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outubro 12, 2024

Lamb (2021)

 


Título original: Dýrið
Direção: Valdimar Jóhannsson
Sinopse: Um casal que vive sozinho numa fazenda remota na Islândia tem a sua tranquila existência abalada pela descoberta espantosa de um misterioso recém-nascido entre as suas ovelhas. Eles decidem criar a criança como sua, mas logo enfrentam as consequências de desafiar a vontade da natureza.


Valdimar Jóhannsson trouxe com Lamb (Dýrið, 2021) uma experiência visual e emocional que não se compara a muito do que vemos em thrillers recentes. Este filme islandês, que marca a estreia do diretor em um longa-metragem, é ousado, desafiador e cria uma atmosfera que flerta com o absurdo sem deixar de explorar profundidade emocional. A produção, coescrita por Jóhannsson e o aclamado poeta e escritor Sjón, utiliza as paisagens isoladas e de beleza hostil da Islândia para construir uma narrativa que é tão intensa quanto contida. O filme apresenta uma reflexão existencial sobre a perda, o amor e a relação do ser humano com a natureza, utilizando um simbolismo sutil, mas poderoso, que pode desconcertar espectadores em busca de respostas diretas.

A trama segue María (Noomi Rapace) e Ingvar (Hilmir Snær Guðnason), um casal que leva uma vida aparentemente tranquila em uma fazenda afastada. A atuação de Rapace é um ponto alto, oferecendo uma interpretação de nuances riquíssimas e uma expressão corporal quase tensa que se adequa bem ao papel de uma mulher marcada pela dor e pelo vazio. Rapace, que construiu uma carreira sólida com filmes como Os Homens que Não Amavam as Mulheres, transita aqui por uma gama emocional que vai da serenidade ao desespero de forma silenciosa e quase sufocante. Já Guðnason, também conhecido por papéis de destaque na Islândia, complementa sua atuação com uma presença misteriosa e emocionalmente distante, encaixando-se perfeitamente no tom sombrio da narrativa.

O ponto de partida da trama é curioso e, por vezes, bizarro: após uma descoberta que desafia a natureza, María e Ingvar decidem cuidar de um cordeiro que possui traços humanos. A construção do suspense e do desconforto começa aí, com a combinação do sobrenatural e do fantástico. Jóhannsson deixa a história se desdobrar de forma vagarosa, com diálogos mínimos e uma progressão em que cada plano é cuidadosamente calculado para ampliar o senso de inquietude. Essa estética minimalista faz com que o ambiente seja um personagem central, ampliando a sensação de solidão e isolamento que permeia o filme. A câmera de Eli Arenson é meticulosa, aproveitando as cores frias da paisagem para criar uma atmosfera que parece congelada no tempo, onde o silêncio e a vastidão da natureza são tão ameaçadores quanto fascinantes.

A escolha de efeitos visuais é outro elemento de destaque, especialmente considerando o tema. Em vez de optar por efeitos chamativos ou exagerados, o filme recorre a uma abordagem mais realista e artesanal. A criatura híbrida é representada de maneira a não destoar da estética contida e misteriosa, causando impacto sem cair no grotesco. A criação deste ser, ao mesmo tempo terna e inquietante, simboliza uma série de metáforas sobre paternidade, perda e redenção. Aqui, Jóhannsson e Sjón deixam ao público a tarefa de interpretar o que essa figura representa, mantendo a ambiguidade de um modo que contribui para a atmosfera quase mística.

A trilha sonora, composta por Þórarinn Guðnason, contribui grandemente para a construção de tensão. A música, quando aparece, surge de maneira discreta, pontuando momentos de crescente estranheza. As longas sequências silenciosas permitem que o som ambiente domine, reforçando a imersão e amplificando o clima desolador. O som do vento, dos animais e até mesmo os passos abafados dos personagens sobre a grama molhada servem para fortalecer a sensação de que tudo ao redor possui uma presença quase espiritual. Este minimalismo sonoro é um ponto forte, transportando o espectador para dentro desse microcosmo gélido e sombrio.

Contudo, essa narrativa lenta e pausada pode ser um obstáculo para alguns espectadores. O filme abraça o mistério e a ambiguidade de tal forma que aqueles em busca de uma explicação clara podem sentir-se frustrados. Mas, para os que se permitem envolver pela atmosfera, Lamb oferece uma recompensa na forma de uma experiência sensorial única e uma narrativa que ecoa com interpretações míticas. Há uma clara influência do folclore islandês, e Jóhannsson consegue incorporar essa tradição de forma sutil e inteligente, sem que a história pareça apenas um exercício de estilo.

O desenrolar da trama leva a um clímax que desafia convenções e, de certo modo, rompe com a estrutura linear que o filme vinha adotando até então. É neste ponto que o diretor coloca o público frente a frente com o que há de mais instintivo e visceral, em uma decisão narrativa que pode causar desconforto e choque, mas que fecha a história com uma força trágica. Para alguns, esse desfecho pode parecer abrupto ou inconclusivo, mas ao refletir sobre a jornada dos personagens e o simbolismo do filme, o encerramento faz sentido como uma conclusão que honra a proposta enigmática e filosófica de Jóhannsson.

Em sua essência, Lamb é uma obra sobre a busca por pertencimento e conexão em meio à imensidão da natureza. O filme mistura gêneros – parte drama familiar, parte horror psicológico e parte fábula – de maneira que desafia a categorização. É um exemplo de cinema que não subestima o espectador e que, ao invés disso, lhe confia a tarefa de desbravar os próprios significados. Com atuações precisas, uma direção que sabe utilizar o silêncio como uma ferramenta narrativa e uma fotografia que amplifica o vazio emocional dos personagens, Lamb é uma experiência poderosa, que permanece com o espectador muito depois dos créditos finais.

Por fim, o filme é uma prova de que Jóhannsson é um nome a ser observado no cinema contemporâneo, especialmente se continuar a explorar o lado obscuro das relações humanas e o papel da natureza como espelho das emoções mais profundas e primitivas. Lamb não é um filme fácil de digerir, mas para aqueles dispostos a se embrenhar em sua complexidade e simbolismo, ele oferece uma experiência verdadeiramente única.

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