Rio, 40 Graus (1955) é um marco do cinema brasileiro, amplamente reconhecido como um dos precursores do Cinema Novo. A obra de Nelson Pereira dos Santos, inspirada pelo neorrealismo italiano, trouxe às telas uma representação crua e direta da vida nas favelas cariocas, até então inexplorada em tal dimensão pelo cinema nacional. No entanto, a análise da execução artística e técnica de Rio, 40 Graus revela tanto os méritos de sua ousadia temática quanto as limitações em sua forma e narrativa, que podem tornar a experiência aquém do esperado.
Rio, 40 Graus apresenta o cotidiano de cinco meninos que vendem amendoim pelas ruas e praias do Rio de Janeiro. É uma premissa simples, mas repleta de potencial ao tentar captar a realidade das classes populares, num esforço claro de abordar as tensões sociais e raciais do Brasil dos anos 50. No entanto, ao longo da narrativa, fica evidente que a simplicidade da premissa esbarra na falta de um desenvolvimento que realmente envolva o espectador em uma jornada emocional com esses personagens. A abordagem episódica acaba criando uma fragmentação da história, fazendo com que o filme pareça mais uma sequência de esquetes do que uma narrativa coesa e impactante.
A câmera de Nelson Pereira dos Santos percorre os becos, ladeiras e praias do Rio com um olhar quase documental. Essa escolha estética remete ao espírito do neorrealismo, que valoriza a filmagem em locações reais e o uso de atores não profissionais, um recurso técnico audacioso para a época. No entanto, o preciosismo com o registro cru e direto da vida nas favelas acaba pesando, prejudicando o ritmo e deixando a impressão de um filme amador, cujas cenas poderiam ser mais bem editadas e alinhadas para um impacto maior. Apesar de sua sinceridade, a técnica acaba se sobrepondo ao próprio conteúdo, enfraquecendo a narrativa.
A trilha sonora de Rio, 40 Graus busca incorporar elementos da música popular brasileira, contribuindo para a ambientação de suas cenas externas. Ainda assim, ela não consegue sustentar ou intensificar os momentos chave do filme, deixando a experiência sonora inconsistente. O uso de som direto, novidade para o cinema brasileiro da época, revela-se uma faca de dois gumes: por um lado, traz uma autenticidade interessante ao cotidiano retratado, mas por outro, mostra-se incômodo ao não ser bem balanceado, o que torna o áudio confuso em algumas partes. Esse detalhe técnico revela uma carência de recursos e técnica que tira o brilho de uma intenção que poderia ser muito mais forte.
Embora o filme tenha a nobre intenção de representar a vida dos mais marginalizados, os personagens de Rio, 40 Graus permanecem unidimensionais e, em sua maioria, carecem de profundidade. Os meninos que conduzem a trama são limitados por diálogos expositivos e cenas pouco inspiradas que dificilmente permitem uma conexão mais profunda com suas jornadas. A representação dos moradores das favelas, apesar de bem-intencionada, resvala em estereótipos, e as complexidades de suas vidas diárias são apenas tangenciadas.
Em vez de uma exploração mais detalhada e humana de suas dificuldades e ambições, a obra se contenta em exibir o cenário de pobreza sem realmente expandir os contextos e subjetividades dos personagens. Esse ponto crítico reflete na falta de uma visão mais sensível e rica da vida nas favelas, algo que o Cinema Novo viria a desenvolver mais profundamente em filmes posteriores, como Vidas Secas (1963), também de Nelson Pereira dos Santos, e Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha.
Um dos problemas mais evidentes de Rio, 40 Graus é seu ritmo irregular, que se arrasta em várias partes, prejudicando a imersão do espectador. Ao contrário do que vemos no neorrealismo italiano, onde a cadência mais lenta geralmente acrescenta uma camada de reflexão e intensidade emocional, aqui a lentidão funciona como um entrave à narrativa. A edição parece preguiçosa em diversos momentos, e certas cenas prolongadas demais passam a sensação de que faltou refinamento na construção do fluxo da história.
Em termos de direção, Nelson Pereira dos Santos busca uma autenticidade e um realismo corajosos, mas a execução acaba enfatizando o amadorismo e a imprecisão. Isso é perceptível na falta de transições bem trabalhadas entre as cenas, o que causa uma sensação de desconexão e reforça a natureza episódica do filme. A escolha de atores não profissionais, embora gere cenas espontâneas, também traz atuações irregulares, o que intensifica a impressão de um filme sem o acabamento necessário para prender a atenção do espectador.
Rio, 40 Graus é, sem dúvida, um filme importante para o contexto brasileiro. Sua coragem em denunciar as desigualdades sociais e seu papel como precursor do Cinema Novo merecem aplausos. Mas, ao analisar a obra como um produto cinematográfico, as intenções claramente não se traduzem em um resultado que envolva ou que traga uma experiência satisfatória. A insistência em um tom quase documental, somada à ausência de uma narrativa envolvente e ao fraco desenvolvimento dos personagens, enfraquece o impacto da obra.
A tentativa de Nelson Pereira dos Santos de capturar a essência do Rio de Janeiro é um projeto ambicioso e louvável, mas que fica marcado mais por suas falhas técnicas e narrativas do que por um potencial de engajamento com a plateia. Seu valor histórico não é discutível, mas enquanto filme, Rio, 40 Graus deixa a desejar e pode facilmente ser visto como uma tentativa frustrada de alcançar a profundidade do neorrealismo italiano.
Em conclusão, Rio, 40 Graus apresenta uma visão instigante e inédita para sua época, mas sua execução não acompanha a ousadia da proposta. Faltou polimento para que o impacto fosse mais intenso e mais duradouro. Assim, ao invés de permanecer como uma obra memorável pela qualidade cinematográfica, o filme se fixa na memória mais pelo valor documental e pelo seu lugar no início de um movimento do que pela sua própria estética e narrativa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário