Ceyda Torun nos leva pelas ruas de Istambul em Nove Vidas: Gatos em Istambul (Kedi, 2017), um documentário inusitado, que se desenrola em uma cidade efervescente e cheia de história, através dos olhos de um protagonista inesperado: o gato. No entanto, o documentário é muito mais do que uma exploração de felinos urbanos; é uma celebração da interação entre esses animais e a cultura turca, e um profundo testemunho do vínculo entre uma comunidade e seus bichanos, marcando um trabalho tão visual quanto emocionalmente tocante.
Nove Vidas não segue uma estrutura documental convencional, deixando-se levar por um formato mais sensorial e poético. Em vez de uma narrativa rígida ou linear, ela explora uma narrativa fluida, onde cada gato é apresentado como um personagem individual, com suas próprias peculiaridades e histórias. A narrativa se divide entre personagens felinos distintos, como Psikopat, Sari, e Gamsiz, e suas rotinas em Istambul. Cada um é tratado com o devido cuidado, e cada nome representa uma personalidade única e instigante, revelando traços de humor, coragem e afeto. A escolha de contar a história dos gatos como indivíduos, ao invés de representá-los como um grupo unificado, foi uma sacada que faz o espectador se conectar com os bichanos e querer saber mais sobre eles.
A decisão de Torun de capturar o mundo a partir de um ponto de vista baixo, muitas vezes à altura dos gatos, permite que o espectador sinta a cidade da mesma maneira que esses animais. Esse ângulo especial intensifica a experiência e cria uma sensação de imersão que torna Istambul quase um personagem adicional no filme. Cada esquina, beco e café se torna vivo e expressivo, como se os muros contassem histórias sobre a cidade.
No aspecto visual, a cinematografia de Nove Vidas é esplêndida e surpreendentemente complexa. Torun trabalhou com o diretor de fotografia Charlie Wuppermann para capturar a essência de Istambul com uma câmera fluida e observadora. O uso de drones, câmeras no nível do solo e imagens aéreas proporciona uma variedade visual que mantém o filme dinâmico e atrativo. Os movimentos da câmera seguem os gatos por telhados e ruelas com uma fluidez que dá a impressão de que a câmera foi feita para seguir esses seres, conferindo ao documentário uma qualidade quase ficcional em certos momentos.
É especialmente notável como o trabalho de Wuppermann e Torun nos faz sentir parte do cotidiano da cidade, mesclando o grandioso e o minucioso. Em uma tomada, vemos o movimento frenético da cidade, e em outra, uma simples lambida de um gato à beira de uma calçada. Essa mudança de escala, do macro para o micro, nos dá a dimensão tanto da grandiosidade da cidade quanto da simplicidade que torna a relação com esses animais tão especial.
A trilha sonora, assinada por Kira Fontana, complementa a atmosfera do filme com toques suaves e melodias que se misturam com os sons naturais de Istambul, como o burburinho das ruas e o canto dos pássaros. A música é utilizada de forma cuidadosa, dando espaço para que os sons ambientais desempenhem seu papel na construção da imersão. Por exemplo, em cenas em que os gatos caçam ou interagem com o ambiente, o silêncio ou os sons sutis de passos e miados servem como um pano de fundo que acentua o clima da cena.
Além disso, os depoimentos das pessoas também contribuem para a criação da ambiência sonora. Habitantes locais explicam com naturalidade e carinho o que os gatos significam para eles, e suas vozes se misturam aos sons da cidade de forma orgânica, em uma sinergia que parece sem esforço, mas claramente demandou uma edição sonora apurada. Esses elementos sonoros formam uma camada emocional que se aprofunda ao longo do filme, dando ao espectador uma sensação de estar ouvindo uma conversa íntima sobre Istambul.
O filme também aborda, mesmo que sutilmente, questões sociais e culturais importantes, como o papel dos gatos na cultura turca e a forma como a cidade os adotou como símbolos de liberdade e autonomia. Os gatos de rua, para muitos, representam a resistência e a liberdade, conceitos que dialogam com a própria história da cidade de Istambul, uma metrópole em constante transformação e cheia de contrastes. Ao enfatizar essa conexão simbólica, Nove Vidas oferece uma perspectiva única sobre como uma cidade e seus habitantes se moldam mutuamente, criando laços que transcendem a simples convivência.
Além disso, o documentário também se destaca por transmitir uma mensagem ecológica e comunitária. O respeito e cuidado demonstrados pelos habitantes locais em relação aos gatos são reflexos de uma visão de mundo onde humanos e animais coexistem em harmonia. Isso é especialmente relevante em um contexto urbano, onde, normalmente, o espaço é disputado, mas em Istambul parece haver uma trégua sagrada entre humanos e gatos.
Nove Vidas: Gatos em Istambul é, em essência, uma carta de amor tanto aos gatos quanto à cidade. Ao longo de seus 79 minutos, Ceyda Torun constrói uma narrativa encantadora, que vai muito além da mera observação de felinos e se aprofunda na dinâmica humana-animal de uma forma quase filosófica. Este não é um filme que busca grandes arcos dramáticos ou conflitos, mas sim um estudo de personagens — humanos e felinos — que nos convida a desacelerar e observar o mundo ao nosso redor com mais atenção e compaixão.
O trabalho de Torun, em seu conjunto, é uma verdadeira ode a uma convivência harmoniosa entre espécies, algo que poucas cidades no mundo conseguem alcançar de forma tão bonita e natural quanto Istambul. E é essa simplicidade quase ingênua que torna o documentário uma experiência tão encantadora e, de certa forma, transformadora. É um lembrete de que, por vezes, o extraordinário se esconde nas menores interações cotidianas, e que, para apreciar isso, basta observar com os olhos de um gato.
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