Páginas

outubro 13, 2024

A Substância (2024)

 


Título original: The Substance
Direção: Coralie Fargeat
Sinopse: Após ser demitida da TV por ser considerada “velha demais” para sua atriz, Elisabeth Sparkle (Demi Moore) recorre a um sinistro programa de aprimoramento corporal. A substância milagrosa promete rejuvenescê-la, mas resulta em uma transformação ainda mais radical. Ela agora precisa dividir seu corpo com Sue (Margaret Qualley), sua versão jovem e melhorada, e, aos poucos, começa a perder completamente o controle da própria vida. Em um pesadelo surreal sobre a busca incessante pela juventude, A Substância revela o preço oculto da perfeição.


A Substância (2024) chega como um filme que desafia todos os limites da linguagem cinematográfica contemporânea. Dirigido por uma cineasta que, desde seu aclamado curta-metragem Reality+ (2014), vinha prometendo algo grandioso, essa obra-prima cumpre todas as expectativas e vai além. Trata-se de um verdadeiro "tour de force", onde o grotesco, o belo e o profundamente emocional se entrelaçam de forma única. O filme é uma experiência intensa, que mistura uma estética visual pulsante com um enredo denso e complexo, envolvendo questões de identidade, envelhecimento e os dilemas da vida moderna.

Em termos de atuação, o filme entrega performances que podem ser facilmente consideradas como as melhores de toda a carreira de seus atores. Demi Moore, no papel de Elisabeth Sparkle, está simplesmente deslumbrante. Ela traz à tona uma complexidade emocional raramente vista nas telas, dando vida a uma mulher que luta contra a alienação de uma vida cheia de sucesso superficial e o vazio existencial que acompanha sua inevitável decadência. A profundidade de sua atuação, expressa através de olhares que carregam uma angústia silenciosa, e o peso de suas interações com os outros personagens, faz de Moore o coração pulsante do filme. A maneira como ela transita entre momentos de fragilidade e uma força avassaladora é o que torna sua personagem tão memorável.

Dennis Quaid, por sua vez, surpreende ao apresentar uma performance brutal e visceral como o personagem Harvey, o aparente CEO de um canal de TV. Quaid interpreta um homem desesperado pelo excesso e poder, alguém que claramente está fora de controle, como que drogado constantemente. A cena em que ele devora camarões compulsivamente em uma mesa, uma sequência grotesca e repulsiva, simboliza perfeitamente seu estado emocional caótico. Quaid nos entrega uma atuação repleta de nuances, na qual sentimos bastante repulsa por seu personagem, que se demonstra ser tão superficial quanto a própria beleza que ele busca incessantemente para seu canal.

Outro grande destaque do filme é Margaret Qualley, que interpreta Sue, uma jovem enigmática que desempenha o papel de coprotagonista ao lado de Moore. Qualley traz uma performance eletrizante e cheia de nuances, personificando a juventude perdida que serve de contraponto ao envelhecimento e à decadência representados por Elisabeth. Sue é uma personagem cheia de vida e energia, mas sua presença revela também uma melancolia e um vazio internos que refletem de forma cruel a realidade dos mais jovens, especialmente aqueles que estão começando a encarar o peso do passar dos anos. A relação entre Elisabeth e Sue cria uma dinâmica fascinante, com Moore e Qualley compartilhando uma química poderosa (mesmo quase nunca contracenando), elevando a narrativa a novos patamares emocionais.

A trilha sonora de Raffertie é outro aspecto que faz de A Substância uma obra tão notável. Cada batida e cada melodia parecem estar em perfeita sincronia com a narrativa visual e emocional. A música eletrônica pulsante cria uma atmosfera que envolve o espectador desde o primeiro momento, funcionando quase como uma personagem adicional no filme. Uma das escolhas mais marcantes da trilha é a inclusão da música "Pump It Up", que se repete em momentos-chave, ficando na mente do espectador e funcionando como um mantra de energia frenética e caos. A escolha dessa música não só captura o ritmo alucinante da história, mas também se torna um símbolo da desconexão e da alienação que permeia o filme.

