"Lírio Partido" ("Broken Blossoms"), dirigido por D.W. Griffith e lançado em 1919, é um filme do período do cinema mudo que exemplifica o apogeu das técnicas narrativas visuais da época. A trama foca na trágica história de amor entre Cheng Huan, um imigrante chinês, e Lucy, uma jovem britânica maltratada por seu pai. Embora seja celebrado por sua estética e inovações técnicas, também apresenta problemas que podem ser controversos quando vistos com os olhos de hoje, especialmente no que diz respeito a questões culturais e sociais.
Do ponto de vista técnico, "Lírio Partido" é uma das obras mais delicadas de Griffith. Sua abordagem visual reflete a busca pela sofisticação em um momento em que o cinema começava a ser reconhecido como uma forma de arte legítima. A cinematografia de Billy Bitzer é um dos maiores destaques do filme. Ele usa luz e sombra para criar uma atmosfera sombria e sufocante, que é essencial para reforçar o tom trágico da narrativa. A iluminação suave e difusa em várias cenas – especialmente aquelas que envolvem Lucy (interpretada por Lillian Gish) – dá ao filme uma qualidade quase onírica, como se os personagens estivessem presos em uma realidade frágil e triste.
A montagem é outro ponto importante a ser mencionado. Griffith já havia mostrado sua habilidade com o ritmo de edição em obras anteriores, como O Nascimento de uma Nação (1915) e Intolerância (1916), mas em Lírio Partido ele opta por uma abordagem mais contida e introspectiva. Aqui, ele desacelera o ritmo, permitindo que os sentimentos dos personagens ganhem mais espaço. A lentidão da montagem contribui para o ambiente de melancolia e resignação que permeia o filme.
Os intertítulos (cartelas de texto que aparecem entre as cenas no cinema mudo) são utilizados de forma econômica e poética. Eles fornecem o contexto necessário para a narrativa, mas também oferecem momentos de reflexão ao público. Esses intertítulos trazem uma qualidade literária à narrativa, conectando o espectador aos temas de sofrimento e sacrifício que dominam a história.
No entanto, apesar de sua sofisticação técnica, "Lírio Partido" tem limitações em termos de enredo e representação cultural. A escolha de Griffith de escalar Richard Barthelmess, um ator branco, para interpretar o personagem de Cheng Huan é um exemplo do "yellowface", uma prática comum em Hollywood na época, onde atores brancos eram maquiados para parecerem de outras etnias. Isso é problemático, não apenas porque perpetua estereótipos raciais, mas também porque limita a autenticidade e a profundidade emocional que o personagem poderia ter.
Lillian Gish, uma das atrizes favoritas de Griffith, oferece uma performance comovente e com nuances como Lucy. Seu talento em transmitir vulnerabilidade e desespero apenas com expressões faciais é notável. A cena em que ela, temendo o pai abusivo, se esconde em um armário, contorcendo o rosto em uma máscara de medo puro, é uma das mais lembradas do filme. Gish consegue capturar a essência de uma vítima oprimida sem recorrer ao exagero, o que ressalta sua habilidade como atriz.
Por outro lado, Richard Barthelmess, apesar de entregar uma performance sensível como Cheng Huan, enfrenta as limitações impostas pela caracterização racial de seu personagem. O filme o retrata como um homem idealista e pacífico, mas as nuances de sua identidade como imigrante chinês em um ambiente hostil são amplamente simplificadas. Além disso, o uso do yellowface é desconfortável para audiências modernas, tornando difícil apreciar completamente sua performance sem reconhecer o impacto negativo dessa escolha.
A história de "Lírio Partido" toca em temas de violência doméstica, racismo e sacrifício. A relação de Lucy com seu pai abusivo, Battling Burrows (interpretado de maneira assustadora por Donald Crisp), é uma das mais duras representações de abuso físico e psicológico já mostradas no cinema da época. O tratamento de Burrows em relação à filha é brutal, e Griffith não poupa o espectador de cenas que mostram a crueldade do personagem. No entanto, essa violência é equilibrada pela delicadeza com que Cheng Huan cuida de Lucy, criando um contraste visual e emocional poderoso.
O filme, entretanto, reflete também as limitações culturais e sociais de seu tempo. A visão de Griffith sobre a China e sua cultura é idealizada e simplificada, enquanto os personagens britânicos são retratados com uma brutalidade exacerbada. Isso pode ser visto como uma tentativa de criticar a sociedade ocidental, mas o fato de o herói da história ser um estereótipo racial enfraquece a mensagem.
Além disso, o subtexto colonialista não pode ser ignorado. Embora Cheng Huan seja mostrado como um personagem nobre e moralmente superior, ele ainda está preso a uma visão ocidentalizada da China e de si mesmo. O filme se encaixa em um padrão comum do início do século XX, onde as culturas asiáticas eram frequentemente retratadas de forma exótica e romantizada, mas sem verdadeira compreensão ou empatia. Essa abordagem diminui o impacto emocional e intelectual que a história poderia ter tido, especialmente considerando que o filme tenta abordar a questão do preconceito racial.
Embora Lírio Partido seja indiscutivelmente uma obra importante no desenvolvimento da linguagem cinematográfica, suas falhas narrativas e a representação racial problemáticas não podem ser ignoradas. É um filme que se destaca por suas inovações técnicas e pelo desempenho excepcional de Lillian Gish, mas, ao mesmo tempo, sofre com uma visão datada e limitada das culturas não ocidentais.
Dada a importância de D.W. Griffith na história do cinema, é inegável que Lírio Partido tenha deixado um legado duradouro. No entanto, do ponto de vista moderno, o filme pode parecer desconfortável e limitado em seu tratamento de temas raciais e culturais. Para muitos, especialmente aqueles que procuram narrativas mais complexas e representações mais justas, a experiência de assistir a Lírio Partido pode ser dividida entre a admiração pela forma e o desconforto com o conteúdo. Ele merece ser estudado e reconhecido por sua importância histórica, mas com a ressalva de que suas falhas ideológicas precisam ser abordadas e discutidas à luz dos valores contemporâneos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário