrativo que falha em conferir impacto ou profundidade à trama. O resultado é uma história que se arrasta por longos minutos, incapaz de capturar ou sustentar o interesse do público.

A direção de Parente opta por uma abordagem que tenta flertar com o surrealismo e o experimentalismo, mas a execução carece de consistência. O uso de cenários degradados e simbolismos visuais, como as ruínas ao fundo em algumas cenas, deveria evocar um clima de deslocamento temporal e emocional, mas acaba se tornando uma distração estética sem substância.

A tentativa de misturar realidade e sonho, um dos pilares narrativos do filme, é conduzida de forma tão desajeitada que fica difícil discernir qualquer intenção artística genuína. O resultado é uma atmosfera que parece pretensiosa, mas não alcança nem o lirismo nem a inquietação que obras similares poderiam despertar.

Talvez o maior pecado de Estranho Caminho seja seu ritmo insuportavelmente lento. Cada cena se prolonga muito além do necessário, transformando os 80 minutos em uma experiência extenuante. A ausência de uma progressão narrativa clara ou de personagens cativantes torna o filme um desafio de resistência para o espectador.

Apesar de abordar temas como reconexão familiar e introspecção, o filme fracassa em criar qualquer conexão emocional. Ao contrário, oferece uma sucessão de situações que, embora estilisticamente ambiciosas, carecem de relevância ou impacto.

Estranho Caminho tenta, mas falha em ser um retrato poético da crise existencial e das relações familiares. O que poderia ser uma exploração intimista de identidade e pertencimento se perde em um emaranhado de decisões criativas frustrantes. É admirável que Guto Parente tenha conseguido realizar e financiar este projeto, mas o resultado final é uma obra que testa os limites da paciência e do interesse do público.

Enquanto muitos cineastas independentes utilizam restrições orçamentárias como impulso para a criatividade, Estranho Caminho evidencia o oposto: um filme que, mesmo com recursos públicos, entrega pouco em termos de valor artístico ou narrativo. Se há algo de positivo, é o fato de a obra, ao menos, não politizar a pandemia, algo que teria sido o golpe final em uma experiência já por si só desagradável.

Emilia Pérez (2024)

 


Título original: Emilia Pérez
Direção: Jacques Audiard
Sinopse: No México, uma advogada recebe uma oferta inesperada para ajudar um temido chefe de cartel a se aposentar de seus negócios e desaparecer para sempre para que possa tornar a mulher que ela sempre sonhou em ser.


A carreira de Jacques Audiard é marcada por uma constante reinvenção. Desde De Tanto Bater, Meu Coração Parou (2005) até O Acontecimento (2021), ele nunca se prende a fórmulas predefinidas. Com Emilia Pérez (2024), o diretor francês mergulha em um território ainda mais experimental, ao combinar drama criminal, musical e comédia de forma ousada. O filme, centrado na história de Emilia Pérez, não apenas desafia as convenções de gênero como também os limites da narrativa cinematográfica tradicional, apresentando um resultado tão intrigante quanto polarizador.

Audiard demonstra uma direção impecavelmente calibrada, oferecendo um tom "suave", quase sereno, que contrasta com a excentricidade da história. Ele opta por uma abordagem que nunca impõe suas mensagens ao espectador; ao contrário, os eventos se desdobram de forma fluida, convidando o público a descobrir as complexidades emocionais e sociais que moldam a trama. Esse controle também reflete sua confiança em um elenco competente e em um roteiro que, embora incomum, possui uma base sólida para explorar temas contemporâneos e urgentes.

A direção de fotografia de Yves Cape é um ponto-chave no sucesso visual do filme. Ela vai além de meramente capturar o espírito das periferias da Cidade do México; ela o vivifica. Ao focar nos pequenos detalhes — desde os mercados lotados até os clássicos anúncios de ferro velho "se compra lavadoras, refrigeradores, micro-ondas" que são onipresentes na capital mexicana —, o longa transporta o público para um espaço que é ao mesmo tempo íntimo e vastamente representativo.

A trama acompanha Emilia Pérez, interpretada por Karla Sofía Gascón, uma mulher trans que abandona sua vida de crimes para buscar uma segunda chance. Sua transição de gênero não é apenas um ponto narrativo, mas também um reflexo das complexas dinâmicas de identidade e aceitação que a personagem enfrenta. Porém, a história vai além de seu caráter pessoal, inserindo Emilia em um enredo que combina dilemas morais e desafios emocionais de forma incomum, até mesmo excêntrica.

Inicialmente, o roteiro parece um tanto esdrúxulo, quase beirando o absurdo. No entanto, à medida que o filme avança, essa estranheza se revela não só deliberada, mas essencial para a jornada emocional de Emilia. Há momentos em que a narrativa caminha na linha tênue entre o surreal e o profundamente humano, tornando-se uma experiência singular que provoca reflexão e empatia.

O destaque do elenco vai para Karla Sofía Gascón, cuja performance transcende clichês e oferece uma representação sincera e multifacetada de Emilia. Gascón encarna a vulnerabilidade e a força de uma personagem que luta para reconciliar suas escolhas passadas com um futuro incerto. Sua Emilia é sempre "incompleta", como ela mesma admite em uma das falas mais marcantes do filme, cantando sobre como se sente "metades de tudo".

Zoe Saldaña também entrega uma performance notável como Rita, a advogada que navega entre suas próprias contradições morais. Sua química com Gascón é palpável e traz um contraste necessário à exuberância da narrativa. Já Selena Gomez, como Jessi Del Monte, é talvez o maior ponto de discussão. Embora sua atuação seja competente, o sotaque americano no espanhol soa deslocado. Além disso, considerando o potencial vocal da artista, é lamentável que Gomez tenha apenas um momento musical de destaque, deixando a impressão de que ela foi subaproveitada.

