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outubro 11, 2024

Cow (2022)

 


Título original: Cow
Direção: Andrea Arnold
Sinopse: Este filme nos convida a contemplar as vacas, a nos aproximar delas, ver sua beleza e os desafios de suas vidas. Não de uma forma romântica, mas de uma forma real. É um filme sobre a realidade de uma vaca leiteira e o grande serviço que ela nos presta.


Andrea Arnold, conhecida por obras como Aquário (Fish Tank, 2009) e American Honey (2016), retorna ao cinema com um projeto que surpreende tanto pela simplicidade quanto pela profundidade ao trazer para a tela a vida de uma vaca chamada Luma. Cow (2022) é, à primeira vista, um documentário comum sobre a pecuária e a existência de um animal em cativeiro, mas revela-se uma experiência sensorial e emocional incomum. Arnold se propõe a capturar o cotidiano de Luma de maneira naturalista, e o faz com uma delicadeza e empatia que nos coloca dentro do mundo da vaca, criando um laço surpreendentemente íntimo entre o público e o animal.

Arnold escolhe uma abordagem direta e objetiva para narrar a vida de Luma, optando por um documentário observacional sem o uso de um narrador ou de entrevistas, mantendo-se fiel ao ponto de vista animal e dando voz à sua existência sem palavras. Esse estilo de direção nos leva a sentir e a interpretar a realidade de Luma por conta própria, deixando que o ambiente rural e as nuances do cotidiano da vaca falem por si. O silêncio e a ausência de explicações humanas destacam o compromisso de Arnold em observar a vida animal sem interferências, o que potencializa uma experiência contemplativa, onde cada ação de Luma – o caminhar, o descanso, o pastar – ganha uma carga simbólica.

A narrativa visual em Cow explora a singularidade de cada momento vivido por Luma, e Arnold filma suas expressões e movimentos de forma próxima e respeitosa, como se estivesse conduzindo uma personagem humana. Essa técnica é intensificada pelo trabalho de fotografia de Magda Kowalczyk, que se empenha em capturar a pele e o olhar de Luma em ângulos e close-ups detalhados, transmitindo tanto a textura de seu corpo quanto a vastidão de seus sentimentos, ou a nossa percepção deles. A câmera de Kowalczyk tem uma intimidade quase invasiva, mas que, paradoxalmente, respeita o espaço e o tempo de Luma, resultando em uma cinematografia que nos envolve no ritmo de vida do animal.

O som é uma ferramenta crucial em Cow, e Arnold sabe explorá-lo com sabedoria. O filme não conta com uma trilha sonora tradicional – o que pode surpreender e até alienar espectadores que busquem por uma narração musical que guie as emoções. No lugar da trilha, temos uma ambientação sonora crua e realista: o mugido das vacas, o balido dos bezerros, o som da ordenha e o farfalhar do capim. Esse cenário auditivo contribui para a autenticidade da experiência, oferecendo ao espectador uma aproximação sonora dos pequenos momentos de alegria, exaustão e interação de Luma com o ambiente e outros animais.

Arnold subverte as convenções do documentário ao transformar o cotidiano de Luma em uma espécie de poesia visual e sonora, onde cada som natural ecoa o cotidiano da vida em cativeiro e, ao mesmo tempo, a grandeza contida em cada detalhe da vida animal. A ausência de música orquestrada ou de trilha impositiva faz com que os barulhos do dia a dia rural dominem a narrativa, como uma espécie de trilha silenciosa, oferecendo uma crueza quase sinestésica para a audiência.

Arnold não é didática ou sentimentalista. Ela não nos conduz por uma narrativa de denúncia explícita, mas nos dá a matéria-prima para que reflitamos sobre a vida de Luma e, por extensão, sobre a vida dos animais em geral no contexto da exploração agrícola. Cow nos apresenta a realidade do trabalho diário de uma vaca leiteira, da rotina do parto e da separação constante de seus bezerros, mas sem sentimentalismo ou moralismo excessivo, apenas mostrando a verdade como ela é. Isso oferece uma perspectiva empática, que não apela para o choque visual, mas para a observação sincera.

O impacto desse enfoque é justamente o contraste entre a liberdade de Luma, quando ela está pastando, e a opressão dos ciclos de exploração. A cada cena, Arnold nos desafia a refletir sobre a condição animal sem pregar discursos morais, deixando que a experiência em si provoque questionamentos em quem assiste. Essa abordagem sutil confere ao filme uma relevância e uma profundidade inesperadas, abrindo espaço para um documentário que se torna uma jornada reflexiva sobre a nossa relação com os animais e sobre o que consideramos ser o ciclo "natural" da vida animal sob domesticação.

A montagem do filme, realizada por Rebecca Lloyd, constrói um fluxo natural que reproduz o ritmo da vida de Luma sem pressa e sem pressões. Lloyd respeita os momentos de repouso e de angústia de Luma, utilizando cortes suaves e transições silenciosas que mantém a imersão intacta. É uma edição discreta, mas eficaz, que permite que a vida de Luma respire através do filme e nos transmita uma percepção sensorial e emocional da narrativa.

A estética visual contribui para esta experiência, com um trabalho de cores frias e realistas que espelham o cenário rural e a beleza modesta da natureza ao redor de Luma. A fotografia naturalista, com luzes suaves e ângulos baixos, é quase meditativa, guiando o espectador por cada dia da vida da vaca com uma proximidade íntima e, ao mesmo tempo, profundamente respeitosa.

Cow é, ao fim, uma obra que não busca ser um manifesto, mas que, de maneira indireta, se torna um convite para que observemos e respeitemos as vidas que passam ao nosso redor, tantas vezes despercebidas. Andrea Arnold, com essa escolha cinematográfica tão singular, nos faz perceber o mundo através dos olhos de Luma, numa aproximação humana que nos obriga a repensar o que é viver, o que é ser livre e o que significa empatia em seu sentido mais essencial.

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