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outubro 31, 2024

O Homem-Mosca (1923)

 


Título original: Safety Last!
Direção: Sam Taylor, Fred C. Newmeyer
Sinopse: Harold tenta a vida na cidade grande antes de se casar com o grande amor de sua vida. Porém ele só consegue ser um mero vendedor. Quando a garota decide ir até a cidade ao seu encontro, ele faz de tudo para fazê-la pensar que é um bem sucedido gerente.


O Homem-Mosca (Safety Last!), de Sam Taylor e Fred C. Newmeyer, é uma das joias mais brilhantes do cinema mudo e, sem dúvida, uma das obras-primas definitivas da comédia física. Protagonizado por Harold Lloyd, que também idealizou o roteiro, o filme lança uma nova perspectiva sobre o potencial do humor e da ação no cinema. Em 1923, o gênero de comédia já tinha seus ícones estabelecidos, como Charlie Chaplin e Buster Keaton. No entanto, Lloyd, com seu estilo peculiar, ofereceu algo único: um humor empolgante, realista e, ao mesmo tempo, extremamente arriscado, repleto de autenticidade e entrega.

Desde as primeiras cenas, O Homem-Mosca exibe uma narrativa envolvente e bem estruturada que explora a vida de um jovem humilde e otimista em sua luta para vencer na cidade grande. Essa história simples, que poderia cair na caricatura de um sonho americano, é transformada em um espetáculo com uma direção calculada e um roteiro pontuado por uma série de mal-entendidos e situações cômicas que conduzem a uma das sequências mais memoráveis da história do cinema: a escalada da fachada de um arranha-céu. Taylor e Newmeyer, diretores que sabiam manipular o suspense e o humor com a mesma precisão, colaboraram de forma impecável, criando uma obra que desafia as expectativas.

A sequência final de O Homem-Mosca é, sem exagero, um dos feitos mais corajosos do cinema. A cena de Lloyd pendurado no famoso relógio de um prédio alto, lutando para se equilibrar a centenas de metros do chão, é um momento de tensão e êxtase que eleva o filme a um patamar de transcendência. É notório que Lloyd executou a maior parte das cenas de escalada sem truques de câmera ou efeitos especiais — um verdadeiro tour de force. Em um detalhe técnico que vale a pena observar, Lloyd utilizou uma combinação engenhosa de camadas de fundo, simulando a altura com a ilusão de profundidade, ao mesmo tempo em que realizava as manobras perigosas com grande habilidade física. Ainda mais impressionante é o fato de ele realizar essa sequência icônica usando uma prótese de borracha para cobrir o polegar e o indicador de sua mão direita, perdidos em um acidente anterior com um explosivo de cena. Sua capacidade de improvisar, mesmo com limitações físicas, reafirma seu lugar como um mestre do cinema.

A genialidade de Lloyd e de seus diretores reside na forma como combinam o cômico com o perigoso, o absurdo com o realismo. O humor de O Homem-Mosca é impulsionado por uma crescente tensão, que faz o público prender a respiração enquanto ri. Em um dos momentos mais brilhantes do filme, Lloyd usa situações cotidianas, como o aperto de mão casual com um amigo ou o mal-entendido com o chefe, para construir gags visuais, que vão se acumulando de maneira engenhosa até alcançar o clímax da escalada. Cada camada de humor é alinhada com precisão cirúrgica, atingindo seu ápice de forma quase matemática. Isso revela a influência do slapstick, mas com um diferencial: Lloyd emprega uma sutileza emocional que o distingue de seus contemporâneos.

A cidade, retratada como um cenário opressor e intimidante, transforma-se quase em um antagonista. A arquitetura, em particular os arranha-céus, representa uma força avassaladora que desafia o personagem central em sua jornada. A escalada do prédio torna-se uma metáfora visual para a escalada social e para a ambição de Lloyd, onde o protagonista tenta vencer obstáculos literalmente em sua face. O uso magistral do cenário urbano é reforçado pela direção de arte, que destaca as dinâmicas da cidade como uma selva moderna — competitiva, caótica e desafiadora. A produção envolveu tomadas reais em Los Angeles, que acrescentaram autenticidade e um senso de perigo genuíno às cenas, especialmente durante a ascensão do personagem pelo prédio. A cidade, enquanto pano de fundo, amplifica o impacto da narrativa, reforçando a solidão e a determinação do protagonista.

Harold Lloyd é, sem dúvida, a alma do filme. Diferente de Chaplin, que frequentemente evocava o patético com ternura, ou Keaton, com sua impassividade estoica, Lloyd constrói uma persona otimista e ambiciosa, mas ao mesmo tempo vulnerável. Seu “homem comum”, de óculos e ar confiante, é o emblema de um sujeito disposto a arriscar tudo para alcançar o sucesso. Essa mistura de ambição e inocência torna sua interpretação genuinamente cativante. A escolha dos óculos, um elemento aparentemente simples, é revolucionária na construção do personagem, pois o destaca como um “homem comum” cuja coragem vai além do físico. Lloyd, ao invés de desafiar o mundo como um “outsider” rebelde, insere-se na sociedade e tenta vencer as dificuldades com as próprias mãos. Essa abordagem mais “inclusiva” e realista permite que o público se identifique com ele, humanizando suas façanhas e amplificando a tensão e o humor.

O cinema mudo, em suas melhores formas, manipula o silêncio para criar emoções palpáveis. Em O Homem-Mosca, o ritmo é cuidadosamente ajustado para fazer com que cada gag e cada cena de suspense se desenrole no tempo certo. As sequências de escalada são intercaladas com pausas calculadas, que permitem ao público assimilar o perigo e o absurdo da situação antes que o próximo momento cômico ou de suspense se manifeste. A edição, habilmente executada por Allen McNeil, trabalha em perfeita sincronia com o desenvolvimento da narrativa, criando uma cadência que vai do humor ao suspense em uma progressão suave e irresistível.

A ausência de som também intensifica a experiência visual. Enquanto o público observa cada movimento de Lloyd em silêncio, o efeito é amplificado: o silêncio gera tensão, e o risco de queda torna-se ainda mais palpável. A música, que seria adicionada posteriormente nas exibições ao vivo, acompanhava o ritmo do filme de forma sincronizada, utilizando melodias que ora traziam alívio cômico, ora aumentavam a ansiedade. A trilha sonora se tornou uma parte inseparável do impacto emocional do filme, mesmo na ausência de som direto.

Mesmo decorrido um século após sua estreia, O Homem-Mosca ainda se mantém atual e eletrizante. A obra de Lloyd e seus diretores redefine o limite da comédia física e do suspense, e sua ousadia reverbera até hoje, influenciando gerações de cineastas. A simplicidade da premissa — um homem subindo um prédio — se desdobra em camadas complexas de simbolismo e técnica, provando que uma ideia bem executada pode transcender o tempo. Filmes contemporâneos ainda ecoam o espírito de O Homem-Mosca, mas poucos conseguem alcançar a mesma autenticidade e originalidade.

Esse filme é uma das realizações mais impressionantes do cinema mudo, uma obra onde comédia, técnica e arte se entrelaçam em uma fusão perfeita. Cada tomada transmite a paixão e a habilidade de um artista em sua busca por fazer o público rir, vibrar e, acima de tudo, acreditar. A ousadia de Lloyd, a visão criativa de Taylor e Newmeyer e a precisão técnica da equipe de produção resultaram em um marco cinematográfico. O Homem-Mosca é a celebração de um tempo em que o cinema era uma arte física, que demandava o extremo do artista e recompensava o público com uma experiência de tirar o fôlego.

Silvio (2024)

 


Título original: Silvio
Direção: Marcelo Antunez
Sinopse: Além de felicidade, um baú também pode guardar muitos segredos. Baseado em fatos reais, Silvio Santos relembra sua história de vida e revela acontecimentos dos bastidores que nunca foram mostrados. Durante o sequestro que marcou o Brasil, o apresentador precisa lutar para proteger sua família e seu legado enquanto encara de frente um dos momentos mais desafiadores da sua vida.


O filme Silvio (2024), dirigido por Marcelo Antunez, tinha o potencial de ser um grande marco na cinematografia brasileira ao narrar um dos momentos mais tensos e pessoais da vida de Silvio Santos: o sequestro de sua filha e o drama que o próprio apresentador viveu ao ser mantido refém em sua própria casa. Entretanto, o resultado final foi, digamos, um "Show do Milhão" ao contrário, onde a cada cena sentimos que estamos perdendo pontos e tempo.

Primeiramente, a escalação de Rodrigo Faro para viver Silvio Santos foi, no mínimo, curiosa. Faro, conhecido principalmente como apresentador, tenta reproduzir os icônicos maneirismos de Silvio, mas acaba preso entre a caricatura e a tentativa de uma interpretação séria. A imitação de sua voz soa forçada e, em muitos momentos, até risível. Para um personagem com a complexidade e o carisma de Silvio Santos, seria esperado um ator capaz de transmitir as camadas que fizeram dele uma figura única no Brasil. Mas aqui temos Faro, que em todas as cenas parece mais um personagem de CGI dos anos 1990 do que o próprio "Peru Que Fala". A escolha gerou muita controvérsia, pois a atuação não passa a mesma autenticidade alcançada por José Rubens Chachá na série O Rei da TV, onde a caracterização e a profundidade interpretativa são mais convincentes​.

A narrativa tenta mesclar drama e comédia, mas fracassa na execução. O tom de humor surge em momentos totalmente inadequados, desconstruindo qualquer tentativa de tensão e parecendo mais uma paródia do que uma biografia. Em um dos momentos mais surreais, Silvio, já como refém, decide ligar para pedir ajuda e, em um esforço cômico mal calculado, a pessoa do outro lado não leva a sério que é "o verdadeiro Silvio Santos" pedindo socorro. Essa cena, mostrada inclusive no trailer, já aponta o tom catastrófico que permeia o filme. Momentos que poderiam ser profundos ou angustiantes são desconstruídos por piadas fora de contexto que mais desrespeitam o drama real da situação do que contribuem para a narrativa​.

Outro problema gritante está nos flashbacks, que são usados para tentar dar profundidade ao passado de Silvio Santos e mostrar um pouco de sua trajetória. Mas o que vemos são cenas curtas e mal elaboradas, que parecem mais uma colcha de retalhos de memórias do que um fio narrativo coeso. Esses "remendos" do passado de Silvio são acompanhados por uma trilha sonora genérica e monótona que pouco acrescenta e, pelo contrário, irrita ao invés de emocionar. Toda essa estrutura faz com que as cenas do passado de Silvio se tornem, na prática, quase irrelevantes para a construção de seu personagem no presente.

A falta de rigor histórico no filme é outro ponto de grande incômodo. O filme toma diversas liberdades que ultrapassam o limite do aceitável, criando uma versão distorcida da vida de Silvio Santos. Para começar, o relacionamento entre Silvio e Cidinha Abravanel, sua primeira esposa, é alterado. Cidinha, que na vida real era uma das secretárias do programa de auditório do apresentador, aparece no filme como filha de uma dona de pensão que Silvio conheceu durante um café da manhã. Já as divergências entre Silvio e sua filha Cintia Abravanel são exageradas, criando uma animosidade que simplesmente não existia. No filme, o ódio entre pai e filha é um dos pontos centrais da narrativa, mas na vida real eles tinham diferenças, sim, mas nada próximo do conflito retratado. Outro deslize imperdoável ocorre na representação da morte de Cidinha, que no filme é mostrada como uma tosse fulminante, enquanto, na realidade, ela lutou contra o câncer​.

Falando ainda dos aspectos técnicos, a direção de Antunez tenta ser inovadora, mas se perde em uma confusão de estilos e gêneros. O filme é vendido como um drama policial com toques de suspense, mas na prática ele não se encaixa em nenhum desses gêneros. O que temos é uma narrativa arrastada, onde nem a tensão do suspense policial nem o drama biográfico ganham espaço. É quase como se o filme não soubesse o que quer ser: em alguns momentos, tenta ser sério; em outros, insere humor como se fosse uma comédia; e em outros ainda, insere cenas dramáticas que soam vazias e artificiais. O resultado é um filme perdido, que não consegue transmitir o peso dos eventos que marcaram a vida do protagonista.

Se há uma escolha acertada no elenco, essa é a de Gustavo Machado no papel de Fernando Dutra Pinto, o sequestrador. Machado já havia interpretado o mesmo personagem na minissérie O Rei da TV e, embora o roteiro não colabore muito, ele consegue trazer uma certa profundidade ao papel, demonstrando o desespero e a frustração de seu personagem. Mas, mesmo com sua atuação competente, o roteiro limitado não permite que ele explore as nuances do sequestrador, tornando seu personagem unidimensional e previsível.

A ambientação e o cenário também são simplórios, com a maior parte da ação se passando dentro da casa de Silvio. Com um orçamento alto, esperava-se que o filme explorasse melhor a ambientação, mas parece que cada centavo foi usado para o cachê de Faro, já que o restante da produção é visualmente desinteressante. E, para coroar essa experiência cinematográfica desastrosa, o filme fecha com a emblemática frase de Silvio Santos (interpretado por Faro): "A palavra é a única coisa que nós temos". É difícil imaginar uma frase de efeito mais cafona para encerrar uma narrativa que não consegue decidir se quer glorificar ou detonar a vida de Silvio Santos.

No fim, Silvio é um espetáculo de mal-entendidos, desde o elenco até o roteiro, passando pela trilha sonora e a direção. A meia estrela que se pode dar ao filme fica pela comicidade involuntária, que ao menos nos arranca algumas risadas em momentos completamente inesperados. Agora é hora de tristeza, vamos fazer cara feia e chorar... Rodrigo Faro vem aí.

outubro 30, 2024

Luce (2019)

 


Título original: Luce
Direção: Julius Onah
Sinopse: Luce Edgar é um jovem brilhante, além de ser muito estudioso e campeão em debates ele também é um excelente atleta. Tudo isso faz com que seus pais adotivos sejam muito orgulhosos. No entanto, a professora de Lucas, Harriet, descobre um artigo político escrito por ele que revela traços obscuros de sua personalidade desencadeando uma série de situações negativas na vida de todos os envolvidos.


Quando Luce, dirigido por Julius Onah, entrou no circuito cinematográfico em 2019, prometia um drama provocativo sobre raça, identidade e poder. Baseado na peça homônima de J.C. Lee, o filme se ambienta em uma escola norte-americana de classe média-alta e mergulha em questões morais complexas. Entretanto, apesar de algumas performances inspiradas e da intensidade com que lida com seus temas, Luce apresenta falhas de execução e deixa a desejar em sua construção narrativa, prejudicando o impacto de uma história que, em mãos mais hábeis, poderia ter sido muito mais poderosa.

A história gira em torno de Luce Edgar (Kelvin Harrison Jr.), um brilhante estudante de ensino médio que é o orgulho da escola e dos pais adotivos, Amy (Naomi Watts) e Peter (Tim Roth). Luce foi adotado do país africano devastado pela guerra da Eritreia e, desde então, se tornou o aluno exemplar, um prodígio acadêmico e atleta respeitado. A tranquilidade da vida de Luce, no entanto, é abalada quando sua professora, Harriet Wilson (Octavia Spencer), questiona uma redação que o jovem escreveu, onde faz elogios controversos à violência política.

Harriet decide investigar e acaba encontrando fogos de artifício no armário do rapaz, o que a leva a alertar Amy e Peter sobre uma possível ameaça. Esse acontecimento é o estopim para uma série de dilemas morais, éticos e pessoais que começam a emergir, questionando a verdadeira natureza de Luce. Será ele o prodígio virtuoso que aparenta, ou estaria apenas manipulando todos ao seu redor para esconder um lado obscuro?

Julius Onah conduz a trama com um ar de mistério, oferecendo ao espectador apenas pistas e nuances sobre os personagens. Ele cria uma atmosfera de tensão e dúvida, convidando o público a questionar cada atitude e cada palavra, mas é justamente na execução dessa abordagem que surgem problemas. Onah aposta em uma narrativa que se pretende ambígua, mas que por vezes se perde em sua própria ambição. Em vez de deixar espaço para interpretações, ele frequentemente tropeça ao tentar aprofundar múltiplos temas ao mesmo tempo — como identidade racial, expectativas sociais e a desconfiança que o “sonho americano” nutre em relação a jovens negros de destaque.