Como musical, Emilia Pérez se destaca por sua trilha sonora marcante, mas enfrenta desafios na execução de algumas sequências. A música "Las Damas Que Pasan", em particular, é um momento brilhante, impregnado de melancolia e ressonância emocional, que perdura muito além dos créditos finais.

No entanto, as cenas coreografadas nem sempre atingem o mesmo nível de impacto. Enquanto a dança adiciona uma dimensão visualmente rica, algumas sequências parecem excessivamente estilizadas, afastando o público da história em vez de imergi-lo nela. Esse desequilíbrio faz com que a experiência musical oscile entre o sublime e o dispersivo.

A ambientação é, sem dúvida, um dos aspectos mais cativantes do filme. Audiard e sua equipe criativa capturam a essência das periferias da Cidade do México de forma que se aproxima do documental. Para espectadores que já visitaram ou vivenciaram esse ambiente, há um imediatismo que evoca lembranças e uma conexão visceral. Essa autenticidade não é apenas visual; ela permeia o próprio tecido narrativo, tornando o México não apenas um cenário, mas um personagem vivo na história.

Emilia Pérez é um produto profundamente contemporâneo, lidando com questões de gênero, identidade e pertencimento que ressoam nas redes sociais e no discurso público atual. No entanto, não é um filme para todos. Sua estrutura narrativa pouco convencional, combinada com temas provocativos, pode alienar aqueles que buscam um entretenimento mais acessível.

Ainda assim, o filme conquista com um final extraordinário, que sintetiza sua mensagem de forma magistral. Em última análise, Emilia Pérez não é apenas um filme; é uma experiência, um desafio e, para os espectadores dispostos a abraçar sua singularidade, uma recompensa cinematográfica como poucas em 2024. Jacques Audiard nos lembra que o cinema ainda tem o poder de surpreender, incomodar e emocionar — tudo isso em um só espetáculo. Com Emilia Pérez, Audiard adiciona mais uma peça intrigante à sua filmografia, provando que ousar ainda é possível, mesmo em tempos de saturação narrativa.

novembro 23, 2024

Herege (2024)

 


Título original: Heretic
Direção: Bryan Woods, Scott Beck
Sinopse: Duas jovens missionárias mórmons são obrigadas a provar sua fé ao baterem na porta errada e serem recebidos pelo diabólico Sr. Reed, ficando presas em seu mortal jogo de gato e rato.


Scott Beck e Bryan Woods, conhecidos por seu trabalho em Um Lugar Silencioso (2018), retornam com Herege, um suspense de terror psicológico que se propõe a desafiar crenças religiosas por meio de uma narrativa claustrofóbica. O filme apresenta um conceito intrigante: duas jovens missionárias mórmons enfrentam um teste de fé ao ficarem presas no jogo mental de um anfitrião enigmático. Infelizmente, a execução não faz jus ao potencial, resultando em um filme frustrante e repleto de escolhas questionáveis.

A narrativa começa com Sister Paxton (Chloe East) e Sister Barnes (Sophie Thatcher) indo de porta em porta para espalhar os ensinamentos de sua fé. O tom inicial é promissor, abordando o ceticismo religioso em uma sociedade moderna. Quando as missionárias são convidadas por Mr. Reed (Hugh Grant) a se abrigarem em sua casa durante uma tempestade, a tensão é palpável. Reed, com seu charme e intelecto, logo vira o jogo contra elas, explorando suas crenças com argumentos cínicos e perspicazes, pontuados por referências culturais inesperadas, como Voltaire, Monopoly e até Lana Del Rey.

No entanto, o roteiro falha em desenvolver os dilemas apresentados. A cena que mistura explicações sobre religiões com a metáfora do jogo de Banco Imobiliário é brilhante, insinuando um filme que poderia ser uma análise profunda da fé e do controle social. Mas, ao invés de explorar essas ideias, o filme se desvia para reviravoltas previsíveis e forçadas. O terceiro ato abandona completamente o suspense psicológico, descambando para absurdos que carecem de lógica e coerência, transformando o que poderia ser um thriller inteligente em uma experiência quase risível.

Uma das maiores falhas de Herege é a dependência de coincidências convenientes para avançar a trama. O exemplo mais gritante é o momento em que Sister Barnes precisa atravessar um labirinto para alcançar um ponto crítico da história. De maneira quase mágica, ela escolhe as quatro portas corretas consecutivamente, uma solução preguiçosa que destrói qualquer suspensão de descrença. Essa abordagem "redondinha" do roteiro é frustrante, especialmente em um filme que se pretende imprevisível e desafiador. O filme também tropeça ao tentar misturar terror e humor negro, resultando em um tom inconsistente que mina qualquer impacto emocional ou intelectual.

Se há algo digno de elogio em Herege, são os aspectos técnicos. A fotografia, com suas paletas sombrias e enquadramentos claustrofóbicos, cria uma atmosfera opressiva que combina bem com a premissa. O design de som também merece destaque, utilizando silêncios e ruídos para construir tensão de forma eficiente. No entanto, esses méritos técnicos são desperdiçados em uma narrativa que não oferece substância.

A atuação de Hugh Grant é outro ponto positivo. Seu Mr. Reed exala um charme sinistro, equilibrando carisma e ameaça de maneira envolvente. Grant utiliza sua experiência em papéis cômicos para adicionar camadas ao personagem, mas nem mesmo sua performance é capaz de salvar o filme. Chloe East e Sophie Thatcher fazem o possível com o material que lhes foi dado, mas seus personagens são subdesenvolvidos, reduzidos a arquétipos sem profundidade.

O envolvimento da A24, estúdio conhecido por sua abordagem artística e ousada no terror, adiciona um peso extra às expectativas. No entanto, como tem sido comum em muitas de suas produções, Herege se apoia mais em sua estética do que em sua substância. A estratégia de marketing vendeu o filme como uma obra provocativa e inovadora, mas o resultado final é genérico e frustrante. É difícil ignorar o padrão do estúdio de entregar filmes que prometem mais do que entregam, frequentemente sacrificando narrativa em favor de "momentos impactantes".

