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outubro 26, 2024

Nosferatu (1922)

 


Título original: Nosferatu, eine Symphonie des Grauens
Direção: F. W. Murnau
Sinopse: Hutter (Gustav von Wangenheim), agente imobiliário, viaja até os Montes Cárpatos para vender um castelo no Mar Báltico cujo proprietário é o excêntrico conde Graf Orlock (Max Schreck), que na verdade é um milenar vampiro que, buscando poder, se muda para Wisborg, espalhando o terror na região. Curiosamente quem pode reverter esta situação é Ellen (Greta Schröder), a esposa de Hutter, pois Orlock está atraído por ela.


Quando falamos sobre os filmes que definiram o cinema de horror, Nosferatu não é apenas uma referência histórica; é uma obra revolucionária que transformou para sempre o gênero. A direção magistral de F. W. Murnau combinou técnica, atmosfera e audácia narrativa para criar algo muito além de uma simples história de vampiros. Lançado em 1922, o filme é uma adaptação não oficial do romance Drácula, de Bram Stoker, que, apesar das polêmicas legais, se destacou como um marco do expressionismo alemão, elevando a estética e o simbolismo a um nível que poucos filmes conseguiram alcançar.

O uso da luz em Nosferatu é uma aula de cinema em si. Murnau trabalha com sombras de forma quase mística, como uma extensão das trevas que envolvem o vampiro, o icônico Conde Orlok, interpretado de forma sombria e intensa por Max Schreck. O design de luzes e sombras atua quase como um personagem próprio, levando o espectador a uma experiência hipnótica, ora sufocante, ora assustadora. As sombras de Orlok, por exemplo, são quase entidades autônomas que se estendem, distorcem e amplificam o terror. Esse uso de sombras é magistral na famosa cena em que Orlok sobe as escadas da casa de Ellen, sua silhueta projetada na parede, como se o horror estivesse se infiltrando na própria alma da vítima.

A fotografia é outro elemento primoroso, responsabilidade de Fritz Arno Wagner, que utilizou ângulos inovadores para a época e explorou o contraste de luzes para potencializar o clima sinistro. Esse trabalho não apenas destaca a figura ameaçadora de Orlok, mas também captura a decadência e a opressão de Wisborg, a fictícia cidade em que a narrativa se desenrola. Wagner, colaborador de outras produções expressionistas, era conhecido por sua habilidade em criar atmosferas densas, e em Nosferatu ele atinge seu ápice criativo, transportando o público para uma dimensão onde o medo se torna quase palpável.

Max Schreck como Conde Orlok é uma das atuações mais memoráveis da história do cinema. Schreck não só interpreta, ele encarna o vampiro. Sua presença cadavérica, com as unhas alongadas, olhos arregalados e uma postura rígida, confere a Orlok uma estranheza alienígena, como se ele estivesse fora de qualquer moral ou humanidade. Essa aparência marcante de Orlok foi tão impactante que criou mitos sobre Schreck ser, ele próprio, um vampiro, o que inspirou até a criação do filme A Sombra do Vampiro (2000), em que Willem Dafoe interpreta Schreck como um verdadeiro monstro.

O trabalho de Schreck é um dos maiores exemplos de como um ator pode transmitir camadas de horror sem uma palavra sequer, confiando apenas em sua presença física e nos gestos mínimos. Sua atuação é visivelmente influenciada pelo teatro expressionista alemão, onde cada movimento tinha uma carga emocional quase sobrenatural. Em uma era sem som, a capacidade de Schreck de aterrorizar sem dizer uma palavra torna sua performance ainda mais surpreendente.

Nosferatu é um dos exemplos mais puros do expressionismo alemão. Este movimento, que floresceu na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, procurava explorar temas sombrios e psicológicos por meio de cenários distorcidos, iluminação dramática e atuações intensamente expressivas. A estética de Nosferatu, com cenários simplistas mas carregados de simbolismo, faz com que o horror pareça uma presença etérea que flutua acima do filme. Isso inspirou não apenas o gênero de horror, mas o cinema como um todo. Diretores como Tim Burton, David Lynch e até Alfred Hitchcock beberam da fonte de Nosferatu em suas obras, usando elementos do expressionismo para dar profundidade psicológica e visual aos seus filmes.

É interessante notar que, ao contrário de muitos filmes expressionistas que optavam por cenários pintados ou artificiais, Murnau filmou muitas cenas em locações reais, como o castelo de Orava, na Eslováquia, para representar o castelo do Conde Orlok. Essa fusão entre o artificial e o real cria uma atmosfera de pesadelo, onde o espectador não sabe ao certo se está observando o mundo real ou uma distorção da realidade.

A trilha sonora original de Hans Erdmann, embora perdida, foi reconstruída várias vezes ao longo dos anos e se tornou um elemento essencial na experiência de Nosferatu. A música, em suas diferentes versões, sempre busca traduzir o terror e a tensão que permeiam o filme. Em uma obra muda, a trilha sonora assume o papel de narrador, conduzindo o espectador pelas nuances de horror psicológico que Murnau desenhou. Hoje, várias versões e orquestras interpretam a trilha de Erdmann, mantendo a essência macabra e melancólica que complementa tão bem o filme.

O aspecto controverso de Nosferatu reside na tentativa de adaptação de Drácula, de Bram Stoker, sem a autorização de sua viúva, Florence Stoker. A produtora Prana Film, responsável pelo filme, acreditava que, alterando os nomes e alguns detalhes da trama, poderia evitar problemas de copyright. Conde Drácula tornou-se Conde Orlok, Jonathan Harker foi renomeado para Hutter, e assim por diante. No entanto, Florence processou a Prana Film, exigindo a destruição de todas as cópias do filme. Apesar de uma ordem judicial para destruir o filme, cópias clandestinas foram preservadas, garantindo que Nosferatu sobrevivesse ao tempo e se tornasse o clássico que conhecemos hoje.

Essa batalha judicial e o fascínio pelo enigmático Conde Orlok acabaram gerando uma lenda que só aumentou o culto em torno do filme. Ironia ou destino, essa tentativa de apagar Nosferatu da história fez com que ele se tornasse ainda mais poderoso e importante para o cinema.

Além de seu impacto visual, Nosferatu explora temas profundos sobre morte, sexualidade e medo do desconhecido. O Conde Orlok representa uma força inevitável e destruidora, que ameaça a ordem natural da vida e desafia a lógica da ciência e da razão. A jornada de Hutter para o castelo de Orlok pode ser vista como uma metáfora para o confronto do homem com seus próprios demônios. A imagem do vampiro que espalha a peste é um reflexo do medo da morte que assombrava a Europa pós-guerra, e o próprio Orlok simboliza a presença da morte que contamina o mundo ao seu redor.

Outro tema latente é a sexualidade sombria e reprimida, representada pela fixação de Orlok por Ellen. A cena em que ele se inclina sobre ela enquanto ela dorme é carregada de tensão sexual e de um terror implícito que sugere os perigos do desejo reprimido e do proibido. Ellen é a figura sacrificial que, ao permitir que Orlok a tome, acaba destruindo-o ao amanhecer. Aqui, Murnau parece propor uma reflexão sobre os impulsos humanos e os limites entre o desejo e a autodestruição.

Nosferatu não é apenas um filme de terror; é uma experiência de imersão em uma realidade onde o medo transcende o visível e se torna quase tangível. É um trabalho de beleza gótica e poesia visual que resiste ao teste do tempo, inspirando gerações de cineastas, críticos e amantes da sétima arte. Sua influência pode ser vista em filmes clássicos e contemporâneos, nos quais a estética do horror e a psicologia do terror encontram novos meios de expressão, mas raramente com a mesma pureza e intensidade.

Murnau conseguiu criar uma obra-prima que transcende o horror e se torna uma meditação sombria sobre a vida, a morte e o desconhecido. Nosferatu permanece inigualável, um testemunho eterno do poder do cinema em capturar os medos mais profundos e secretos da humanidade. Para aqueles que buscam o cinema como arte, como poesia visual e como experiência psicológica, Nosferatu é o ápice.

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