A fotografia de Larkin Seiple é eficaz ao transmitir uma sensação de claustrofobia emocional. Planos fechados dominam a tela, destacando o isolamento emocional dos personagens, enquanto a paleta fria e impessoal remete ao ambiente escolar e aos dilemas éticos. Contudo, essa escolha estética, embora interessante, não é suficiente para sustentar o ritmo, que se arrasta em certos momentos e se torna enfadonho, com diálogos que soam repetitivos e cenas que, ao tentar criar tensão, acabam esvaziando o drama.

Se há algo realmente memorável em Luce, é a performance de Octavia Spencer como a professora Harriet Wilson. Spencer, já conhecida por seus papéis em filmes como Histórias Cruzadas e A Forma da Água, traz aqui a atuação mais profunda e intensa de sua carreira. Harriet não é uma personagem simples: ela é uma mulher rígida, que acredita no poder da educação, mas também carrega um viés que é lentamente revelado ao longo do filme. Sua desconfiança em relação a Luce é motivada tanto pelo desejo de proteger os outros quanto por um temor enraizado em seu próprio histórico como mulher negra em uma sociedade que sempre a tratou com desconfiança. Spencer encarna essa complexidade com uma nuance impressionante, conseguindo transmitir um senso de empatia e, ao mesmo tempo, uma determinação implacável.

Além de Spencer, temos a curiosa reunião de Naomi Watts e Tim Roth, revivendo a química que compartilharam em Violência Gratuita (Funny Games US), embora seus papéis aqui sejam bem diferentes daquele filme de terror psicológico. Ambos os atores entregam performances que transitam entre o amor incondicional e o medo crescente em relação ao filho. Watts, como a mãe protetora, enfrenta um conflito interno que a leva a duvidar de seu próprio julgamento, enquanto Roth, como o pai mais pragmático, tenta equilibrar o lado racional e emocional. É uma dupla que já provou seu talento, mas aqui, embora se esforcem, acabam ofuscados pela presença marcante de Spencer e pela indefinição na direção de Onah.

Kelvin Harrison Jr. também merece destaque por sua atuação no papel de Luce. Ele traz uma ambiguidade enigmática ao personagem, jogando com o espectador e os personagens ao seu redor de forma sutil. No entanto, o roteiro falha em fornecer a profundidade necessária para que Luce se torne realmente tridimensional. Em vez disso, ele permanece um enigma até o final, o que pode ser interessante do ponto de vista da narrativa, mas acaba prejudicando a conexão emocional com o público.

Luce tenta ser um drama de ideias, e, nesse ponto, é louvável. O filme coloca o espectador diante de dilemas incômodos, como o racismo velado, a hipocrisia da meritocracia e a pressão das expectativas sociais sobre jovens negros. Harriet representa uma figura que, embora queira proteger a comunidade, acaba agindo de forma preconceituosa. Já Luce é o espelho de uma geração que se sente sufocada pelo peso das expectativas, sendo obrigado a representar algo que talvez não seja.

O filme traz à tona questões fundamentais sobre a natureza da identidade e a moralidade, mas a execução é problemática. A ambiguidade, aqui, não é um recurso que enriquece a trama, mas sim algo que dispersa o foco e deixa o espectador sem uma âncora. Em sua tentativa de provocar o debate, Luce abre muitas portas, mas não se aprofunda o suficiente em nenhuma delas, o que resulta em uma experiência confusa e, em última análise, frustrante.

Luce é um filme que, no papel, tinha todos os ingredientes para se tornar um drama social impactante, mas que tropeça em sua própria ambição. Com um elenco talentoso e temas relevantes, Onah parecia ter nas mãos uma obra com potencial para discutir questões fundamentais sobre identidade e preconceito. No entanto, a execução deixa a desejar, com uma narrativa que se perde em meio a muitas ideias e com uma direção que, ao tentar ser enigmática, acaba tornando o filme excessivamente nebuloso.

A performance de Octavia Spencer, contudo, é um espetáculo à parte e vale o ingresso. Ela entrega uma personagem complexa e inesquecível, com camadas de vulnerabilidade e rigidez que enriquecem o filme. Watts e Roth também oferecem uma química interessante, mas que infelizmente fica restrita a um drama de bastidores para quem lembra de Violência Gratuita.

Em última análise, Luce é um filme que poderia ter sido muito mais. É como uma dissertação escolar que começa com uma tese promissora, mas que falha ao desenvolver os argumentos. Mesmo assim, vale a pena ser visto, ao menos para que o espectador tire suas próprias conclusões sobre essa trama instigante, mas falha, que busca dissecar a complexidade de uma identidade construída entre o orgulho e a dúvida.

Terra Estrangeira (1996)

 


Título original: Terra Estrangeira
Direção: Walter Salles, Daniela Thomas
Sinopse: Sem perspectiva de vida no Brasil, Paco leva uma encomenda misteriosa para Portugal. Na terra estrangeira, ele conhece um casal e, juntos, se envolvem em um esquema de contrabando.


Terra Estrangeira, dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas, foi lançado em 1996 e rapidamente entrou para o grupo de filmes considerados "clássicos modernos" do cinema nacional. Entretanto, a sua abordagem e a execução deixam muito a desejar, tornando essa obra um exemplo gritante de como o cinema brasileiro pode, às vezes, se concentrar em estereótipos negativos, caindo em uma narrativa que, em vez de enriquecer o espectador, o cansa com uma visão repetitiva e pessimista. Para mim, fã de uma boa análise social no cinema, Terra Estrangeira perde a chance de aprofundar temas e personagens, optando por um enredo que apenas reforça estereótipos e clichês já exaustivamente explorados.

A premissa do filme é potencialmente interessante: Paco, um jovem que sonha em escapar da vida sufocante no Brasil dos anos 1990, embarca em uma jornada para Portugal com a intenção de fugir do caos econômico brasileiro e construir uma vida melhor. No entanto, o filme nunca explora com profundidade as motivações desse personagem ou as dificuldades econômicas que, teoricamente, deveriam ser o fio condutor de sua partida. O Brasil dos anos 1990 enfrentava uma crise econômica esmagadora, com inflação galopante e instabilidade política, mas o filme falha em mostrar qualquer relação honesta entre essas questões e o desejo de fuga de Paco. Em vez disso, tudo é tratado superficialmente, como se a necessidade de partir fosse um capricho raso.

Ao focar em uma narrativa de fuga para "qualquer lugar que não seja o Brasil", Salles e Thomas perdem uma oportunidade valiosa de explorar o que realmente faz alguém querer sair do próprio país. Esse recorte gera um sentimento de desconexão com a realidade brasileira da época e, pior ainda, transforma o personagem principal em alguém desmotivado e apático, que simplesmente quer deixar o Brasil sem que saibamos o porquê de fato.

Aliado a isso, há uma insistência em retratar o brasileiro sempre sob uma luz desfavorável, o que me causa um certo desgosto. Salles parece ter uma visão incorrigível de que o problema do Brasil é o próprio brasileiro – como se nossa gente fosse intrinsecamente inclinada ao crime ou à corrupção, o que é uma visão preguiçosa e redutora. Esse tipo de representação negativa soa mal-intencionada e contribui para perpetuar uma visão estereotipada e antiquada. Seria pedir demais que o filme buscasse um retrato um pouco mais nuançado?

Walter Salles já me desagradou em outros filmes, e aqui não foi diferente. Para ser bem honesto, nunca fui fã de Central do Brasil, que também me parece um filme cansativo e focado em uma visão pessimista e pouco construtiva. Em Terra Estrangeira, a direção de Salles e Thomas se revela igualmente preguiçosa. A câmera tenta capturar uma estética realista, mas falha em transmitir qualquer profundidade. Os planos longos e os takes de câmera na mão, em vez de criarem uma imersão na história, acabam cansando o espectador, que se vê obrigado a acompanhar um ritmo lento e desinteressante.

A fotografia em preto e branco parece uma tentativa óbvia de tornar o filme "artístico", mas não se justifica em nenhum momento da trama. Ao invés de adicionar algum elemento significativo, o preto e branco reforça a monotonia da narrativa e passa a impressão de uma decisão estética gratuita e pouco inspirada. Se a ideia era retratar uma atmosfera melancólica e desesperançosa, o filme consegue, mas ao custo de alienar o espectador, que se vê diante de uma tela quase sem vida e sem cor, tanto literal quanto figurativamente.

Fernanda Torres, que já demonstrou ser uma atriz talentosa em diversas produções, tanto no cinema quanto na televisão, aqui está somente "ok", o que é, no mínimo, decepcionante. Ao contrário de suas performances na TV Globo, onde muitas vezes consegue trazer profundidade até para papéis pouco complexos, Torres parece aqui contida e sem brilho. Sua personagem, Alex, não transmite qualquer empatia ou desenvolvimento real ao longo do filme, o que contribui para a falta de conexão emocional com o público.

A relação entre Paco e Alex, que deveria ser o ponto emocional da narrativa, é rasa e sem química. O roteiro não permite que o casal evolua de forma interessante e acaba limitando a atuação de ambos, com diálogos que oscilam entre o clichê e o enfadonho. É frustrante ver como um elenco com potencial para grandes atuações é subutilizado em um filme que se leva a sério demais, mas não tem o conteúdo necessário para justificar essa pretensão.

Talvez o aspecto mais irritante de Terra Estrangeira seja a forma como retrata os brasileiros em Portugal. Em vez de explorar a rica experiência de imigração e a complexidade da vida de um brasileiro no exterior, o filme reforça a imagem dos brasileiros como marginais. Há uma série de personagens que são mostrados como bandidos e pessoas de má índole, o que, além de prejudicial, não reflete a realidade da imigração brasileira em Portugal.

Essa visão negativa e quase preconceituosa do brasileiro que vive no exterior sugere uma crítica implícita: a de que os próprios brasileiros seriam o "problema". Essa mensagem é não apenas injusta, mas também desrespeitosa com aqueles que, por questões econômicas e sociais, tentam construir uma vida em outros países. Ao fazer isso, o filme reforça estereótipos que pouco contribuem para uma visão humanizada dos imigrantes brasileiros.

Terra Estrangeira poderia ter sido um retrato poderoso das dificuldades e da angústia de ser um brasileiro na década de 1990, uma época marcada pela incerteza econômica e social. Poderia ter abordado com profundidade a crise econômica do país e explorado as motivações de Paco para buscar uma nova vida em Portugal. No entanto, o filme prefere se afundar em uma narrativa pessimista e desinteressante, que pouco se importa com a verdadeira experiência de um jovem tentando escapar do caos econômico de seu país.

Walter Salles, mais uma vez, entrega um filme cansativo e esteticamente pretensioso, sem oferecer qualquer recompensa emocional ao espectador. Fernanda Torres, que poderia ter dado alguma cor ao filme, aparece limitada por um roteiro fraco e mal construído. E, ao retratar os brasileiros de forma pejorativa, Terra Estrangeira deixa um gosto amargo, como se a única forma de contar uma história sobre o Brasil fosse por meio de uma ótica depreciativa.

No final das contas, Terra Estrangeira não apenas falha em ser um bom filme, mas também desperdiça uma oportunidade de mostrar a profundidade do povo brasileiro e suas reais dificuldades. Em vez de ser uma obra impactante, a produção se perde em estereótipos e em uma narrativa insossa, que dificilmente conquista o espectador.

Pisque Duas Vezes (2024)

 


Título original: Blink Twice
Direção: Zoë Kravitz
Sinopse: Quando o bilionário de tecnologia Slater King conhece a garçonete Frida em sua gala de arrecadação de fundos, faíscas voam. Ele a convida para se juntar a ele e seus amigos nas férias dos sonhos em sua ilha particular. Noites selvagens se misturam com dias ensolarados e todos estão se divertindo. Ninguém quer que esta viagem acabe, mas à medida que coisas estranhas começam a acontecer, Frida começa a questionar a sua realidade. Há algo errado com este lugar. Ela terá que descobrir a verdade se quiser sair viva desta festa.


Em Pisque Duas Vezes (Blink Twice, 2024), Zoë Kravitz surpreende como diretora com uma visão visual marcante, repleta de saturação e de uma direção de arte que potencializa cada cena, ao mesmo tempo em que assume um estilo despretensioso e cheio de referências. A história gira em torno de Frida (Naomi Ackie), que visita uma misteriosa ilha em companhia de amigos e acaba se deparando com a figura enigmática de Slater King (Channing Tatum), um anfitrião excêntrico que os recebe em sua luxuosa mansão e revela intenções sombrias.

Visualmente, o filme é um deleite. A fotografia, que usa cores vibrantes e saturadas, cria um tom sinistro que, ao mesmo tempo, parece brilhar em um estilo quase pop. Este efeito de intensidade nas cores é cortesia da diretora de fotografia Charlotte Bruus Christensen, que emprega a paleta de tons quentes da locação, uma hacienda no México, com uma profundidade vibrante e saturada. Essa ambientação contribui para que a casa pareça quase um personagem próprio, com toques de elegância, mas que revelam uma falsidade no charme sofisticado do lugar, refletindo o caráter ambíguo de Slater​.

A trilha sonora merece destaque, oferecendo uma vibração descontraída e divertida, e serve como um alívio para os momentos tensos e os sustos. Kravitz parece ter usado a trilha para reforçar a natureza quase irônica do filme, colocando músicas leves em cenas que poderiam ser assustadoras. Isso também traz à tona o aspecto de “colagem” do filme: um mix de estilos e influências que remete a clássicos do horror e suspense, embora o faça de forma muitas vezes desconexa. No entanto, essa descontinuidade estilística tem o efeito surpreendente de tornar o filme envolvente, pois, ao misturar diferentes referências e clichês, mantém o espectador preso em uma jornada divertida e inesperada, em vez de buscar um sentido mais profundo ou uma narrativa coesa​.

A escolha de Kravitz como diretora é uma surpresa, pois muitos a conhecem por seu trabalho como atriz e cantora, além de ser filha do lendário músico Lenny Kravitz. A transição para trás das câmeras é inusitada, quase aleatória, mas ela acaba provando que consegue entregar um produto cativante, mesmo que não completamente original. Há uma leveza e uma autoconfiança na direção de Kravitz, como se ela não estivesse tentando provar nada, o que adiciona um charme peculiar ao filme. Este é um thriller que claramente não pretende ser levado muito a sério; ele aposta no entretenimento puro e é bem-sucedido em seu propósito descompromissado​.

Sobre o elenco, Channing Tatum interpreta o papel de Slater King, e sua atuação parece se alinhar bem ao que se espera dele: um personagem carismático e, ao mesmo tempo, raso. Ele encarna uma figura já bem explorada em outros filmes, quase uma caricatura de si mesmo, e Tatum parece confortável nessa posição familiar. Em contrapartida, Haley Joel Osment tem um retorno surpreendente e, para muitos, triste, pois ele se apresenta quase irreconhecível, longe do talento que exibiu em O Sexto Sentido e A.I.: Inteligência Artificial. Sua presença é uma lembrança de seu auge, e é lamentável vê-lo relegado a um papel menor e pouco exigente​.

Outro aspecto interessante é a escolha da locação. A mansão de Slater, uma hacienda mexicana, é transformada com adereços e designs criados para dar uma aparência misteriosa e decadente. Roberto Bonelli, o designer de produção, trouxe elementos florais marcantes, como flores tingidas com curry para criar um tom específico, transformando a mansão em uma espécie de armadilha elegante. Os detalhes e a meticulosa construção do ambiente ajudam a criar uma atmosfera tensa e desconfortável, onde o luxo é ameaçador. Esses cenários cuidadosamente preparados contribuem para que o espectador sinta que algo está sempre “errado” naquela casa​.

Pisque Duas Vezes pode não inovar em termos de narrativa e parece um compêndio de clichês de outros filmes de suspense, mas, ainda assim, diverte e mantém um tom irreverente e bem-humorado. O filme é uma colagem de cenas e estilos que, no final das contas, não precisam fazer muito sentido, pois o objetivo principal é entreter. Zoë Kravitz entrega um filme visualmente forte, repleto de atmosferas intensas e momentos engraçados, provando que às vezes o bom cinema pode ser apenas uma coleção de momentos agradáveis e despretensiosos, sem a necessidade de profundidade. Em resumo, é um filme que se diverte consigo mesmo, e, nesse sentido, também diverte o público.

outubro 29, 2024

A Roda (1923)

 


Título original: La Roue
Direção: Abel Gance
Sinopse: O maquinista Sisif salva a pequena Norma de um acidente ferroviário e decide criá-la. À medida que cresce, ela se apaixona por Elie, filho de Sisif que ela pensa ser seu irmão. Ao mesmo tempo, Sisif também se apaixona por ela, criando um complexo triângulo amoroso.


