Eduardo Coutinho, em sua maneira singular de capturar a essência humana, entrega com Babilônia 2000 (2001) um retrato impressionante, quase visceral, das complexidades e contradições do Brasil contemporâneo no virar do século. Ambientado na favela da Babilônia, no Rio de Janeiro, o filme adota uma abordagem documental clássica, mas é a maneira com que Coutinho se infiltra nas camadas da vida e das aspirações desses personagens que dá ao filme sua força incontestável.
Filmado durante o último dia de 1999, o documentário não é apenas um registro de uma data, mas uma exploração poética e densa sobre o que a virada de um milênio significa para aqueles que vivem em meio a uma realidade tão contrastante. Nesse sentido, a direção de Coutinho é menos invasiva e mais empática; ele escolhe se colocar atrás da câmera como um ouvinte, e não como um intruso. Essa escolha ressoa em cada frame, onde os personagens parecem conversando diretamente conosco, com uma sinceridade que só um documentarista com o olhar apurado como o dele poderia extrair.
No aspecto técnico, Babilônia 2000 conta com uma câmera bastante crua, muitas vezes tremida e sem estabilidade, o que proporciona uma proximidade com o espectador que, longe de causar estranheza, nos coloca de frente à realidade de maneira quase intimista. O diretor de fotografia, Jacques Cheuiche, opta por uma luz natural que reforça a autenticidade do filme, sem tentar romantizar ou estilizar a pobreza e as condições precárias da favela. Na verdade, a iluminação do filme reforça a autenticidade daquelas vozes e histórias. E ainda que não seja tecnicamente sofisticada, a fotografia acompanha o objetivo de Coutinho de manter o foco inteiramente nos indivíduos. Em cada depoimento, percebemos os detalhes nos rostos dos entrevistados, suas expressões de cansaço e esperança, os olhares de medo e, sobretudo, de expectativa.
A montagem de Jordana Berg é outro ponto alto do filme. Berg, que já trabalhou com Coutinho em outros projetos, desenvolve uma estrutura narrativa fragmentada que, ao contrário do que poderia dispersar a audiência, cria um fluxo que simula uma conversa contínua entre pessoas de diferentes gerações, religiosidades, perspectivas e aspirações. É essa montagem quase caleidoscópica que dá ao documentário seu caráter abrangente e, ao mesmo tempo, intimista. A escolha de Coutinho e Berg por deixar alguns silêncios e pausas nos depoimentos confere à narrativa um ritmo próprio, permitindo que o espectador reflita e absorva as histórias.
O filme, como um registro de um momento histórico, captura também a pluralidade e as superstições que permeiam o imaginário popular. Coutinho interroga as personagens sobre suas expectativas para o novo milênio, mas o que ele realmente está buscando são os sonhos e os medos que compõem a vida desses brasileiros. Há momentos de pura esperança, em que as personagens acreditam que o novo século trará alguma transformação significativa em suas vidas; mas também há os que olham o futuro com uma resignação quase conformista, certos de que o amanhã será apenas mais um dia, sem grandes mudanças. Nesse ponto, o filme se torna um estudo sociológico em si mesmo, explorando a fé e as desilusões de um povo que vê na mudança do calendário uma possibilidade — ainda que distante — de novos rumos.
Coutinho encontra uma variedade impressionante de personagens e dá espaço para que cada um compartilhe suas opiniões, por mais distintas que sejam. Ali temos desde trabalhadores humildes e jovens sonhadores até religiosos fervorosos, todos abrindo suas vidas e seus pensamentos com uma transparência que quase se esquece da presença da câmera. Esse é um testemunho da habilidade de Coutinho em criar um ambiente de confiança, onde seus entrevistados se sentem à vontade para falar sem a autoconsciência ou a censura que poderiam surgir na presença de um cineasta menos sensível.
Na trilha sonora, Coutinho escolhe manter os sons ambientes da favela como elementos principais, seja o barulho dos fogos de artifício, dos cães latindo ou das pessoas conversando ao fundo. Essa sonoridade natural funciona como uma extensão do filme, criando uma atmosfera imersiva que transporta o espectador para dentro daquela comunidade. Esse som direto, que muitas vezes dá a impressão de que estamos ouvindo pedaços de vida real, nos tira da comodidade do espectador passivo e nos coloca em uma posição de ouvintes ativos. Cada som, cada ruído, reforça a autenticidade e a força do documentário.
A ausência de uma narrativa impositiva é um dos aspectos mais marcantes do estilo de Coutinho em Babilônia 2000. Ele não procura guiar o espectador ou influenciar sua interpretação dos depoimentos; ao contrário, permite que cada pessoa forme sua própria opinião sobre os personagens e suas histórias. Essa neutralidade é rara no gênero documental, e é ela que confere ao filme uma liberdade única, que nos permite experimentar a favela como um espaço real, com seus problemas e belezas, sem a necessidade de julgamentos externos.
Em conclusão, Babilônia 2000 é mais do que um filme; é um encontro entre cineasta e personagens, entre espectador e realidade. Coutinho se mostra um dos grandes mestres do cinema documental brasileiro, capaz de dar voz aos anônimos e de revelar, com uma sensibilidade extraordinária, as complexidades de uma comunidade. É um filme que exige envolvimento e que, ao mesmo tempo, nos devolve esse envolvimento em forma de uma compreensão mais profunda e humanista sobre as realidades sociais do Brasil. Babilônia 2000 não só observa, mas dialoga com os espectadores e os personagens, em um dos registros mais puros e respeitosos já feitos sobre o povo brasileiro.
Ao final, fica claro que Coutinho não está ali apenas para documentar, mas para testemunhar a humanidade em sua forma mais honesta e, por isso, o filme permanece como uma obra atemporal, relevante e, acima de tudo, tocante.
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