Visualmente, A Substância é deslumbrante. A diretora utiliza uma paleta de cores extremamente vibrante, que parece pulsar ao ritmo da trilha sonora. As cores saturadas, combinadas com uma estética que remete a videoclipes, criam uma experiência imersiva, que é ao mesmo tempo sedutora e desconcertante. Cada frame é cuidadosamente composto para maximizar o impacto visual, e as cores, juntamente com os movimentos de câmera, criam uma atmosfera quase hipnótica. Há um ritmo visual implacável, que mantém o público imerso e conectado a cada detalhe. Essa estética pulsante lembra, em muitos momentos, o estilo do cineasta Gaspar Noé, mas aqui "dá certo" de uma forma única. A mistura de violência emocional, estética visual exagerada e trilha sonora eletrônica cria um equilíbrio perfeito, algo que muitos filmes tentam alcançar, mas raramente conseguem. Realmente parece uma composição típica e à altura de Thomas Bangalter (ex-Daft Punk e tradicional compositor das trilhas de Gaspar Noé).

Outro aspecto que torna A Substância uma obra de arte tão sofisticada é a forma como utiliza referências a grandes clássicos do cinema sem cair no clichê. A diretora faz alusões sutis a 2001: Uma Odisseia no Espaço através do uso de sua trilha sonora emblemática, mas o faz de maneira inovadora, recontextualizando o tema da transcendência em um cenário muito mais intimista e emocional. Há também uma clara homenagem a O Iluminado, especialmente nas várias cenas onde os corredores do filme (da emissora de TV e da casa de Elisabeth) desempenham um papel central na criação de tensão crescente. Contudo, essas referências não são meras cópias estilísticas, mas sim integrações inteligentes que ampliam a profundidade temática do filme.

O grotesco em A Substância é tratado com uma maturidade impressionante. As cenas repulsivas, como as muitas de grafismo extremo surpreendente, não estão ali simplesmente para chocar o público, mas para aprofundar a compreensão dos personagens e suas motivações. Elas servem como metáforas visuais para os estados emocionais dos protagonistas. O grotesco é explorado de forma a gerar uma reflexão sobre os limites humanos, sobre o que estamos dispostos a suportar emocional e fisicamente em busca de significado em nossas vidas. Essas cenas evocam uma curiosidade mórbida, mas também nos obrigam a confrontar a nossa própria vulnerabilidade.

Além disso, o filme possui um impacto emocional profundo, especialmente para os espectadores que passaram pela transição entre juventude e meia-idade recentemente. A sensação de estar perdendo algo, o medo do envelhecimento, da irrelevância e do esquecimento, são temas abordados com uma brutalidade emocional que atinge o público diretamente no coração. Algumas cenas, que poderiam ser vistas como engraçadas em outro contexto, revelam-se profundamente tristes e melancólicas. É essa capacidade de subverter as expectativas emocionais do público que torna o filme tão poderoso.

O filme não dá trégua ao espectador. Desde o início, há uma tensão crescente que se desenvolve sem pausa, levando o público a um clímax surpreendente. O ritmo implacável da narrativa, aliado à trilha sonora pulsante e às imagens intensas, mantém o espectador em um estado de alerta constante. E então chega o final — completamente imprevisível. A diretora constrói um desfecho que choca e emociona de maneira única, algo que raramente vemos no cinema contemporâneo. Desde O Sexto Sentido, talvez não tenha havido um final tão surpreendente e impactante como o de A Substância.

A Substância não é apenas um filme, é uma experiência cinematográfica completa. Com atuações memoráveis, uma trilha sonora eletrizante, uma estética visual deslumbrante e um enredo denso e impactante, o filme se consolida como uma das obras mais significativas da década. A diretora oferece ao público uma obra de arte que provoca, emociona e desafia. Em todos os aspectos, A Substância é um verdadeiro marco no cinema contemporâneo, um filme que será lembrado e estudado por muitos anos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário