Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, dirigido por Daniel Ribeiro em 2014, é um marco do cinema brasileiro contemporâneo. A obra ganhou visibilidade internacional por abordar temas complexos, como a deficiência visual e a descoberta da sexualidade, com uma sensibilidade rara de se encontrar em dramas adolescentes. O filme oferece um olhar honesto e delicado sobre as primeiras experiências amorosas e as nuances de crescer em um mundo onde a diferença ainda é motivo de estigmatização. Daniel Ribeiro transforma uma história potencialmente convencional em uma obra que celebra a autenticidade juvenil, sustentada por atuações convincentes e uma direção cuidadosa.
A história acompanha Léo (Ghilherme Lobo), um adolescente cego que enfrenta desafios cotidianos não apenas pela deficiência visual, mas também pelo desejo de encontrar independência e autoconfiança. Ele passa seus dias ao lado de sua melhor amiga, Giovana (Tess Amorim), cuja relação com Léo é de companheirismo sincero e despretensioso. No entanto, a chegada de Gabriel (Fabio Audi) provoca uma revolução no mundo de Léo. A presença de Gabriel catalisa um despertar emocional em Léo, explorando o desejo de autodescoberta e atração. Ribeiro apresenta esses sentimentos de maneira sutil, mas impactante, sem recorrer a estereótipos ou a representações exageradas. É um filme que, ao capturar o espírito da adolescência, se torna universal.
O destaque de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho reside na construção dos personagens e na forma como os atores dão vida a eles. Ghilherme Lobo entrega uma performance contida e convincente como Léo, transmitindo vulnerabilidade e inquietação interior. É notável como ele incorpora os desafios de um adolescente cego, sem nunca forçar ou dramatizar além do necessário. Em vez disso, Lobo usa a linguagem corporal de maneira sutil para representar a desconexão e o desejo de autonomia de Léo. Sua atuação confere ao personagem uma autenticidade que se torna o núcleo emocional do filme.
Tess Amorim, como Giovana, traz um contraste interessante. Ela é a amiga que, em sua própria descoberta de si mesma, enfrenta o ciúme e a insegurança que a relação de Léo com Gabriel provoca. Amorim consegue equilibrar bem a doçura com a insegurança, e sua química com Lobo faz da amizade entre Léo e Giovana um dos pilares mais emocionantes da narrativa. Fabio Audi, por sua vez, faz de Gabriel uma figura acolhedora e sutilmente enigmática. Ele é um personagem que, mesmo com menor tempo de tela, exerce uma influência significativa. Sua atuação é marcada pela simplicidade e pela leveza, essenciais para estabelecer o vínculo romântico com Léo de forma crível e respeitosa.
Daniel Ribeiro é eficiente em seu roteiro e direção, conferindo ao filme um ritmo contemplativo, porém fluido. Ele não cede à tentação de dramatizar exageradamente as adversidades de Léo ou as tensões entre os personagens. Em vez disso, Ribeiro escolhe focar nas pequenas interações, nas trocas de olhares e nas pausas que revelam mais do que qualquer diálogo. Isso é particularmente evidente na maneira como ele retrata a conexão entre Léo e Gabriel, optando por uma abordagem naturalista que permite ao espectador sentir o florescimento gradual do romance.
A escolha de Ribeiro de não utilizar a cegueira de Léo como um ponto central da trama é especialmente significativa. Em vez disso, ele trabalha com sutileza as limitações físicas do protagonista, transformando a deficiência em um elemento presente, mas que não define Léo. Assim, Ribeiro desafia o espectador a enxergar Léo como um jovem com sonhos e inseguranças universais. Isso humaniza o personagem, evitando qualquer tipo de vitimização.
A fotografia de Pierre de Kerchove é essencial para estabelecer o tom do filme. Com planos que enfatizam o ambiente cotidiano, como a escola, a casa de Léo e os espaços públicos, a câmera capta a rotina de Léo com uma simplicidade que ajuda a reforçar a naturalidade do filme. De Kerchove também usa closes de forma eficaz, especialmente nas cenas em que Léo experimenta algo novo, seja uma sensação ou um toque. Essa escolha transmite ao espectador a intensidade dessas descobertas. Os tons suaves e naturais predominam, evocando uma sensação de acolhimento e intimidade.
A direção de arte é discreta, mas eficaz. Os ambientes são domésticos e sem qualquer luxo, refletindo a classe média brasileira e contribuindo para a identificação do público com a narrativa. Os cenários têm uma leve desorganização que confere veracidade ao cotidiano dos personagens, particularmente os quartos de Léo e Giovana, cheios de elementos que remetem à adolescência. Essa simplicidade ajuda a concentrar a atenção nas dinâmicas entre os personagens e na jornada de Léo.
Outro aspecto notável de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho é sua trilha sonora, que contribui para a atmosfera emocional do filme sem nunca roubar a cena. Ribeiro escolheu canções que capturam o espírito adolescente e evocam um misto de nostalgia e desejo. A música é usada de maneira econômica, pontuando os momentos cruciais do filme, como o primeiro toque entre Léo e Gabriel. A trilha ajuda a amplificar o impacto emocional desses momentos sem apelar para o sentimentalismo.
É impossível falar sobre Hoje Eu Quero Voltar Sozinho sem mencionar sua importância na representação LGBTQIA+ no cinema brasileiro. O filme não se limita a contar uma história de amor entre dois jovens; ele aborda o tema de maneira sutil, sem transformar a orientação sexual dos personagens em um problema a ser resolvido ou em uma lição moral. Ribeiro consegue tratar o tema com naturalidade, permitindo que o romance se desenvolva como qualquer outra história de amor adolescente. Essa abordagem é um alívio bem-vindo em um contexto onde, muitas vezes, narrativas LGBTQIA+ são pautadas pelo conflito e pela rejeição.
A deficiência visual de Léo também é tratada com respeito e autenticidade. O filme é cuidadoso ao não transformar a cegueira em uma metáfora para algo maior, mas sim em uma parte do personagem que influencia, mas não define, sua jornada. Ribeiro evita os clichês comuns, optando por uma representação que celebra a normalidade de um protagonista que encontra suas próprias formas de lidar com o mundo ao seu redor.
Hoje Eu Quero Voltar Sozinho é uma obra cativante que se destaca pela autenticidade e pelo respeito com que aborda temas sensíveis. A atuação de Ghilherme Lobo, o roteiro sensível de Daniel Ribeiro e a abordagem sutil de temas complexos fazem deste filme um exemplo de como o cinema pode abordar a adolescência e a descoberta de maneira honesta e tocante. A simplicidade e a sinceridade com que Ribeiro conduz a narrativa permitem que o filme ressoe com qualquer espectador, independentemente de idade ou orientação. Em um gênero onde exageros são comuns, esta é uma história que se destaca por sua sutileza e impacto emocional, trazendo uma experiência genuína e profunda sobre o que significa crescer, amar e encontrar o próprio lugar no mundo.
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