Para uma crítica aprofundada de A Roda (La Roue, 1923), é essencial reconhecer o impacto histórico e técnico do filme, que representa um marco significativo na evolução do cinema. Dirigido por Abel Gance, um dos cineastas mais ambiciosos e inventivos de sua época, A Roda é uma obra épica e emocionalmente intensa, que explorou e desafiou as possibilidades cinematográficas em um período de grande experimentação artística. Longe de ser um filme convencional, a obra é rica em simbolismo e apresenta inovações técnicas, apesar de possuir elementos que hoje talvez pareçam superados.

A Roda surgiu em um momento crucial da carreira de Abel Gance. Após o sucesso de J'accuse (1919), Gance decidiu levar sua visão ainda mais longe, com uma história que beira o trágico e o mítico. No entanto, o que realmente se destaca em A Roda é a audácia técnica que ele empregou para capturar emoções e sensações de forma visceral. Neste sentido, Gance explorou novas técnicas de montagem, especialmente a montagem acelerada, um recurso que ele utilizou para transmitir a velocidade e o ritmo frenético dos trens e a tensão emocional dos personagens. Essa técnica seria mais tarde amplamente desenvolvida por cineastas como Sergei Eisenstein, sendo que Gance é muitas vezes mencionado como um precursor do cinema de vanguarda.

A complexidade da edição de A Roda merece destaque. Foram utilizados cortes rápidos e experimentos com sobreposição de imagens, técnicas que eram muito avançadas para a época. Essas escolhas visuais transmitem uma sensação de urgência e turbulência, condizentes com o tema central da obra: a vida em constante movimento e transformação, simbolizada pela imagem das rodas dos trens, metáfora que Gance explora em profundidade. Este trabalho de edição foi realizado pelo próprio Gance, o que indica o controle absoluto que ele mantinha sobre sua visão artística, tornando o filme uma expressão pessoal e inconfundível.

A narrativa de A Roda acompanha Sisif, um maquinista de trem que, após resgatar uma menina órfã chamada Norma em um acidente, decide criá-la como sua própria filha. Com o tempo, porém, desenvolve sentimentos complexos e perturbadores por ela, em um enredo que mistura temas de sacrifício, desejo proibido e arrependimento. Esta trama carrega traços do realismo psicológico que era inovador para o cinema mudo da época, uma vez que mergulha profundamente nas camadas emocionais e psicológicas dos personagens, explorando conflitos internos de forma sofisticada.

Gance extrai atuações expressivas de seus atores, especialmente de Séverin-Mars no papel de Sisif. A intensidade que ele imprime ao personagem é fundamental para que o público compreenda os dilemas morais e as angústias do protagonista. A personagem de Norma, interpretada por Ivy Close, também traz uma presença enigmática e etérea, que se encaixa bem na ambiguidade de sua relação com Sisif. Contudo, há momentos em que a performance de Séverin-Mars exagera nas expressões, o que, para o espectador moderno, pode parecer caricato. Apesar disso, no contexto do cinema mudo, essa intensidade era essencial para comunicar as emoções sem diálogos.

Abel Gance usa o simbolismo de forma marcante para construir uma estética visual única. A figura das rodas e dos trilhos permeia o filme, representando o destino inevitável e as forças implacáveis que controlam a vida dos personagens. As rodas do trem não são apenas um elemento mecânico; elas se tornam quase míticas, como se fossem as rodas da vida e da morte que movem o destino dos personagens. Gance tem uma sensibilidade quase poética para as metáforas visuais, que ele utiliza para transformar uma história aparentemente simples em uma meditação filosófica sobre o destino e o sofrimento humano.

As paisagens montanhosas e as cenas ao ar livre também contribuem para o caráter épico de A Roda. Gance filma com uma abordagem quase documental, aproveitando as vastidões e os espaços naturais como parte da psicologia dos personagens. Essa escolha por locações reais, em vez de cenários artificiais, enriquece a experiência visual e amplia a dimensão da narrativa. No entanto, é evidente que, em algumas partes, o filme perde o ritmo, com sequências que parecem excessivamente longas e, talvez, desnecessariamente poéticas. Essa ambição visual e poética é admirável, mas, em alguns momentos, pode fazer com que o filme se arraste.

A trilha sonora original de A Roda era complexa e inovadora, composta para acompanhar as emoções dos personagens e os movimentos da narrativa. Infelizmente, a versão original da trilha foi perdida, e muitas exibições modernas dependem de trilhas reconstruídas ou compostas posteriormente. Isso, sem dúvida, afeta a recepção do filme, já que a música é um componente vital para sustentar o impacto emocional em obras mudas. Mesmo assim, a construção das cenas, com suas intensas variações de ritmo, permite que o filme transmita emoções profundas, especialmente nas sequências que envolvem o trem, onde a sincronia entre som e imagem era pensada para intensificar a experiência do espectador.

Apesar de todas as inovações e do simbolismo rico, A Roda enfrenta dificuldades em cativar o público contemporâneo com a mesma intensidade que possivelmente alcançou em 1923. A duração extensa – chegando a quase oito horas em sua versão completa – é um desafio para os espectadores modernos. Embora existam versões reduzidas, a estrutura do filme ainda demanda uma paciência e uma entrega total à narrativa, o que pode ser exaustivo.

A obra de Gance, por sua natureza experimental, ocasionalmente sacrifica a clareza em nome da ambição estética. Alguns personagens e subtramas parecem um tanto desconexos, o que torna a experiência fragmentada em certos momentos. Essa falta de coesão, somada à repetição de alguns temas, pode tornar o filme cansativo para aqueles que não estão familiarizados com o estilo expressionista e melodramático da época.

A Roda é uma obra que merece ser apreciada pelo impacto que teve na evolução do cinema e pela audácia de Abel Gance em explorar o meio cinematográfico como uma forma de arte plena, onde imagem, movimento e simbolismo se fundem. Embora o filme apresente certos exageros e algumas limitações que enfraquecem sua fluidez narrativa, ele ainda se mantém relevante como um estudo das emoções e das complexidades humanas.

A experiência de assistir a A Roda é semelhante à de contemplar uma pintura expressionista: há uma beleza incomum, misturada a uma angústia visceral, que atinge o espectador em um nível quase inconsciente. Para aqueles que buscam entender a história do cinema e a evolução das técnicas de montagem e narrativa visual, A Roda é uma referência obrigatória. Contudo, é uma obra que exige do espectador paciência e uma disposição para se perder nos devaneios artísticos de Gance. Não é um filme fácil, mas é uma experiência única, com uma estética que reflete as aspirações de uma era em que o cinema ainda estava se reinventando.

outubro 27, 2024

Não Fale o Mal (2022)

 


Título original: Speak No Evil
Direção: Christian Tafdrup
Sinopse: Após conhecerem uma família holandesa durante suas férias na Toscana, uma família dinamarquesa recebe o convite de passar o fim de semana na casa de seus novos amigos. Mas não demora muito para que mal-entendidos revelem que a família holandesa não é quem diziam ser.


Ao assistir ao filme dinamarquês Não Fale o Mal (2022), de Christian Tafdrup, após conferir o remake de 2024, pude apreciar as notáveis diferenças entre as duas versões. Tafdrup se destaca pela construção de uma atmosfera densa e psicológica, onde o desconforto progressivo transforma uma história simples em uma experiência angustiante. No entanto, a adaptação americana diverge no tom, adicionando camadas de motivação para os vilões e criando um terceiro ato com um desfecho mais convencional e “palatável” ao público. Enquanto o remake entretém com sua narrativa direta, o original dinamarquês apresenta uma proposta mais enigmática e perturbadora que deixa o espectador em uma zona de desconforto que parece interminável​.

O filme dinamarquês foca em Bjørn (Morten Burian) e Louise (Sidsel Siem Koch), um casal que busca escapar da monotonia ao aceitar o convite de um casal de amigos, Patrick (Fedja van Huêt) e Karin (Karina Smulders). Através de um roteiro que esconde intenções e eventos sinistros até o último momento, Tafdrup mostra como a gentileza e o desconforto social podem tornar-se ferramentas de manipulação. Enquanto o remake constrói Ben e Louise com uma dinâmica conjugal turbulenta, o filme original apresenta Bjørn e Louise de maneira sutilmente mais harmoniosa, o que intensifica a sensação de horror: eles não percebem a ameaça crescente porque, inicialmente, não veem motivo para suspeitar​.

Tecnicamente, Tafdrup cria tensão com planos estáticos e composições que deixam os personagens desconfortavelmente centralizados ou fora de foco, emoldurando a disfunção relacional e psicológica que emerge entre eles. A trilha sonora é minimalista, quase inexistente, ressaltando o silêncio opressor. Em contraste, o remake introduz uma trilha mais intensa e cortes de câmera que dramatizam as interações, tornando o perigo mais palpável para o público. Além disso, a fotografia no original se apega a tons frios e imagens granuladas, o que acentua a atmosfera sombria e crua, enquanto o remake é visualmente mais limpo e dinâmico, mantendo o espectador constantemente envolvido​.

O ápice do horror no filme de Tafdrup ocorre de forma brutal e sem redenção. O desfecho, que se desenrola com um naturalismo perturbador, expõe as vítimas à impotência completa, sem oferecer ao público o alívio do confronto. Esse final desconcertante é um dos pontos que tornam a versão dinamarquesa mais difícil de assistir, mas também muito mais provocativa em termos de impacto psicológico. No remake, as cenas finais seguem uma direção mais familiar ao gênero de horror, com sequências de confronto que aliviam a tensão de maneira esperada, apelando a um público mais amplo.

Assisti ao remake primeiro, e a experiência de retornar ao original revelou a essência mais sutil e psicológica da obra de Tafdrup. A adaptação americana, embora eficiente em seu propósito de entreter, torna-se menos desafiadora. Assim, enquanto o remake chama atenção com cenas impactantes e suspense mais direto, o filme dinamarquês permanece como uma experiência incomodamente esquecível — o tipo de horror que se deixa de lado antes mesmo do fim dos créditos.

Ataque dos Cães (2021)

 


Título original: The Power of the Dog
Direção: Jane Campion
Sinopse: Um fazendeiro durão trava uma guerra implacável contra a nova do esposa do irmão, até que o inesperado acontece.


Ataque dos Cães, de Jane Campion, é um exemplo raro e revigorante de uma produção moderna que desafia suas próprias convenções, ao mesmo tempo que constrói uma atmosfera densa e profunda. Esse western psicológico é ambientado nas vastas e belas paisagens do oeste americano dos anos 1920, onde o naturalismo dos cenários quase ofusca o desenvolvimento da trama em um primeiro momento. A sensação inicial de que estamos diante de um simples drama familiar logo se desfaz, revelando camadas complexas e inesperadas que conduzem a narrativa a uma direção imprevisível e perturbadora.

De fato, o que Campion realiza com este filme é desconcertante. Inicialmente, temos a impressão de estar assistindo a uma história sobre dois irmãos com personalidades opostas, envolvidos em um conflito de convivência. Phil, interpretado com uma intensidade magnética por Benedict Cumberbatch, é um fazendeiro austero e de temperamento ácido, cuja virulência psicológica se estende a todos ao seu redor, incluindo seu irmão George (Jesse Plemons), uma figura mais suave, gentil e um tanto pacífica. Essa relação tensa é explorada de forma vagarosa e minuciosa, com Campion não entregando o rumo da trama com clareza imediata. Pelo contrário, ela constrói uma sensação de suspense sutil e quase invisível, onde as camadas da história se revelam lenta e misteriosamente.

Um dos maiores triunfos técnicos de Ataque dos Cães está no uso impecável do silêncio e da trilha sonora. Campion opta por uma trilha sonora esparsa, colocando em destaque os sons naturais da paisagem e o peso do silêncio como parte da experiência imersiva. Quando a música entra em cena, ela é meticulosamente calibrada, com Jonny Greenwood trazendo uma composição que é ao mesmo tempo minimalista e profundamente impactante. O trabalho de Greenwood aqui não é um simples acompanhamento, mas sim uma extensão emocional da narrativa, intensificando momentos de tensão e ambiguidade. Essa abordagem musical modesta, porém poderosa, adiciona uma dimensão psíquica ao filme que raramente se encontra em produções modernas.

Em termos visuais, o filme é uma verdadeira joia. A cinematografia de Ari Wegner explora a paisagem com uma majestade quase sobrenatural, usando luz natural e enquadramentos amplos para capturar o isolamento brutal e a vastidão do ambiente. Cada frame é cuidadosamente composto, evocando uma beleza árida que dialoga com a dureza dos personagens e o mistério do enredo. Essa escolha estética não apenas complementa o tom do filme, mas o eleva a um estado quase meditativo, permitindo que o espectador mergulhe nos conflitos internos e psicológicos dos personagens, como se os sentimentos deles fossem inseparáveis da própria paisagem.

Ao fim, Ataque dos Cães desponta como uma obra única, cujo mérito vai além da beleza técnica e dos elementos artísticos: Campion cria uma narrativa que surpreende e desafia o público a cada cena. A princípio um drama rural, o filme se revela uma intrincada teia de ressentimentos, desejos reprimidos e manipulações emocionais que culminam em um final tanto chocante quanto satisfatório. A habilidade da diretora em guiar a história com sutileza, deixando a narrativa se desdobrar de forma orgânica, é um dos pontos altos que tornam este longa uma experiência cinematográfica inesquecível.

Esse é, sem dúvida, um filme que merece a nota máxima, pois é ao mesmo tempo um banquete visual e uma exploração emocional densa, onde nada é gratuito e cada cena tem um propósito cuidadosamente calculado. Ataque dos Cães prova que o cinema moderno ainda pode surpreender, desafiar e, sobretudo, permanecer na memória como uma joia rara e inesquecível.

outubro 26, 2024

Nosferatu (1922)

 


Título original: Nosferatu, eine Symphonie des Grauens
Direção: F. W. Murnau
Sinopse: Hutter (Gustav von Wangenheim), agente imobiliário, viaja até os Montes Cárpatos para vender um castelo no Mar Báltico cujo proprietário é o excêntrico conde Graf Orlock (Max Schreck), que na verdade é um milenar vampiro que, buscando poder, se muda para Wisborg, espalhando o terror na região. Curiosamente quem pode reverter esta situação é Ellen (Greta Schröder), a esposa de Hutter, pois Orlock está atraído por ela.


Quando falamos sobre os filmes que definiram o cinema de horror, Nosferatu não é apenas uma referência histórica; é uma obra revolucionária que transformou para sempre o gênero. A direção magistral de F. W. Murnau combinou técnica, atmosfera e audácia narrativa para criar algo muito além de uma simples história de vampiros. Lançado em 1922, o filme é uma adaptação não oficial do romance Drácula, de Bram Stoker, que, apesar das polêmicas legais, se destacou como um marco do expressionismo alemão, elevando a estética e o simbolismo a um nível que poucos filmes conseguiram alcançar.

O uso da luz em Nosferatu é uma aula de cinema em si. Murnau trabalha com sombras de forma quase mística, como uma extensão das trevas que envolvem o vampiro, o icônico Conde Orlok, interpretado de forma sombria e intensa por Max Schreck. O design de luzes e sombras atua quase como um personagem próprio, levando o espectador a uma experiência hipnótica, ora sufocante, ora assustadora. As sombras de Orlok, por exemplo, são quase entidades autônomas que se estendem, distorcem e amplificam o terror. Esse uso de sombras é magistral na famosa cena em que Orlok sobe as escadas da casa de Ellen, sua silhueta projetada na parede, como se o horror estivesse se infiltrando na própria alma da vítima.

A fotografia é outro elemento primoroso, responsabilidade de Fritz Arno Wagner, que utilizou ângulos inovadores para a época e explorou o contraste de luzes para potencializar o clima sinistro. Esse trabalho não apenas destaca a figura ameaçadora de Orlok, mas também captura a decadência e a opressão de Wisborg, a fictícia cidade em que a narrativa se desenrola. Wagner, colaborador de outras produções expressionistas, era conhecido por sua habilidade em criar atmosferas densas, e em Nosferatu ele atinge seu ápice criativo, transportando o público para uma dimensão onde o medo se torna quase palpável.

Max Schreck como Conde Orlok é uma das atuações mais memoráveis da história do cinema. Schreck não só interpreta, ele encarna o vampiro. Sua presença cadavérica, com as unhas alongadas, olhos arregalados e uma postura rígida, confere a Orlok uma estranheza alienígena, como se ele estivesse fora de qualquer moral ou humanidade. Essa aparência marcante de Orlok foi tão impactante que criou mitos sobre Schreck ser, ele próprio, um vampiro, o que inspirou até a criação do filme A Sombra do Vampiro (2000), em que Willem Dafoe interpreta Schreck como um verdadeiro monstro.

O trabalho de Schreck é um dos maiores exemplos de como um ator pode transmitir camadas de horror sem uma palavra sequer, confiando apenas em sua presença física e nos gestos mínimos. Sua atuação é visivelmente influenciada pelo teatro expressionista alemão, onde cada movimento tinha uma carga emocional quase sobrenatural. Em uma era sem som, a capacidade de Schreck de aterrorizar sem dizer uma palavra torna sua performance ainda mais surpreendente.

Nosferatu é um dos exemplos mais puros do expressionismo alemão. Este movimento, que floresceu na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, procurava explorar temas sombrios e psicológicos por meio de cenários distorcidos, iluminação dramática e atuações intensamente expressivas. A estética de Nosferatu, com cenários simplistas mas carregados de simbolismo, faz com que o horror pareça uma presença etérea que flutua acima do filme. Isso inspirou não apenas o gênero de horror, mas o cinema como um todo. Diretores como Tim Burton, David Lynch e até Alfred Hitchcock beberam da fonte de Nosferatu em suas obras, usando elementos do expressionismo para dar profundidade psicológica e visual aos seus filmes.

É interessante notar que, ao contrário de muitos filmes expressionistas que optavam por cenários pintados ou artificiais, Murnau filmou muitas cenas em locações reais, como o castelo de Orava, na Eslováquia, para representar o castelo do Conde Orlok. Essa fusão entre o artificial e o real cria uma atmosfera de pesadelo, onde o espectador não sabe ao certo se está observando o mundo real ou uma distorção da realidade.

A trilha sonora original de Hans Erdmann, embora perdida, foi reconstruída várias vezes ao longo dos anos e se tornou um elemento essencial na experiência de Nosferatu. A música, em suas diferentes versões, sempre busca traduzir o terror e a tensão que permeiam o filme. Em uma obra muda, a trilha sonora assume o papel de narrador, conduzindo o espectador pelas nuances de horror psicológico que Murnau desenhou. Hoje, várias versões e orquestras interpretam a trilha de Erdmann, mantendo a essência macabra e melancólica que complementa tão bem o filme.

O aspecto controverso de Nosferatu reside na tentativa de adaptação de Drácula, de Bram Stoker, sem a autorização de sua viúva, Florence Stoker. A produtora Prana Film, responsável pelo filme, acreditava que, alterando os nomes e alguns detalhes da trama, poderia evitar problemas de copyright. Conde Drácula tornou-se Conde Orlok, Jonathan Harker foi renomeado para Hutter, e assim por diante. No entanto, Florence processou a Prana Film, exigindo a destruição de todas as cópias do filme. Apesar de uma ordem judicial para destruir o filme, cópias clandestinas foram preservadas, garantindo que Nosferatu sobrevivesse ao tempo e se tornasse o clássico que conhecemos hoje.

Essa batalha judicial e o fascínio pelo enigmático Conde Orlok acabaram gerando uma lenda que só aumentou o culto em torno do filme. Ironia ou destino, essa tentativa de apagar Nosferatu da história fez com que ele se tornasse ainda mais poderoso e importante para o cinema.

Além de seu impacto visual, Nosferatu explora temas profundos sobre morte, sexualidade e medo do desconhecido. O Conde Orlok representa uma força inevitável e destruidora, que ameaça a ordem natural da vida e desafia a lógica da ciência e da razão. A jornada de Hutter para o castelo de Orlok pode ser vista como uma metáfora para o confronto do homem com seus próprios demônios. A imagem do vampiro que espalha a peste é um reflexo do medo da morte que assombrava a Europa pós-guerra, e o próprio Orlok simboliza a presença da morte que contamina o mundo ao seu redor.

Outro tema latente é a sexualidade sombria e reprimida, representada pela fixação de Orlok por Ellen. A cena em que ele se inclina sobre ela enquanto ela dorme é carregada de tensão sexual e de um terror implícito que sugere os perigos do desejo reprimido e do proibido. Ellen é a figura sacrificial que, ao permitir que Orlok a tome, acaba destruindo-o ao amanhecer. Aqui, Murnau parece propor uma reflexão sobre os impulsos humanos e os limites entre o desejo e a autodestruição.

Nosferatu não é apenas um filme de terror; é uma experiência de imersão em uma realidade onde o medo transcende o visível e se torna quase tangível. É um trabalho de beleza gótica e poesia visual que resiste ao teste do tempo, inspirando gerações de cineastas, críticos e amantes da sétima arte. Sua influência pode ser vista em filmes clássicos e contemporâneos, nos quais a estética do horror e a psicologia do terror encontram novos meios de expressão, mas raramente com a mesma pureza e intensidade.

Murnau conseguiu criar uma obra-prima que transcende o horror e se torna uma meditação sombria sobre a vida, a morte e o desconhecido. Nosferatu permanece inigualável, um testemunho eterno do poder do cinema em capturar os medos mais profundos e secretos da humanidade. Para aqueles que buscam o cinema como arte, como poesia visual e como experiência psicológica, Nosferatu é o ápice.

Tatuagem (2013)

 


Título original: Tatuagem
Direção: Hilton Lacerda
Sinopse: Recife, 1978. Clécio Wanderley (Irandhir Santos) é o líder da trupe teatral Chão de Estrelas, que realiza shows repletos de deboche e com cenas de nudez. A principal estrela da equipe é Paulete (Rodrigo Garcia), com quem Clécio mantém um relacionamento. Um dia, Paulete recebe a visita de seu cunhado, o jovem Fininha (Jesuíta Barbosa), que é militar. Encantado com o universo criado pelo Chão de Estrelas, ele logo é seduzido por Clécio. Não demora muito para que eles engatem um tórrido relacionamento, que o coloca em uma situação dúbia: ao mesmo tempo em que convive cada vez mais com os integrantes da trupe, ele precisa lidar com a repressão existente no meio militar em plena ditadura.


Tatuagem, de Hilton Lacerda, é uma obra que se destaca pelo contexto histórico em que se desenrola, mas, ao mesmo tempo, se perde em uma narrativa que tenta desafiar convenções de forma mais ostensiva do que sutil, o que pode acabar distraindo o espectador de seus pontos mais interessantes. Situado em plena ditadura militar brasileira dos anos 1970, o filme constrói uma trama sobre resistência cultural, liberdade e relações afetivas, marcada pela aura do teatro marginal e das artes subversivas. Ele explora o relacionamento entre Clécio (Irandhir Santos), diretor de uma trupe teatral, e o jovem soldado Fininha (Jesuíta Barbosa), trazendo a tensão entre a rigidez militar e a pulsante contracultura da época.

Tecnicamente, Tatuagem é um filme visualmente provocador. A direção de arte, assinada por Renata Pinheiro, consegue reproduzir com fidelidade os cenários de um Brasil efervescente, ao mesmo tempo caótico e colorido, que pulsa com energia subversiva. Esse trabalho de ambientação é um ponto alto, com detalhes que ajudam o espectador a mergulhar no universo quase onírico do grupo de artistas. Entretanto, a estética marginal que o filme busca evocar, com sua teatralidade carregada e cenas provocativas, é, por vezes, excessiva, o que pode fazer com que o impacto dramático se dissipe em prol de uma crueza que não traz sempre a profundidade esperada.

No aspecto da narrativa, Hilton Lacerda tenta construir um cenário onde o amor e a liberdade enfrentam os grilhões da repressão militar. No entanto, o roteiro, também assinado por Lacerda, parece hesitar entre um drama político e um romance íntimo, sem conseguir equilibrar completamente as duas propostas. A trama muitas vezes pende para o óbvio e demora a se desenvolver, algo que impacta a fluidez do filme. Esse problema, combinado com alguns diálogos que soam forçados, impede que a história ganhe todo o impacto emocional que poderia, considerando o potencial dos personagens.

Em termos de atuações, Jesuíta Barbosa é, sem dúvida, o ponto mais forte do filme. Interpretando Fininha, ele traz uma entrega completa, imprimindo ao personagem uma vulnerabilidade e autenticidade que sustentam boa parte da carga emocional do filme. Barbosa transita com facilidade entre a doçura e o desejo de liberdade de Fininha e os conflitos internos de um jovem que carrega o peso da repressão social. Sua atuação é crua e natural, tornando o personagem crível e oferecendo ao público uma janela íntima para o dilema de Fininha, entre o desejo de se libertar e a pressão de sua função militar. É essa performance que dá ao filme seu brilho, em contraste com a abordagem mais caricata que a direção dá a outros personagens.

Irandhir Santos, por sua vez, é um ator de imensa competência, mas, aqui, parece um pouco aquém de seu talento. Sua interpretação de Clécio, o líder excêntrico do grupo teatral, por vezes beira o estereótipo. Embora a intenção seja representar uma figura intensa e desafiadora, o personagem carece de uma complexidade que possa realmente comover. A carga dramática recai mais sobre o relacionamento entre Clécio e Fininha, mas, sem uma base sólida no roteiro para desenvolver essa química, algumas cenas parecem forçadas. Os momentos de intimidade entre os dois variam entre o genuíno e o artificial, deixando o espectador sem a conexão profunda que a trama sugere.

Outro aspecto técnico que merece destaque é a fotografia de Ivo Lopes Araújo. Com uma paleta de cores vibrante e contrastante, Araújo constrói uma atmosfera de liberdade e transgressão, realçando o contraste entre o ambiente boêmio do grupo teatral e o peso da ditadura. A iluminação é usada para destacar a sensualidade e a teatralidade das performances, criando uma identidade visual que flerta com o grotesco e o exagerado. No entanto, essa escolha visual por vezes se torna repetitiva, e a fotografia acaba reforçando a mesma mensagem de forma insistente, sem novas nuances ou experimentações ao longo da narrativa.

A trilha sonora de DJ Dolores é outro elemento que merece menção. Com uma mistura de ritmos que vão do rock ao experimental, a trilha ajuda a consolidar o espírito anárquico do filme, mesmo que em alguns momentos também acabe sobrecarregando as cenas mais introspectivas. A música se alinha com o estilo de vida transgressor dos personagens, mas, em alguns casos, acaba eclipsando o próprio conteúdo emocional, o que contribui para a sensação de que o filme coloca estilo acima da substância.

A montagem, assinada por Mair Tavares, apresenta uma tentativa de ritmo dinâmico, especialmente nas cenas de show e nas performances do grupo teatral, mas sofre com uma falta de coesão. A sequência das cenas e a transição entre momentos de contemplação e os mais caóticos nem sempre funcionam de forma harmônica, e isso compromete a fluidez. As passagens abruptas entre cenas acabam prejudicando a imersão na história, interrompendo a continuidade narrativa. Além disso, alguns dos momentos mais simbólicos ou sensíveis acabam perdendo força diante da montagem que não se permite pausas ou silêncios, o que poderia intensificar a experiência emocional.

Ainda assim, Tatuagem é um filme que tenta capturar o espírito de uma época e o desejo de liberdade de um grupo que ousa desafiar as convenções sociais. Embora o roteiro e a execução apresentem limitações, Jesuíta Barbosa entrega uma performance memorável que vale a experiência. Seu talento e presença em cena dão a “Tatuagem” uma intensidade que outras partes do filme, infelizmente, não acompanham. Em um filme onde a ousadia estética se sobrepõe à narrativa, é o trabalho dos atores – e, em especial, de Barbosa – que oferece os momentos de maior autenticidade.

No fim, Tatuagem parece uma obra que almeja mais do que consegue alcançar. Ao tentar ser tão provocador e transgressor, o filme acaba se distanciando daquilo que poderia torná-lo realmente impactante: uma conexão genuína com o espectador. A provocação parece querer chocar mais do que comunicar, o que limita a profundidade da história e compromete a experiência geral. Mesmo assim, fica a marca de Jesuíta Barbosa, cujo talento transparece como uma tatuagem invisível no coração do filme. Em meio à narrativa um tanto dispersa, é ele quem consegue, de fato, deixar uma impressão.

outubro 25, 2024

Não Fale o Mal (2024)

 


Título original: Speak No Evil
Direção: James Watkins
Sinopse: Quando uma família americana é convidada a passar o fim de semana na idílica casa de campo de uma charmosa família britânica, com quem fizeram amizade nas férias, o que começa como um feriado dos sonhos logo se transforma em um assustador e paralisante pesadelo psicológico.


Não Fale o Mal (Speak No Evil, 2024), dirigido por James Watkins, é um thriller psicológico e sombrio que explora os limites da tensão social e do terror psicológico em uma narrativa cuidadosamente construída. O filme é um remake da produção dinamarquesa de 2022, mas Watkins injeta sua própria visão no enredo, trazendo uma abordagem mais focada na cultura britânica e americana. A trama gira em torno de uma família americana, interpretada por Scoot McNairy e Mackenzie Davis, que, após conhecer um casal britânico durante as férias, é convidada para um fim de semana na casa de campo dos novos amigos. James McAvoy e Aisling Franciosi interpretam os anfitriões britânicos, cujas intenções sombrias só se revelam ao espectador depois de uma longa construção narrativa, adicionando suspense ao filme e mantendo o público atento e envolvido.

Desde o início, Watkins deixa pistas sobre as verdadeiras intenções dos anfitriões, mas sem entregar o clímax prematuramente. Ao contrário de muitos filmes de terror contemporâneos, que apelam para sustos frequentes e previsíveis, Não Fale o Mal opta por um desenvolvimento mais lento, onde o verdadeiro horror emerge com o aumento gradual do desconforto e da tensão. Esse ritmo mais cadenciado pode até afastar fãs de terror que esperam sustos a cada momento, mas é um diferencial positivo para quem valoriza uma construção psicológica profunda e a ambiguidade que Watkins propõe. A ambientação e o roteiro trabalham juntos para questionar os limites da confiança e da vulnerabilidade, o que se intensifica até o ponto de virada do filme, mais de uma hora depois do início.

A fotografia e direção de arte são cuidadosas, criando uma atmosfera sombria e opressiva dentro da casa de campo isolada. Os ambientes são inicialmente acolhedores, mas aos poucos revelam detalhes perturbadores, que prenunciam a verdadeira natureza dos anfitriões. Esse efeito é reforçado pela trilha sonora, que sabe dosar momentos de silêncio e música inquietante, aumentando o suspense de maneira gradual.

As atuações são um ponto forte. McAvoy e Franciosi trazem complexidade a seus papéis como o casal hospedeiro: enquanto McAvoy transita entre o charmoso e o aterrorizante, Franciosi revela um lado manipulador e imprevisível, mantendo o espectador em constante estado de alerta. McNairy e Davis, por outro lado, representam com precisão a angústia e a impotência que dominam seus personagens ao se verem encurralados, o que adiciona uma camada de realismo à tensão crescente. Watkins, que já explorou o horror com sucesso em A Mulher de Preto, volta a manipular a narrativa para confundir as expectativas do espectador, mantendo uma ambiguidade sobre a real ameaça até o desfecho.

Em termos de narrativa, Não Fale o Mal se destaca pela sua escolha de reservar o ponto de virada para depois de um extenso período de construção, algo que foge do padrão. Esse atraso em revelar a verdadeira ameaça mantém a audiência no suspense sobre o que está por vir, evitando clichês de horror. Essa abordagem também permite que o filme explore as dinâmicas e desconfortos sociais, um aspecto em que o roteiro de Watkins é especialmente bem-sucedido. Ele captura nuances do embate entre a educação excessiva e o desconforto extremo, um tema relevante para as tensões sociais contemporâneas.

Entretanto, o filme não escapa totalmente das armadilhas do gênero. Algumas cenas podem soar previsíveis para espectadores mais familiarizados com o horror psicológico e o terror social, e certos momentos acabam apelando para sustos um tanto convencionais. Ainda assim, Não Fale o Mal se destaca no panorama atual como um horror psicológico envolvente, que prende o espectador do início ao fim. Watkins entrega um filme que é ao mesmo tempo um suspense e uma crítica à dinâmica social, oferecendo uma experiência tensa, onde o verdadeiro terror reside na natureza humana e nas sombras da convivência social.