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outubro 11, 2024

Mãe Só Há Uma (2016)

 


Título original: Mãe Só Há Uma
Direção: Anna Muylaert
Sinopse: Pierre descobre que sua família não é biológica quando a polícia prende sua mãe. Confuso, ele vai atrás de seus parentes verdadeiros, que o conhecem como Felipe, e a nova realidade faz com que o rapaz encontre finalmente sua real identidade.


No filme Mãe Só Há Uma (2016), a diretora Anna Muylaert conduz o público por uma jornada de autodescoberta, identidade e pertença, explorando temas como a relação familiar, a construção do gênero e as pressões sociais que tentam moldar quem somos. Muylaert, já consagrada pelo sucesso de Que Horas Ela Volta? (2015), aplica sua habilidade em retratar realidades domésticas com uma narrativa sensível e uma estética crua, abordando a adolescência sob uma ótica de transformações internas e externas. Na pele de Pierre (interpretado por Naomi Nero), um adolescente que descobre ter sido roubado de sua família biológica quando era bebê, Muylaert desenrola a questão central do filme: o que significa realmente ser quem somos, mesmo quando todos ao redor nos forçam a caber em moldes pré-estabelecidos?

A história começa com a revelação chocante de que Aracy (Daniela Nefussi), a mulher que Pierre conhece como mãe, o roubou ainda bebê. Assim, Pierre, que também passa a se chamar Felipe, é forçado a reintegrar-se à família biológica. De uma vida onde podia experimentar sua identidade sem grandes imposições, Pierre passa para uma realidade em que expectativas rígidas de gênero e conduta familiar o sufocam. A complexidade do enredo é enriquecida pela escolha de Nefussi para interpretar tanto Aracy quanto Glória, a mãe biológica de Pierre, o que adiciona um elemento visual e emocional que faz o público refletir sobre as diferentes facetas da maternidade e da criação.

A estética de Mãe Só Há Uma é um dos grandes trunfos de Muylaert, que opta por uma abordagem visual minimalista e crua. A câmera é muitas vezes posicionada de forma a destacar a sensação de clausura e de alienação do protagonista, especialmente nas cenas de interações familiares. As escolhas visuais captam não apenas a tensão das situações, mas também a vulnerabilidade de Pierre, oferecendo ao espectador um espaço para vivenciar, quase em primeira pessoa, as angústias de quem não se encaixa nas expectativas alheias. Essa estética é complementada pela fotografia de Barbara Alvarez, que utiliza iluminação e enquadramentos que evocam uma sensação de documentário, contribuindo para a autenticidade da narrativa​.

O roteiro, também assinado por Muylaert, constrói cuidadosamente a jornada de Pierre sem cair em exageros ou didatismos. A cineasta entrega cenas que são, ao mesmo tempo, sutilmente críticas e emocionalmente impactantes. Um exemplo marcante é a cena do provador de roupas, onde o pai biológico, Matheus (Matheus Nachtergaele), tenta impor ao jovem um estilo de vestimenta que considera "apropriado", ignorando completamente os desejos do próprio filho. Essa cena não apenas expõe a desconexão entre Pierre e sua nova família, mas também coloca em evidência a pressão para que o personagem se conforme às normas de gênero tradicionais​.

Outro ponto forte de Mãe Só Há Uma é a relação entre Pierre e seu irmão biológico, Joca (interpretado por Daniel Botelho). Joca é um dos personagens mais cativantes e serve como contraponto ao mundo de imposições de seus pais. Em contraste com o desconforto constante de Pierre, Joca traz um frescor e uma leveza que tornam a narrativa ainda mais envolvente. A interação entre os dois irmãos mostra como, em meio a pressões e expectativas sociais, é possível encontrar um espaço de compreensão e de apoio mútuo. Botelho, que é ator não profissional, impressiona pela naturalidade de sua atuação, criando cenas que transmitem um afeto genuíno e dão profundidade à trama​.

Na construção de Pierre/Felipe, Muylaert explora a questão da identidade de gênero de forma delicada, mas poderosa. Pierre/Felipe representa a luta contra as restrições sociais impostas pela sociedade patriarcal que espera comportamentos e aparências padronizadas de cada gênero. Para Muylaert, a questão do gênero vai além da sexualidade; trata-se de uma luta por espaço e aceitação em um ambiente que tende a reprimir a autenticidade​

Um dos aspectos mais impactantes do filme é o final aberto, uma escolha que, embora incomum, encaixa-se perfeitamente com a proposta de Muylaert. A diretora opta por deixar Pierre "à própria sorte", permitindo ao espectador imaginar o futuro incerto desse jovem. Ao evitar um desfecho tradicional, o filme preserva sua autenticidade e reforça a sensação de que a jornada de autodescoberta é, em grande parte, solitária e contínua.

Mãe Só Há Uma se consolida como uma peça importante no cinema brasileiro contemporâneo, abordando temas urgentes e polêmicos com uma abordagem original e sensível. Muylaert traz uma crítica social embutida nas relações familiares, questionando o que significa pertencer, ao mesmo tempo em que desafia os padrões de gênero. A diretora, com seu olhar único e inovador, oferece ao espectador uma experiência que não apenas entretém, mas também provoca reflexão sobre as imposições de identidade e os laços familiares.

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