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outubro 30, 2024

Luce (2019)

 


Título original: Luce
Direção: Julius Onah
Sinopse: Luce Edgar é um jovem brilhante, além de ser muito estudioso e campeão em debates ele também é um excelente atleta. Tudo isso faz com que seus pais adotivos sejam muito orgulhosos. No entanto, a professora de Lucas, Harriet, descobre um artigo político escrito por ele que revela traços obscuros de sua personalidade desencadeando uma série de situações negativas na vida de todos os envolvidos.


Quando Luce, dirigido por Julius Onah, entrou no circuito cinematográfico em 2019, prometia um drama provocativo sobre raça, identidade e poder. Baseado na peça homônima de J.C. Lee, o filme se ambienta em uma escola norte-americana de classe média-alta e mergulha em questões morais complexas. Entretanto, apesar de algumas performances inspiradas e da intensidade com que lida com seus temas, Luce apresenta falhas de execução e deixa a desejar em sua construção narrativa, prejudicando o impacto de uma história que, em mãos mais hábeis, poderia ter sido muito mais poderosa.

A história gira em torno de Luce Edgar (Kelvin Harrison Jr.), um brilhante estudante de ensino médio que é o orgulho da escola e dos pais adotivos, Amy (Naomi Watts) e Peter (Tim Roth). Luce foi adotado do país africano devastado pela guerra da Eritreia e, desde então, se tornou o aluno exemplar, um prodígio acadêmico e atleta respeitado. A tranquilidade da vida de Luce, no entanto, é abalada quando sua professora, Harriet Wilson (Octavia Spencer), questiona uma redação que o jovem escreveu, onde faz elogios controversos à violência política.

Harriet decide investigar e acaba encontrando fogos de artifício no armário do rapaz, o que a leva a alertar Amy e Peter sobre uma possível ameaça. Esse acontecimento é o estopim para uma série de dilemas morais, éticos e pessoais que começam a emergir, questionando a verdadeira natureza de Luce. Será ele o prodígio virtuoso que aparenta, ou estaria apenas manipulando todos ao seu redor para esconder um lado obscuro?

Julius Onah conduz a trama com um ar de mistério, oferecendo ao espectador apenas pistas e nuances sobre os personagens. Ele cria uma atmosfera de tensão e dúvida, convidando o público a questionar cada atitude e cada palavra, mas é justamente na execução dessa abordagem que surgem problemas. Onah aposta em uma narrativa que se pretende ambígua, mas que por vezes se perde em sua própria ambição. Em vez de deixar espaço para interpretações, ele frequentemente tropeça ao tentar aprofundar múltiplos temas ao mesmo tempo — como identidade racial, expectativas sociais e a desconfiança que o “sonho americano” nutre em relação a jovens negros de destaque.

A fotografia de Larkin Seiple é eficaz ao transmitir uma sensação de claustrofobia emocional. Planos fechados dominam a tela, destacando o isolamento emocional dos personagens, enquanto a paleta fria e impessoal remete ao ambiente escolar e aos dilemas éticos. Contudo, essa escolha estética, embora interessante, não é suficiente para sustentar o ritmo, que se arrasta em certos momentos e se torna enfadonho, com diálogos que soam repetitivos e cenas que, ao tentar criar tensão, acabam esvaziando o drama.

Se há algo realmente memorável em Luce, é a performance de Octavia Spencer como a professora Harriet Wilson. Spencer, já conhecida por seus papéis em filmes como Histórias Cruzadas e A Forma da Água, traz aqui a atuação mais profunda e intensa de sua carreira. Harriet não é uma personagem simples: ela é uma mulher rígida, que acredita no poder da educação, mas também carrega um viés que é lentamente revelado ao longo do filme. Sua desconfiança em relação a Luce é motivada tanto pelo desejo de proteger os outros quanto por um temor enraizado em seu próprio histórico como mulher negra em uma sociedade que sempre a tratou com desconfiança. Spencer encarna essa complexidade com uma nuance impressionante, conseguindo transmitir um senso de empatia e, ao mesmo tempo, uma determinação implacável.

Além de Spencer, temos a curiosa reunião de Naomi Watts e Tim Roth, revivendo a química que compartilharam em Violência Gratuita (Funny Games US), embora seus papéis aqui sejam bem diferentes daquele filme de terror psicológico. Ambos os atores entregam performances que transitam entre o amor incondicional e o medo crescente em relação ao filho. Watts, como a mãe protetora, enfrenta um conflito interno que a leva a duvidar de seu próprio julgamento, enquanto Roth, como o pai mais pragmático, tenta equilibrar o lado racional e emocional. É uma dupla que já provou seu talento, mas aqui, embora se esforcem, acabam ofuscados pela presença marcante de Spencer e pela indefinição na direção de Onah.

Kelvin Harrison Jr. também merece destaque por sua atuação no papel de Luce. Ele traz uma ambiguidade enigmática ao personagem, jogando com o espectador e os personagens ao seu redor de forma sutil. No entanto, o roteiro falha em fornecer a profundidade necessária para que Luce se torne realmente tridimensional. Em vez disso, ele permanece um enigma até o final, o que pode ser interessante do ponto de vista da narrativa, mas acaba prejudicando a conexão emocional com o público.

Luce tenta ser um drama de ideias, e, nesse ponto, é louvável. O filme coloca o espectador diante de dilemas incômodos, como o racismo velado, a hipocrisia da meritocracia e a pressão das expectativas sociais sobre jovens negros. Harriet representa uma figura que, embora queira proteger a comunidade, acaba agindo de forma preconceituosa. Já Luce é o espelho de uma geração que se sente sufocada pelo peso das expectativas, sendo obrigado a representar algo que talvez não seja.

O filme traz à tona questões fundamentais sobre a natureza da identidade e a moralidade, mas a execução é problemática. A ambiguidade, aqui, não é um recurso que enriquece a trama, mas sim algo que dispersa o foco e deixa o espectador sem uma âncora. Em sua tentativa de provocar o debate, Luce abre muitas portas, mas não se aprofunda o suficiente em nenhuma delas, o que resulta em uma experiência confusa e, em última análise, frustrante.

Luce é um filme que, no papel, tinha todos os ingredientes para se tornar um drama social impactante, mas que tropeça em sua própria ambição. Com um elenco talentoso e temas relevantes, Onah parecia ter nas mãos uma obra com potencial para discutir questões fundamentais sobre identidade e preconceito. No entanto, a execução deixa a desejar, com uma narrativa que se perde em meio a muitas ideias e com uma direção que, ao tentar ser enigmática, acaba tornando o filme excessivamente nebuloso.

A performance de Octavia Spencer, contudo, é um espetáculo à parte e vale o ingresso. Ela entrega uma personagem complexa e inesquecível, com camadas de vulnerabilidade e rigidez que enriquecem o filme. Watts e Roth também oferecem uma química interessante, mas que infelizmente fica restrita a um drama de bastidores para quem lembra de Violência Gratuita.

Em última análise, Luce é um filme que poderia ter sido muito mais. É como uma dissertação escolar que começa com uma tese promissora, mas que falha ao desenvolver os argumentos. Mesmo assim, vale a pena ser visto, ao menos para que o espectador tire suas próprias conclusões sobre essa trama instigante, mas falha, que busca dissecar a complexidade de uma identidade construída entre o orgulho e a dúvida.

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