Herege tinha todos os elementos para ser um thriller memorável: uma premissa instigante, um elenco talentoso e uma produção tecnicamente impecável. No entanto, o filme falha em explorar suas próprias ideias, optando por soluções fáceis e clichês que subestimam a inteligência do público. Ao final, o que resta é uma obra que tenta ser provocativa, mas termina sendo esquecível.

Se a intenção de Beck e Woods era criar uma crítica contundente sobre religião e controle, eles perderam a oportunidade. E se a A24 esperava mais um sucesso cult, talvez seja hora de reavaliar suas escolhas narrativas. Afinal, filmes bonitos, mas vazios, só podem ir tão longe antes de esgotar a paciência do público.

novembro 22, 2024

A Semente do Fruto Sagrado (2024)

 


Título original: Dāne-ye anjīr-e ma'ābed
Direção: Mohammad Rasoulof
Sinopse: Um juiz investigativo do Tribunal Revolucionário de Teerã luta contra a desconfiança e a paranoia enquanto protestos políticos nacionais se intensificam e sua arma misteriosamente desaparece. Suspeitando do envolvimento de sua esposa e suas duas filhas, ele impõe medidas drásticas em casa, causando o aumento das tensões. Passo a passo, as normas sociais e as regras da vida familiar vão sendo suspensas.


Mohammad Rasoulof é um diretor que carrega a reputação de confrontar os regimes autoritários e de ser um dos nomes mais polêmicos do cinema iraniano contemporâneo. Em A Semente da Figueira Sagrada, ele apresenta uma trama que tenta explorar o impacto do fanatismo religioso em uma família iraniana e, por extensão, na sociedade. Contudo, o filme tropeça em sua própria ambição, oferecendo uma experiência que se arrasta por quase três horas, recheada de escolhas estéticas duvidosas e personagens que, ao invés de engajar, apenas irritam.

A narrativa acompanha Iman (Misagh Zare), um funcionário público que almeja se tornar juiz da Corte Revolucionária Islâmica, e sua família. Sua esposa, Najmeh (Soheila Golestani), é o retrato da conformidade: uma mulher que sacrifica suas opiniões para manter as aparências, enquanto suas duas filhas, Rezvan e Sana, encarnam a apatia da juventude contemporânea. As coisas começam a desmoronar quando eventos externos — como uma amiga ferida pela polícia e um incidente envolvendo a perda de uma arma — revelam a fragilidade das estruturas familiares e sociais que sustentam essa dinâmica.

Embora o filme pareça ter muito a dizer sobre repressão, paranoia e o papel das mulheres em uma sociedade patriarcal, suas mensagens são entregues de maneira panfletária. O uso extensivo de reels e stories do Instagram, mesclados a cenas documentais, interrompe o fluxo da narrativa, tornando-se cansativo e redundante. A ideia de usar esses recursos para criar um contraste entre a modernidade e o conservadorismo rígido do regime poderia ser interessante, mas aqui soa como um artifício forçado, mais preocupado em impressionar pela forma do que em fortalecer o conteúdo.

Visualmente, A Semente da Figueira Sagrada apresenta um contraste marcante: a atmosfera opressiva de Teerã é capturada com uma paleta fria e desbotada, enquanto as cenas na zona rural, onde a família tenta escapar de suas tensões, oferecem paisagens desoladas e fragmentadas. Essa dicotomia visual deveria enriquecer a narrativa, mas acaba sendo mais uma camada de monotonia devido à falta de dinamismo na direção de Rasoulof.

As escolhas estilísticas do diretor, como os longos planos sequenciais e a preferência por diálogos vagos e circulares, acabam diluindo o impacto emocional que certas cenas poderiam ter. Mesmo momentos de grande potencial dramático, como o confronto final entre Najmeh e Iman, são arrastados a ponto de perder a força.

Os personagens de A Semente da Figueira Sagrada são, em sua maioria, difíceis de suportar. Iman é a caricatura do pai autoritário, enquanto Najmeh demora tanto a reagir às opressões que, quando o faz, já não há empatia suficiente por ela. As filhas, por sua vez, simbolizam uma geração perdida no vácuo entre tradição e modernidade, mas seu comportamento amorfo e dependente de celulares irrita mais do que provoca reflexão. Quando as personagens finalmente tomam atitudes decisivas no terceiro ato, suas ações parecem desconectadas de tudo o que foi construído até então.

As atuações, embora competentes em transmitir a frieza e a repressão emocional, carecem de nuances que tornem os personagens mais acessíveis ao público. Misagh Zare e Soheila Golestani fazem o que podem com um roteiro que frequentemente os coloca em situações repetitivas e previsíveis.

Com quase três horas de duração, o filme é um teste de resistência para o espectador. Muitas cenas poderiam ter sido cortadas ou condensadas sem prejuízo para a narrativa, especialmente as que se prendem a detalhes desnecessários ou repetem temas já estabelecidos. É difícil não sentir que A Semente da Figueira Sagrada teria sido muito mais eficaz com metade da duração, algo próximo de 80 minutos.

Apesar de abordar temas importantes, como a repressão religiosa e a luta por emancipação feminina, o filme não consegue provocar o impacto emocional que se espera de uma obra desse calibre. A sensação predominante é de antipatia: antipatia pelos personagens, pela forma como os eventos se desenrolam e, principalmente, pela insistência em martelar as mesmas mensagens sem oferecer novas perspectivas.

