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outubro 26, 2024

Tatuagem (2013)

 


Título original: Tatuagem
Direção: Hilton Lacerda
Sinopse: Recife, 1978. Clécio Wanderley (Irandhir Santos) é o líder da trupe teatral Chão de Estrelas, que realiza shows repletos de deboche e com cenas de nudez. A principal estrela da equipe é Paulete (Rodrigo Garcia), com quem Clécio mantém um relacionamento. Um dia, Paulete recebe a visita de seu cunhado, o jovem Fininha (Jesuíta Barbosa), que é militar. Encantado com o universo criado pelo Chão de Estrelas, ele logo é seduzido por Clécio. Não demora muito para que eles engatem um tórrido relacionamento, que o coloca em uma situação dúbia: ao mesmo tempo em que convive cada vez mais com os integrantes da trupe, ele precisa lidar com a repressão existente no meio militar em plena ditadura.


Tatuagem, de Hilton Lacerda, é uma obra que se destaca pelo contexto histórico em que se desenrola, mas, ao mesmo tempo, se perde em uma narrativa que tenta desafiar convenções de forma mais ostensiva do que sutil, o que pode acabar distraindo o espectador de seus pontos mais interessantes. Situado em plena ditadura militar brasileira dos anos 1970, o filme constrói uma trama sobre resistência cultural, liberdade e relações afetivas, marcada pela aura do teatro marginal e das artes subversivas. Ele explora o relacionamento entre Clécio (Irandhir Santos), diretor de uma trupe teatral, e o jovem soldado Fininha (Jesuíta Barbosa), trazendo a tensão entre a rigidez militar e a pulsante contracultura da época.

Tecnicamente, Tatuagem é um filme visualmente provocador. A direção de arte, assinada por Renata Pinheiro, consegue reproduzir com fidelidade os cenários de um Brasil efervescente, ao mesmo tempo caótico e colorido, que pulsa com energia subversiva. Esse trabalho de ambientação é um ponto alto, com detalhes que ajudam o espectador a mergulhar no universo quase onírico do grupo de artistas. Entretanto, a estética marginal que o filme busca evocar, com sua teatralidade carregada e cenas provocativas, é, por vezes, excessiva, o que pode fazer com que o impacto dramático se dissipe em prol de uma crueza que não traz sempre a profundidade esperada.

No aspecto da narrativa, Hilton Lacerda tenta construir um cenário onde o amor e a liberdade enfrentam os grilhões da repressão militar. No entanto, o roteiro, também assinado por Lacerda, parece hesitar entre um drama político e um romance íntimo, sem conseguir equilibrar completamente as duas propostas. A trama muitas vezes pende para o óbvio e demora a se desenvolver, algo que impacta a fluidez do filme. Esse problema, combinado com alguns diálogos que soam forçados, impede que a história ganhe todo o impacto emocional que poderia, considerando o potencial dos personagens.

Em termos de atuações, Jesuíta Barbosa é, sem dúvida, o ponto mais forte do filme. Interpretando Fininha, ele traz uma entrega completa, imprimindo ao personagem uma vulnerabilidade e autenticidade que sustentam boa parte da carga emocional do filme. Barbosa transita com facilidade entre a doçura e o desejo de liberdade de Fininha e os conflitos internos de um jovem que carrega o peso da repressão social. Sua atuação é crua e natural, tornando o personagem crível e oferecendo ao público uma janela íntima para o dilema de Fininha, entre o desejo de se libertar e a pressão de sua função militar. É essa performance que dá ao filme seu brilho, em contraste com a abordagem mais caricata que a direção dá a outros personagens.

Irandhir Santos, por sua vez, é um ator de imensa competência, mas, aqui, parece um pouco aquém de seu talento. Sua interpretação de Clécio, o líder excêntrico do grupo teatral, por vezes beira o estereótipo. Embora a intenção seja representar uma figura intensa e desafiadora, o personagem carece de uma complexidade que possa realmente comover. A carga dramática recai mais sobre o relacionamento entre Clécio e Fininha, mas, sem uma base sólida no roteiro para desenvolver essa química, algumas cenas parecem forçadas. Os momentos de intimidade entre os dois variam entre o genuíno e o artificial, deixando o espectador sem a conexão profunda que a trama sugere.

Outro aspecto técnico que merece destaque é a fotografia de Ivo Lopes Araújo. Com uma paleta de cores vibrante e contrastante, Araújo constrói uma atmosfera de liberdade e transgressão, realçando o contraste entre o ambiente boêmio do grupo teatral e o peso da ditadura. A iluminação é usada para destacar a sensualidade e a teatralidade das performances, criando uma identidade visual que flerta com o grotesco e o exagerado. No entanto, essa escolha visual por vezes se torna repetitiva, e a fotografia acaba reforçando a mesma mensagem de forma insistente, sem novas nuances ou experimentações ao longo da narrativa.

A trilha sonora de DJ Dolores é outro elemento que merece menção. Com uma mistura de ritmos que vão do rock ao experimental, a trilha ajuda a consolidar o espírito anárquico do filme, mesmo que em alguns momentos também acabe sobrecarregando as cenas mais introspectivas. A música se alinha com o estilo de vida transgressor dos personagens, mas, em alguns casos, acaba eclipsando o próprio conteúdo emocional, o que contribui para a sensação de que o filme coloca estilo acima da substância.

A montagem, assinada por Mair Tavares, apresenta uma tentativa de ritmo dinâmico, especialmente nas cenas de show e nas performances do grupo teatral, mas sofre com uma falta de coesão. A sequência das cenas e a transição entre momentos de contemplação e os mais caóticos nem sempre funcionam de forma harmônica, e isso compromete a fluidez. As passagens abruptas entre cenas acabam prejudicando a imersão na história, interrompendo a continuidade narrativa. Além disso, alguns dos momentos mais simbólicos ou sensíveis acabam perdendo força diante da montagem que não se permite pausas ou silêncios, o que poderia intensificar a experiência emocional.

Ainda assim, Tatuagem é um filme que tenta capturar o espírito de uma época e o desejo de liberdade de um grupo que ousa desafiar as convenções sociais. Embora o roteiro e a execução apresentem limitações, Jesuíta Barbosa entrega uma performance memorável que vale a experiência. Seu talento e presença em cena dão a “Tatuagem” uma intensidade que outras partes do filme, infelizmente, não acompanham. Em um filme onde a ousadia estética se sobrepõe à narrativa, é o trabalho dos atores – e, em especial, de Barbosa – que oferece os momentos de maior autenticidade.

No fim, Tatuagem parece uma obra que almeja mais do que consegue alcançar. Ao tentar ser tão provocador e transgressor, o filme acaba se distanciando daquilo que poderia torná-lo realmente impactante: uma conexão genuína com o espectador. A provocação parece querer chocar mais do que comunicar, o que limita a profundidade da história e compromete a experiência geral. Mesmo assim, fica a marca de Jesuíta Barbosa, cujo talento transparece como uma tatuagem invisível no coração do filme. Em meio à narrativa um tanto dispersa, é ele quem consegue, de fato, deixar uma impressão.

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