Para uma crítica aprofundada de A Roda (La Roue, 1923), é essencial reconhecer o impacto histórico e técnico do filme, que representa um marco significativo na evolução do cinema. Dirigido por Abel Gance, um dos cineastas mais ambiciosos e inventivos de sua época, A Roda é uma obra épica e emocionalmente intensa, que explorou e desafiou as possibilidades cinematográficas em um período de grande experimentação artística. Longe de ser um filme convencional, a obra é rica em simbolismo e apresenta inovações técnicas, apesar de possuir elementos que hoje talvez pareçam superados.
A Roda surgiu em um momento crucial da carreira de Abel Gance. Após o sucesso de J'accuse (1919), Gance decidiu levar sua visão ainda mais longe, com uma história que beira o trágico e o mítico. No entanto, o que realmente se destaca em A Roda é a audácia técnica que ele empregou para capturar emoções e sensações de forma visceral. Neste sentido, Gance explorou novas técnicas de montagem, especialmente a montagem acelerada, um recurso que ele utilizou para transmitir a velocidade e o ritmo frenético dos trens e a tensão emocional dos personagens. Essa técnica seria mais tarde amplamente desenvolvida por cineastas como Sergei Eisenstein, sendo que Gance é muitas vezes mencionado como um precursor do cinema de vanguarda.
A complexidade da edição de A Roda merece destaque. Foram utilizados cortes rápidos e experimentos com sobreposição de imagens, técnicas que eram muito avançadas para a época. Essas escolhas visuais transmitem uma sensação de urgência e turbulência, condizentes com o tema central da obra: a vida em constante movimento e transformação, simbolizada pela imagem das rodas dos trens, metáfora que Gance explora em profundidade. Este trabalho de edição foi realizado pelo próprio Gance, o que indica o controle absoluto que ele mantinha sobre sua visão artística, tornando o filme uma expressão pessoal e inconfundível.
A narrativa de A Roda acompanha Sisif, um maquinista de trem que, após resgatar uma menina órfã chamada Norma em um acidente, decide criá-la como sua própria filha. Com o tempo, porém, desenvolve sentimentos complexos e perturbadores por ela, em um enredo que mistura temas de sacrifício, desejo proibido e arrependimento. Esta trama carrega traços do realismo psicológico que era inovador para o cinema mudo da época, uma vez que mergulha profundamente nas camadas emocionais e psicológicas dos personagens, explorando conflitos internos de forma sofisticada.
Gance extrai atuações expressivas de seus atores, especialmente de Séverin-Mars no papel de Sisif. A intensidade que ele imprime ao personagem é fundamental para que o público compreenda os dilemas morais e as angústias do protagonista. A personagem de Norma, interpretada por Ivy Close, também traz uma presença enigmática e etérea, que se encaixa bem na ambiguidade de sua relação com Sisif. Contudo, há momentos em que a performance de Séverin-Mars exagera nas expressões, o que, para o espectador moderno, pode parecer caricato. Apesar disso, no contexto do cinema mudo, essa intensidade era essencial para comunicar as emoções sem diálogos.
Abel Gance usa o simbolismo de forma marcante para construir uma estética visual única. A figura das rodas e dos trilhos permeia o filme, representando o destino inevitável e as forças implacáveis que controlam a vida dos personagens. As rodas do trem não são apenas um elemento mecânico; elas se tornam quase míticas, como se fossem as rodas da vida e da morte que movem o destino dos personagens. Gance tem uma sensibilidade quase poética para as metáforas visuais, que ele utiliza para transformar uma história aparentemente simples em uma meditação filosófica sobre o destino e o sofrimento humano.
As paisagens montanhosas e as cenas ao ar livre também contribuem para o caráter épico de A Roda. Gance filma com uma abordagem quase documental, aproveitando as vastidões e os espaços naturais como parte da psicologia dos personagens. Essa escolha por locações reais, em vez de cenários artificiais, enriquece a experiência visual e amplia a dimensão da narrativa. No entanto, é evidente que, em algumas partes, o filme perde o ritmo, com sequências que parecem excessivamente longas e, talvez, desnecessariamente poéticas. Essa ambição visual e poética é admirável, mas, em alguns momentos, pode fazer com que o filme se arraste.
A trilha sonora original de A Roda era complexa e inovadora, composta para acompanhar as emoções dos personagens e os movimentos da narrativa. Infelizmente, a versão original da trilha foi perdida, e muitas exibições modernas dependem de trilhas reconstruídas ou compostas posteriormente. Isso, sem dúvida, afeta a recepção do filme, já que a música é um componente vital para sustentar o impacto emocional em obras mudas. Mesmo assim, a construção das cenas, com suas intensas variações de ritmo, permite que o filme transmita emoções profundas, especialmente nas sequências que envolvem o trem, onde a sincronia entre som e imagem era pensada para intensificar a experiência do espectador.
Apesar de todas as inovações e do simbolismo rico, A Roda enfrenta dificuldades em cativar o público contemporâneo com a mesma intensidade que possivelmente alcançou em 1923. A duração extensa – chegando a quase oito horas em sua versão completa – é um desafio para os espectadores modernos. Embora existam versões reduzidas, a estrutura do filme ainda demanda uma paciência e uma entrega total à narrativa, o que pode ser exaustivo.
A obra de Gance, por sua natureza experimental, ocasionalmente sacrifica a clareza em nome da ambição estética. Alguns personagens e subtramas parecem um tanto desconexos, o que torna a experiência fragmentada em certos momentos. Essa falta de coesão, somada à repetição de alguns temas, pode tornar o filme cansativo para aqueles que não estão familiarizados com o estilo expressionista e melodramático da época.
A Roda é uma obra que merece ser apreciada pelo impacto que teve na evolução do cinema e pela audácia de Abel Gance em explorar o meio cinematográfico como uma forma de arte plena, onde imagem, movimento e simbolismo se fundem. Embora o filme apresente certos exageros e algumas limitações que enfraquecem sua fluidez narrativa, ele ainda se mantém relevante como um estudo das emoções e das complexidades humanas.
A experiência de assistir a A Roda é semelhante à de contemplar uma pintura expressionista: há uma beleza incomum, misturada a uma angústia visceral, que atinge o espectador em um nível quase inconsciente. Para aqueles que buscam entender a história do cinema e a evolução das técnicas de montagem e narrativa visual, A Roda é uma referência obrigatória. Contudo, é uma obra que exige do espectador paciência e uma disposição para se perder nos devaneios artísticos de Gance. Não é um filme fácil, mas é uma experiência única, com uma estética que reflete as aspirações de uma era em que o cinema ainda estava se reinventando.
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