A Semente da Figueira Sagrada tenta ser um retrato poderoso de uma sociedade em crise, mas acaba sendo uma experiência exasperante e desconectada. A combinação de escolhas estéticas equivocadas, narrativa arrastada e personagens pouco cativantes transforma o filme em uma maratona de cansaço. É difícil entender como uma obra tão carregada de falhas conseguiu alcançar qualquer consideração para o Oscar. No fim, o que fica é a vontade de que tudo acabe logo — tanto o filme quanto as intermináveis três horas de sua duração. Uma decepção monumental.

novembro 21, 2024

Sebastian (2024)

 


Título original: Sebastian
Direção: Mikko Mäkelä
Sinopse: Max, um aspirante a escritor de 25 anos que vive em Londres, começa uma vida dupla como profissional do sexo para pesquisar seu romance de estreia.


Dirigido por Mikko Mäkelä, Sebastian é um drama sensível e intimista que aborda questões de identidade e autoaceitação, centrando-se na vida dupla de Max, um jovem escritor que adota o pseudônimo Sebastian em sua vida noturna. O filme é uma coprodução internacional, com uma estética visual cuidadosamente trabalhada e um roteiro simples, mas eficaz, que evita complicações narrativas para focar nas emoções dos personagens.

Embora a trama de Sebastian não seja inovadora — com o clássico dilema da dupla identidade e as pressões sociais —, a condução de Mäkelä transforma o previsível em algo comovente e cheio de nuances. Max enfrenta a difícil tarefa de equilibrar sua identidade real com a persona fictícia que criou, em um contexto que explora os limites entre autenticidade e performatividade. A história evita excessos dramáticos, optando por uma abordagem mais contida que dialoga bem com o público.

Ruaridh Mollica, no papel de Max/Sebastian, entrega uma performance que oscila entre introspectiva e distante. Sua presença em cena e aparência física podem ser descritas como um híbrido de Tilda Swinton e um jovem David Bowie, mas falta profundidade emocional em certos momentos, prejudicando a conexão do espectador com o personagem. Em contrapartida, Jonathan Hyde brilha como mentor e figura de apoio, trazendo uma interpretação cheia de carisma e gravitas, características marcantes do ator em suas obras anteriores.

A direção de fotografia de Iikka Salminen se destaca, com um uso expressivo de luz e sombra que reforça o contraste entre as duas vidas de Max. A edição, conduzida pelo próprio Mäkelä e Arttu Salmi, mantém o ritmo fluido, evitando os prolongamentos que geralmente marcam filmes dessa temática. O design de produção de Guy Thompson é minimalista, mas funcional, contribuindo para uma atmosfera urbana que reforça a solidão do protagonista.

Outro ponto que merece destaque é como o filme evita o clichê de se apoiar excessivamente em cenas sexuais. Apesar de abordar a vida noturna e relacionamentos, Sebastian escolhe explorar os aspectos emocionais e as inseguranças do personagem, em vez de priorizar o apelo sensual. Esse direcionamento proporciona uma narrativa mais madura e acessível a diferentes públicos.

A trilha sonora de Ilari Heinilä é discreta, mas eficaz, criando uma camada de melancolia que permeia todo o filme. Ao escolher uma abordagem sonora sutil, Mäkelä permite que o silêncio e os sons diegéticos ganhem protagonismo, reforçando os momentos de introspecção de Max. Tematicamente, o filme explora a dualidade da vida contemporânea, destacando como as máscaras sociais podem alienar e proteger ao mesmo tempo.

Sebastian não reinventa a roda, mas é um exemplo de como simplicidade pode ser sinônimo de qualidade quando bem executada. Mikko Mäkelä demonstra habilidade em equilibrar estética, emoção e narrativa, criando um filme que é, acima de tudo, honesto. Com um ritmo cativante e personagens que, apesar de suas falhas, despertam empatia, Sebastian se apresenta como uma obra tocante e correta, ideal para quem busca histórias genuínas e sem artifícios exagerados.

novembro 20, 2024

Megalópolis (2024)

 


Título original: Megalopolis
Direção: Francis Ford Coppola
Sinopse: A cidade de Nova Roma é palco de um conflito épico entre Cesar Catilina, um artista genial a favor de um futuro utópico e idealista, e seu opositor, o ganancioso prefeito Franklyn Cicero. Entre os dois está Julia Cicero, com a lealdade dividida entre o pai e o amado, tentando decidir qual futuro a humanidade merece.


Poucos filmes chegam aos cinemas carregados de expectativas tão monumentais quanto Megalópolis, a obra que Francis Ford Coppola sonhou por décadas e finalmente realizou. Concebido como um épico sobre a construção de uma utopia moderna e financiado pelo próprio diretor, Megalópolis aspirava ser a grande obra-prima de sua carreira tardia. No entanto, o resultado é um desastre completo, que não apenas falha em atingir suas ambições, mas se torna um marco de tudo o que pode dar errado em uma produção cinematográfica.

A trama de Megalópolis é, ao mesmo tempo, simples e impossível de acompanhar. Em um futuro próximo, Nova York foi devastada por um desastre não especificado, e Cesar Catilina (Adam Driver), um visionário arquiteto, propõe reconstruir a cidade como "Nova Roma", uma utopia que mistura ideais clássicos com tecnologia futurista. O conflito surge quando Cesar enfrenta resistência do prefeito local, interpretado por Giancarlo Esposito. A história tenta explorar questões de poder, idealismo e sacrifício, mas a narrativa é tão desarticulada que se perde completamente. A introdução de um romance insosso entre Cesar e Julia (Nathalie Emmanuel), filha do prefeito, só agrava a confusão. Parece que Coppola queria incorporar elementos de tragédias shakesperianas e dramas políticos, mas sem a habilidade de conectar essas ideias em algo coerente​.

Se há algo que Megalópolis faz bem inicialmente, é a fotografia. Filmado por Mihai Malaimare Jr., colaborador frequente de Coppola, o filme apresenta uma paleta dourada que evoca riqueza e opulência. No entanto, esse estilo visual rapidamente se torna repetitivo e cansativo. O dourado, que deveria simbolizar grandiosidade, transforma-se em um truque visual desgastado, incapaz de sustentar o interesse por mais de duas horas. Apesar de algumas composições de cena belíssimas, a falta de variação tonal dá ao filme uma uniformidade que só reforça sua natureza enfadonha​.

Poucos filmes conseguem desperdiçar tanto talento quanto Megalópolis. Adam Driver, que já demonstrou ser um ator versátil, entrega aqui uma performance forçada e teatral, mas sem o carisma necessário para carregar o filme. Giancarlo Esposito parece preso em um papel unidimensional, enquanto Aubrey Plaza, normalmente uma presença magnética, é reduzida a uma figura caricata que não consegue contribuir para a narrativa. Nathalie Emmanuel e Shia LaBeouf completam o elenco principal, mas ambos são prejudicados por personagens sem profundidade e diálogos insuportavelmente artificiais. É como se cada ator estivesse em um filme diferente, e ninguém soubesse qual é o tom pretendido​.

A trilha sonora, composta para ser épica e emocional, é uma mistura desastrosa de clichês românticos e melodramas ultrapassados. Ao invés de intensificar a narrativa, ela se torna uma distração constante, sublinhando momentos que deveriam ser sutis com uma ênfase desnecessária. Os efeitos visuais também são uma montanha-russa de qualidade. Algumas cenas mostram um uso impressionante de CGI para criar paisagens futuristas, enquanto outras parecem saídas de um filme B dos anos 2000. O uso inconsistente da tecnologia torna impossível imergir no mundo que Coppola tenta construir​.

Com 140 minutos de duração, Megalópolis é agonizantemente arrastado. Cenas que deveriam avançar a trama são prolongadas sem propósito, enquanto momentos cruciais são tratados de forma apressada e confusa. A edição parece incapaz de decidir quais aspectos da história são importantes, resultando em uma narrativa que nunca encontra seu equilíbrio. Além disso, subtramas que poderiam adicionar camadas à história são introduzidas apenas para serem abandonadas, deixando o espectador desorientado e desinteressado​.

Para quem já não era fã de Francis Ford Coppola, Megalópolis representa o ápice de tudo o que há de problemático em seu estilo. O diretor, cujos filmes como O Poderoso Chefão, Apocalypse Now e Jack eu simplesmente abomino, parece aqui completamente desconectado da realidade do cinema contemporâneo. Sua visão é grandiosa, mas sem propósito, e o filme acaba sendo um testemunho de sua incapacidade de adaptar seu estilo às demandas narrativas e técnicas atuais.

Em resumo, Megalópolis é um fracasso de proporções épicas. É um filme que tenta ser tudo, mas não consegue ser nada. Uma experiência torturante que deixa o espectador aliviado quando os créditos finais aparecem. Para Coppola, que investiu milhões de seu próprio dinheiro nesse projeto, o resultado é nada menos que um desastre monumental. Um lixo cinematográfico que será lembrado, infelizmente, como um dos piores filmes da década.

novembro 19, 2024

The Outrun (2024)

 


Título original: The Outrun
Direção: Nora Fingscheidt
Sinopse: Recém-saída da reabilitação, Rona retorna às Ilhas Orkney — um lugar tanto selvagem quanto belo, localizado na costa da Escócia. Agora com 29 anos e após mais de uma década vivendo no limite em Londres, onde encontrou e perdeu o amor, Rona tenta fazer as pazes com seu passado conturbado. À medida que se reconecta com a paisagem dramática onde cresceu, memórias de sua infância traumática se misturam com eventos desafiadores recentes que a colocaram no caminho da recuperação.


A adaptação cinematográfica de The Outrun, baseada no livro autobiográfico de Amy Liptrot, prometia ser uma das obras mais íntimas e sensíveis de 2024. Nora Fingscheidt, conhecida por seu trabalho em Transtorno Explosivo, assume a direção dessa história sobre vícios, traumas e a busca pela reconexão. No entanto, enquanto o cenário deslumbrante das ilhas Orkney entrega beleza e solidão em igual medida, o filme tropeça em sua narrativa desordenada e falta de profundidade emocional, deixando o público desconectado de sua protagonista.

Saoirse Ronan interpreta Rona, uma jovem em recuperação após anos de alcoolismo, que retorna à sua terra natal para se curar. Desde o começo, a presença de Ronan é o centro do filme. Conhecida por papéis icônicos em Lady Bird e Adoráveis Mulheres, ela traz nuances à sua interpretação: um equilíbrio entre vulnerabilidade e força. No entanto, mesmo sua dedicação ao papel não consegue superar as limitações do roteiro. O entusiasmo pela atuação de Ronan, especialmente a especulação em torno de uma possível indicação ao Oscar, parece desproporcional. Embora sua performance seja competente, ela não oferece o impacto transformador necessário para compensar as falhas estruturais do filme.

A relação entre Rona e os demais personagens é superficial, o que prejudica a narrativa. Os coadjuvantes, como Paapa Essiedu, no papel de Daynin, e Stephen Dillane, como o pai de Rona, são relegados a figuras de apoio sem qualquer desenvolvimento significativo. Isso não só limita a possibilidade de empatia com eles, mas também enfraquece os próprios dilemas emocionais da protagonista. O resultado é uma história que parece isolada em si mesma, assim como a ilha Papay, um dos cenários mais remotos do filme.

A maior fraqueza de The Outrun reside na sua narrativa. Optando por um formato não linear, o filme alterna entre o presente de Rona nas ilhas Orkney e seus anos turbulentos em Londres. Essa estrutura poderia ser uma escolha artística interessante, mas a execução é confusa e carece de coesão. Fingscheidt utiliza a cor do cabelo de Rona como um marcador visual para distinguir os períodos temporais: azul para o caos e loiro para a busca de redenção. Essa decisão, embora criativa, não é suficiente para evitar a confusão narrativa. Em vez de enriquecer a história, ela torna a experiência frustrante, especialmente para um público que precisa decifrar constantemente onde e quando os eventos estão acontecendo.

