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outubro 29, 2024

A Roda (1923)

 


Título original: La Roue
Direção: Abel Gance
Sinopse: O maquinista Sisif salva a pequena Norma de um acidente ferroviário e decide criá-la. À medida que cresce, ela se apaixona por Elie, filho de Sisif que ela pensa ser seu irmão. Ao mesmo tempo, Sisif também se apaixona por ela, criando um complexo triângulo amoroso.


Para uma crítica aprofundada de A Roda (La Roue, 1923), é essencial reconhecer o impacto histórico e técnico do filme, que representa um marco significativo na evolução do cinema. Dirigido por Abel Gance, um dos cineastas mais ambiciosos e inventivos de sua época, A Roda é uma obra épica e emocionalmente intensa, que explorou e desafiou as possibilidades cinematográficas em um período de grande experimentação artística. Longe de ser um filme convencional, a obra é rica em simbolismo e apresenta inovações técnicas, apesar de possuir elementos que hoje talvez pareçam superados.

A Roda surgiu em um momento crucial da carreira de Abel Gance. Após o sucesso de J'accuse (1919), Gance decidiu levar sua visão ainda mais longe, com uma história que beira o trágico e o mítico. No entanto, o que realmente se destaca em A Roda é a audácia técnica que ele empregou para capturar emoções e sensações de forma visceral. Neste sentido, Gance explorou novas técnicas de montagem, especialmente a montagem acelerada, um recurso que ele utilizou para transmitir a velocidade e o ritmo frenético dos trens e a tensão emocional dos personagens. Essa técnica seria mais tarde amplamente desenvolvida por cineastas como Sergei Eisenstein, sendo que Gance é muitas vezes mencionado como um precursor do cinema de vanguarda.

A complexidade da edição de A Roda merece destaque. Foram utilizados cortes rápidos e experimentos com sobreposição de imagens, técnicas que eram muito avançadas para a época. Essas escolhas visuais transmitem uma sensação de urgência e turbulência, condizentes com o tema central da obra: a vida em constante movimento e transformação, simbolizada pela imagem das rodas dos trens, metáfora que Gance explora em profundidade. Este trabalho de edição foi realizado pelo próprio Gance, o que indica o controle absoluto que ele mantinha sobre sua visão artística, tornando o filme uma expressão pessoal e inconfundível.

A narrativa de A Roda acompanha Sisif, um maquinista de trem que, após resgatar uma menina órfã chamada Norma em um acidente, decide criá-la como sua própria filha. Com o tempo, porém, desenvolve sentimentos complexos e perturbadores por ela, em um enredo que mistura temas de sacrifício, desejo proibido e arrependimento. Esta trama carrega traços do realismo psicológico que era inovador para o cinema mudo da época, uma vez que mergulha profundamente nas camadas emocionais e psicológicas dos personagens, explorando conflitos internos de forma sofisticada.

Gance extrai atuações expressivas de seus atores, especialmente de Séverin-Mars no papel de Sisif. A intensidade que ele imprime ao personagem é fundamental para que o público compreenda os dilemas morais e as angústias do protagonista. A personagem de Norma, interpretada por Ivy Close, também traz uma presença enigmática e etérea, que se encaixa bem na ambiguidade de sua relação com Sisif. Contudo, há momentos em que a performance de Séverin-Mars exagera nas expressões, o que, para o espectador moderno, pode parecer caricato. Apesar disso, no contexto do cinema mudo, essa intensidade era essencial para comunicar as emoções sem diálogos.

Abel Gance usa o simbolismo de forma marcante para construir uma estética visual única. A figura das rodas e dos trilhos permeia o filme, representando o destino inevitável e as forças implacáveis que controlam a vida dos personagens. As rodas do trem não são apenas um elemento mecânico; elas se tornam quase míticas, como se fossem as rodas da vida e da morte que movem o destino dos personagens. Gance tem uma sensibilidade quase poética para as metáforas visuais, que ele utiliza para transformar uma história aparentemente simples em uma meditação filosófica sobre o destino e o sofrimento humano.

As paisagens montanhosas e as cenas ao ar livre também contribuem para o caráter épico de A Roda. Gance filma com uma abordagem quase documental, aproveitando as vastidões e os espaços naturais como parte da psicologia dos personagens. Essa escolha por locações reais, em vez de cenários artificiais, enriquece a experiência visual e amplia a dimensão da narrativa. No entanto, é evidente que, em algumas partes, o filme perde o ritmo, com sequências que parecem excessivamente longas e, talvez, desnecessariamente poéticas. Essa ambição visual e poética é admirável, mas, em alguns momentos, pode fazer com que o filme se arraste.

A trilha sonora original de A Roda era complexa e inovadora, composta para acompanhar as emoções dos personagens e os movimentos da narrativa. Infelizmente, a versão original da trilha foi perdida, e muitas exibições modernas dependem de trilhas reconstruídas ou compostas posteriormente. Isso, sem dúvida, afeta a recepção do filme, já que a música é um componente vital para sustentar o impacto emocional em obras mudas. Mesmo assim, a construção das cenas, com suas intensas variações de ritmo, permite que o filme transmita emoções profundas, especialmente nas sequências que envolvem o trem, onde a sincronia entre som e imagem era pensada para intensificar a experiência do espectador.

Apesar de todas as inovações e do simbolismo rico, A Roda enfrenta dificuldades em cativar o público contemporâneo com a mesma intensidade que possivelmente alcançou em 1923. A duração extensa – chegando a quase oito horas em sua versão completa – é um desafio para os espectadores modernos. Embora existam versões reduzidas, a estrutura do filme ainda demanda uma paciência e uma entrega total à narrativa, o que pode ser exaustivo.

A obra de Gance, por sua natureza experimental, ocasionalmente sacrifica a clareza em nome da ambição estética. Alguns personagens e subtramas parecem um tanto desconexos, o que torna a experiência fragmentada em certos momentos. Essa falta de coesão, somada à repetição de alguns temas, pode tornar o filme cansativo para aqueles que não estão familiarizados com o estilo expressionista e melodramático da época.

A Roda é uma obra que merece ser apreciada pelo impacto que teve na evolução do cinema e pela audácia de Abel Gance em explorar o meio cinematográfico como uma forma de arte plena, onde imagem, movimento e simbolismo se fundem. Embora o filme apresente certos exageros e algumas limitações que enfraquecem sua fluidez narrativa, ele ainda se mantém relevante como um estudo das emoções e das complexidades humanas.

A experiência de assistir a A Roda é semelhante à de contemplar uma pintura expressionista: há uma beleza incomum, misturada a uma angústia visceral, que atinge o espectador em um nível quase inconsciente. Para aqueles que buscam entender a história do cinema e a evolução das técnicas de montagem e narrativa visual, A Roda é uma referência obrigatória. Contudo, é uma obra que exige do espectador paciência e uma disposição para se perder nos devaneios artísticos de Gance. Não é um filme fácil, mas é uma experiência única, com uma estética que reflete as aspirações de uma era em que o cinema ainda estava se reinventando.

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