Adicionalmente, o ritmo do filme é um desafio. Longas tomadas de Rona contemplando a paisagem ou refletindo sobre sua dor são repetitivas e enfraquecem a progressão da história. Enquanto a solidão é um tema central, a repetição exaustiva das mesmas cenas (como Rona olhando para o mar ou andando pelos penhascos) dilui o impacto emocional. O filme parece se alongar desnecessariamente, especialmente em seu último ato, que carece de propósito narrativo.

Filmado nas ilhas Orkney, o filme oferece um banquete visual: os penhascos escarpados, as praias solitárias e o mar cinzento capturam perfeitamente a solidão e o isolamento que definem a jornada de Rona. No entanto, a estética lembra outras produções com ambientação semelhante, como filmes islandeses ou dramas nórdicos. Embora visualmente deslumbrante, The Outrun não apresenta uma identidade única, dependendo demais de clichês já associados a paisagens remotas e melancólicas.

A trilha sonora, composta por temas minimalistas e etéreos, segue a mesma linha. Inspirada pelas trilhas sonoras islandesas populares em filmes que exploram a solidão e a introspecção, a música reforça a ambientação, mas não consegue trazer frescor à experiência. Em vez de complementar as emoções de Rona, a trilha se torna previsível e formulaica.

Embora The Outrun enfrente desafios significativos em sua execução, os temas abordados são relevantes. O vício, a reconciliação com o passado e a luta pela identidade são tratados com sensibilidade, ainda que de forma inconsistente. Rona busca não apenas superar o alcoolismo, mas também compreender como seu ambiente e as relações familiares moldaram sua trajetória. A metáfora entre ela e a paisagem isolada das Orkney é clara, mas o filme não a desenvolve suficientemente para criar um impacto duradouro.

The Outrun tenta explorar os cantos mais profundos da alma humana, mas se perde em sua abordagem fragmentada. Apesar do esforço de Saoirse Ronan para dar vida a Rona, o filme falha em envolver o espectador emocionalmente, deixando uma sensação de distância e frustração. Com uma narrativa confusa, personagens coadjuvantes irrelevantes e uma trilha sonora previsível, a produção carece do impacto emocional que prometia.

No final, The Outrun é um lembrete de que nem mesmo os cenários mais deslumbrantes ou uma atriz talentosa podem sustentar uma história sem alma. Assim como Rona se sente desconectada do mundo, o público se sente desconectado de sua história. E, para um filme que deveria ser uma jornada de cura e redenção, esse é um problema que não pode ser ignorado.

novembro 16, 2024

Ainda Estou Aqui (2024)


Título original: Ainda Estou Aqui
Direção: Walter Salles
Sinopse: Rio de Janeiro, início dos anos 1970, quando o país enfrenta o endurecimento da ditadura militar. Estamos no centro de uma família, os Paiva: um pai, Rubens, uma mãe, Eunice, e os cinco filhos. Vivem na frente da praia, numa casa de portas abertas para os amigos. O afeto e o humor que compartilham entre si são suas formas sutis de resistência à opressão que paira sobre o Brasil. Um dia, eles sofrem um ato violento e arbitrário que vai mudar para sempre sua história. Eunice é obrigada a se reinventar e a traçar um novo destino para si e os filhos. Baseada no livro biográfico de Marcelo Rubens Paiva, a história emocionante dessa família ajudou a redefinir a história do país.


Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles e baseado na história de Eunice Paiva e sua luta durante e após a ditadura militar, é a produção mais aguardada do ano no cinema brasileiro. No entanto, o filme se perde em um mar de pretensões artísticas, escolhas narrativas batidas que entediam parte do público (me encaixo aqui). O que poderia ser uma obra tocante e provocativa acaba como uma experiência cansativa e forçada, revelando os problemas recorrentes de um cinema que parece mais preocupado em atender padrões de festivais do que em criar algo genuinamente impactante.

A estrutura do filme é rigidamente dividida em três períodos: os anos de 1970/71, marcados pelo auge da repressão militar; 1996, com a descoberta oficial do destino de Rubens Paiva; e 2014, quando Eunice Paiva enfrenta os últimos anos de sua vida. Essa divisão, embora pareça funcional no papel, é executada com uma falta de originalidade impressionante, transformando cada ato em uma sucessão de clichês e momentos previsíveis (arcos dramáticos com início, meio e fim em cada ato). O filme parece desesperado para "ensinar" a história do regime militar para uma geração que, segundo a narrativa, ignora completamente os horrores do período. No entanto, essa tentativa de pedagogia histórica é feita de forma tão rasa que não educa nem emociona.

Os diálogos são tão explicativos que subestimam a inteligência do público. Não há espaço para sutileza ou interpretação — tudo é mastigado e entregue como se o espectador fosse incapaz de compreender qualquer nuance histórica ou emocional. A cena do recebimento da certidão de óbito de Rubens Paiva em 1996, por exemplo, é um exemplo claro do problema: ao invés de construir tensão ou explorar a complexidade emocional do momento, o filme simplesmente recria ipsis litteris o que já foi amplamente noticiado na época. Até o logotipo da Rede Globo aparece na tela, como se o filme não pudesse sobreviver sem uma muleta de reconhecimento visual.

Muito se fala de Fernanda Torres no papel de Eunice Paiva, mas sua performance é, no máximo, mediana. Torres, conhecida por seu talento em comédias e papéis mais leves, parece completamente deslocada aqui (para mim, ela está muito melhor até na simpática série Tapas e Beijos). Sua interpretação se limita a uma única expressão: um olhar melancólico e distante que não varia ao longo de todo o filme. Isso é especialmente problemático nas cenas que deveriam ser o coração emocional da história, como os interrogatórios. Em uma das sequências mais esperadas do filme, o confronto entre Eunice e os militares deveria ser um momento de tensão sufocante. No entanto, a falta de energia de Torres (em conjunto com o roteiro pífio) transforma a cena em um exercício entediante de diálogo burocrático, sem qualquer resquício de perigo ou emoção.

Além de Fernanda Torres, o filme desperdiça completamente Selton Mello no papel de Rubens Paiva. Sua presença é tão breve e desprovida de profundidade que seu desaparecimento, embora trágico na história real, mal ressoa na narrativa. Já Fernanda Montenegro, um dos maiores nomes do cinema brasileiro, é reduzida a um papel simbólico e constrangedor no ato final. Sua aparição como a Eunice Paiva idosa não passa de uma figura imóvel e quase caricatural, uma escolha que sublinha a incapacidade do filme de explorar o potencial de seus atores veteranos.

Tecnicamente, Ainda Estou Aqui apresenta uma fotografia competente, mas previsível, que utiliza sombras e luzes para simbolizar o medo e a esperança. Embora esteticamente agradável, essa abordagem é superficial e não consegue compensar os problemas narrativos, além de já ter sido utilizada à exaustão em outros longas do diretor. A trilha sonora, por sua vez, é um desastre. Repleta de músicas de artistas consagrados como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Roberto Carlos, ela é usada de maneira tão insistente e óbvia que acaba se tornando irritante. A música, ao invés de enriquecer a narrativa, parece uma tentativa preguiçosa de evocar nostalgia e validar o "clima de época" do filme. Planos desnecessários de discos sendo trocados na vitrola somente para ilustrar as capas e tocar mais uma música para a plateia se tornam irritantes.

Um dos aspectos mais frustrantes do filme é sua abordagem política. Embora claramente crítico ao regime militar, Ainda Estou Aqui evita assumir qualquer posição mais contundente, optando por um tom conciliatório que soa falso e oportunista. É como se a produção estivesse desesperada para não alienar nenhum segmento do público, resultando em um discurso diluído que não faz jus à gravidade do tema. 

Além disso, é mais da mesma premissa: "não existia outra opção a não ser comunista" durante o regime militar, se você fosse uma pessoa boa. Ser do governo, é ser sempre "malvado" (incluindo aqui aquele plano da foto do presidente Médici na parede - que "medo"), enquanto a família desfrutava de uma boa vida capitalista, com viagens para Londres, relacionamentos com a elite, uma casa de frente para a Avenida Atlântica em Copacabana, libras e dólares guardados em casa... ou seja, um espelho da família milionária de Walter Salles: rica na ditadura, onde era "cool" ser comunista, desde que você usufrua ao máximo do que o governo tem a oferecer - dólares no bolso para realizar um filme sobre uma história banal direcionada para aparecer em festivais de cinema pela Europa, pelo tapete vermelho do Oscar e demais premiações. Vermelho de sangue? Não, vermelho vil de escarlate de onde esses pretensiosos cineastas aplaudidos cegamente por tudo que fazem estão. Vermelhos e escarlate do distrito da luz vermelha, talvez.

Em última análise, Ainda Estou Aqui é uma decepção monumental. O que poderia ter sido um retrato poderoso da resistência e do sofrimento de alguns durante o regime militar se transforma em um filme arrastado, pretensioso e emocionalmente vazio. Walter Salles, que já demonstrou ser um cineasta de grande talento para a maior parcela da população (eu pessoalmente detesto os longas do diretor), entrega aqui uma obra que parece mais preocupada em agradar jurados de festivais do que em contar uma história com alma e autenticidade, tal como foi com Central do Brasil.

Se você procura um filme que realmente explore os tais "horrores do regime" com coragem e profundidade, Ainda Estou Aqui não é a escolha. Para quem quer conhecer a história de Eunice Paiva, talvez seja melhor recorrer a um documentário ou às próprias memórias de Marcelo Rubens Paiva. O cinema, neste caso, falhou em transformar uma história real e poderosa em uma obra cinematográfica digna de nota.

novembro 11, 2024

Um Homem Diferente (2024)

 


Título original: A Different Man
Direção: Aaron Schimberg
Sinopse: Edward é um aspirante a ator que passa por um procedimento médico radical para transformar sua aparência. Mas esse tão sonhado novo rosto logo se transforma em pesadelo, à medida que ele não consegue o papel para o qual nasceu para desempenhar e passa a ficar obcecado em recuperar o que foi perdido.


Um Homem Diferente (A Different Man), dirigido e roteirizado por Aaron Schimberg, emerge como um dos mais impressionantes filmes de 2024, explorando temas de identidade, obsessão pela beleza e exclusão social com sensibilidade e humor mordaz. Com uma estética inspirada em clássicos urbanos e uma abordagem intimista, a obra se destaca pela profundidade emocional, pelo uso magistral da cidade de Nova York como pano de fundo e por performances impactantes, especialmente a de Sebastian Stan, que vive Edward, um protagonista cativante e complicado.

O filme segue Edward, um homem que, após uma cirurgia de reconstrução facial, luta para se reconectar consigo mesmo em um mundo que continua a julgá-lo. Sebastian Stan se entrega ao papel de forma visceral, alternando entre vulnerabilidade e ferocidade ao interpretar um personagem que busca uma nova identidade mas se vê preso em padrões sociais e emocionais opressivos. Stan traz um domínio impressionante à tela, mostrando nuances raras em uma performance que mistura comédia e tragédia, desafiando seu público a simpatizar com alguém que é, ao mesmo tempo, vítima e algoz. Em termos de construção de personagem, ele evoca o estilo de grandes atores da atualidade, mas o faz com uma intensidade que o torna não apenas memorável, mas inesquecível.

A ambientação em Nova York é crucial para a narrativa de Um Homem Diferente. Schimberg capta a essência de uma cidade que ao mesmo tempo inspira e sufoca, criando um ambiente que intensifica o drama dos personagens. A opção de Schimberg por uma estética em 16mm reforça essa atmosfera, dando à cidade uma aparência crua e nostálgica que contrasta com o mundo interior transformado de Edward. Este é um ponto em que Schimberg supera realizadores contemporâneos, como Ira Sachs, que também tenta captar a essência de Nova York, mas de maneira mais convencional. Aqui, Schimberg transforma a cidade em um personagem próprio, envolto em uma paleta nostálgica e um cenário quase teatral, onde cada rua e esquina reflete as lutas internas do protagonista​.

Além disso, a trilha sonora composta por Umberto Smerilli é fundamental para essa ambientação. Com uma mistura de elementos clássicos e jazzísticos, a trilha acompanha a jornada de Edward, ora sutilmente ao fundo, ora explodindo com intensidade nas cenas mais dramáticas. Smerilli utiliza arranjos que lembram o jazz clássico nova-iorquino, mas acrescenta uma complexidade emocional que ressoa profundamente com o arco do protagonista. A trilha reflete a solidão e o caos emocional de Edward, servindo quase como uma extensão de seu estado psicológico, e se torna inesquecível, grudando na mente do espectador muito após o final do filme​.

Outro aspecto fascinante do filme é o triângulo amoroso entre Edward, Oswald (interpretado por Adam Pearson) e Ingrid (Renate Reinsve). Schimberg não trata essas relações com superficialidade; pelo contrário, ele constrói um enredo que constantemente desafia as expectativas do público. Pearson, que já havia trabalhado com Schimberg em Chained for Life, traz uma autenticidade comovente a Oswald, um personagem que tanto inspira quanto perturba Edward, transformando suas inseguranças e ambições de maneira complexa. Sua entrada na vida de Edward é ao mesmo tempo inesperada e inevitável, e a amizade que eles desenvolvem é repleta de camadas, que vão da admiração mútua à rivalidade latente.

Renate Reinsve, como Ingrid, completa esse triângulo com uma atuação que transmite uma mistura de gentileza e frieza calculada. Sua personagem se torna o ponto de convergência das tensões entre Edward e Oswald, oscilando entre afeto e desconfiança. Schimberg desenha essas relações com um cuidado notável, permitindo que cada cena revele novas facetas dos personagens e suscite novas emoções no público. Não há uma linha clara entre mocinho e vilão; cada personagem é ao mesmo tempo vítima e agressor, um reflexo da complexidade da experiência humana e das relações interpessoais. O espectador é, assim, levado a um redemoinho emocional, onde a empatia e o julgamento oscilam cena após cena​.

Um Homem Diferente também contribui para o debate sobre a busca incessante pela beleza e a pressão para se adequar a padrões superficiais de aceitação. Schimberg apresenta a transformação física de Edward não como um "renascimento" no sentido clássico, mas como um experimento doloroso e ambíguo, onde os benefícios e as desvantagens se misturam. Comparado a outros filmes que abordaram a temática da beleza, como o exagerado Feios e o intenso A Substância, Um Homem Diferente opta por uma abordagem mais introspectiva e irônica. A crítica social está presente, mas Schimberg não recorre a lições de moral fáceis; ele prefere explorar as contradições dos personagens e os caminhos tortuosos da psique humana, proporcionando uma experiência muito mais rica e densa.

A narrativa se aprofunda tanto nas inseguranças de Edward quanto nas dos outros personagens, ampliando a discussão para além do físico e entrando em questões de identidade, propósito e pertencimento. Esse questionamento sobre o que significa "ser belo" em uma sociedade obcecada por aparências torna-se uma meditação ao mesmo tempo pessoal e universal. Edward, ao se ver com uma "nova face", enfrenta a dolorosa realidade de que sua transformação externa não pode, por si só, resolver suas angústias internas. O filme sugere que a verdadeira transformação exige mais do que uma mudança física; ela exige uma mudança de perspectiva e autoconhecimento​.

A direção de Aaron Schimberg é, sem dúvida, um dos pontos altos de Um Homem Diferente. Ele equilibra com maestria o drama e a comédia, criando uma narrativa que é ao mesmo tempo séria e absurda. Inspirando-se em diretores como David Lynch e Larry David, Schimberg explora o lado sombrio e absurdo da experiência humana, ao mesmo tempo em que mantém um toque de humor sutil que permeia a trama. O uso de 16mm, as escolhas de enquadramento e o jogo de luzes de Wyatt Garfield conferem ao filme um visual retrô que reflete a imperfeição de Edward e a ambiguidade da narrativa. Essa estética reflete o próprio tema do filme: a beleza na imperfeição, a verdade no erro.

Schimberg também se destaca ao evitar os clichês de uma narrativa convencional de superação e vitória. Ele opta por uma abordagem mais subversiva, onde Edward, em vez de encontrar redenção ou aceitação completa, enfrenta um caminho de autodescoberta cheio de contradições e momentos de auto-sabotagem. Essa escolha torna a narrativa mais realista e impactante, forçando o espectador a confrontar suas próprias ideias sobre aceitação, empatia e o que significa realmente mudar​.

Um Homem Diferente é uma obra-prima emocional e estética, um filme que se destaca por sua complexidade e profundidade em um ano marcado por questionamentos sobre beleza e identidade. A performance brilhante de Sebastian Stan, a trilha marcante de Umberto Smerilli e a direção visionária de Schimberg fazem deste filme um dos melhores de 2024. Ele vai além de uma simples narrativa sobre transformação física, tornando-se uma meditação sombria e hilariante sobre o que significa ser diferente. Ao final, Schimberg nos deixa com uma obra que é ao mesmo tempo emocionalmente devastadora e extremamente cativante, um verdadeiro marco no cinema contemporâneo.