Inocente Pecadora (Way Down East, 1920), de D. W. Griffith, é uma obra que se equilibra entre a tradicional estética melodramática e o primor técnico que Griffith soube orquestrar na tela. Explorando temas de hipocrisia social, feminilidade e a implacável luta moral de uma jovem em busca de redenção, o filme adapta a peça teatral homônima de Lottie Blair Parker, convertendo-a em um espetáculo cinematográfico. Com quase duas horas e meia, Griffith preenche o tempo com drama, romance e, como é típico de suas obras, uma dose significativa de tensão.
A trama segue a trajetória de Anna Moore (Lillian Gish), uma jovem inocente e de origens humildes, que se vê atraída por um aristocrata astuto e despreocupado, Lennox Sanderson (Lowell Sherman). Sanderson, simbolizando a elite decadente e egoísta, usa sua posição para seduzir Anna, casando-se com ela em uma cerimônia falsa para conquistar sua confiança e, posteriormente, abandoná-la quando ela engravida. Esta premissa — uma mulher arruinada por confiar nos valores da sociedade que a julga — oferece o terreno perfeito para o tratamento moralista de Griffith, que, ao mesmo tempo, tece uma crítica à hipocrisia da época. Essa crítica é reforçada ao longo da narrativa pela interpretação visceral de Lillian Gish, que carrega o filme com uma expressividade comovente e absolutamente sincera.
Gish se destaca em sua atuação, sendo uma das interpretações mais marcantes e aclamadas de sua carreira. Sua habilidade de evocar o desespero silencioso de Anna, utilizando pequenos gestos e uma linguagem corporal que transita entre o retraimento e a fragilidade, é absolutamente crucial para o impacto emocional do filme. Suas expressões de dor, especialmente em cenas de close-up, ressoam como um grito sufocado, explorando com força o potencial do cinema mudo. A atuação de Gish atinge seu auge na famosa sequência do gelo, na qual, em meio a condições reais e perigosas, sua personagem é filmada à deriva em blocos de gelo, rumo a uma catarata. O efeito de realismo é esmagador, e a tensão se torna palpável — Griffith aqui abraça um experimentalismo de locação raramente visto na época, algo que torna essa sequência uma das mais icônicas do cinema mudo.
Essa famosa cena do gelo não é apenas um teste à coragem de Gish como atriz, mas também uma demonstração da visão técnica de Griffith. A cinematografia de Way Down East, assinada por G. W. Bitzer, aproveita os cenários naturais para acentuar a luta interna e externa de Anna. Bitzer, colaborador constante de Griffith, constrói com maestria os contrastes visuais entre a segurança e a ameaça, a calma e o caos, utilizando a natureza para refletir o estado emocional da protagonista. Este uso simbólico da paisagem e dos elementos naturais em prol da narrativa, com montagens entre cortes amplos e close-ups, marca uma construção visual sólida que se destaca em um cinema que ainda experimentava com as possibilidades expressivas da câmera.
A montagem de Way Down East, ao mesmo tempo que se beneficia da maestria de Griffith na construção do ritmo dramático, apresenta ocasionalmente um problema de ritmo, algo que é acentuado pela duração extensa. Em certos momentos, o filme parece insistir em cenas de diálogos e monólogos silenciosos que poderiam ser mais curtas, sobretudo no que diz respeito ao desenvolvimento inicial do romance entre Anna e Lennox. Esses momentos, enquanto atuam para estabelecer a ingenuidade de Anna e o caráter dúbio de Lennox, acabam também por desacelerar o desenvolvimento da trama. No entanto, Griffith compensa essa dilatação com sequências impactantes e decisivas, mostrando sua habilidade em manter o público investido nas tribulações de sua protagonista.
Outro aspecto interessante de Inocente Pecadora é seu papel social. O filme faz uma crítica implícita à moralidade vitoriana, questionando o papel da mulher na sociedade e a opressão que a cerca. Ao retratar Anna como uma personagem vítima das convenções, Griffith escancara as injustiças enfrentadas por mulheres de seu tempo, uma escolha narrativa que desafia as normas culturais de 1920. No entanto, paradoxalmente, o filme também reforça alguns valores conservadores, como a revalorização da pureza feminina e a punição quase imediata da falta moral. Essa ambivalência reflete a própria sociedade americana da época, que ainda caminhava lentamente para uma mudança de paradigmas em relação ao papel da mulher.
O som, ou melhor, a ausência dele, é compensado por uma trilha musical composta para acompanhar as exibições do filme. Na época, as apresentações contavam com músicos ao vivo que variavam a trilha sonora de acordo com o tom das cenas. As partituras criadas para Way Down East usavam a música como um veículo para enfatizar o pathos da narrativa, principalmente nas cenas mais dramáticas e nos momentos de perigo. A música, assim, se torna um personagem coadjuvante, amplificando o impacto emocional que Griffith desejava imprimir no público.
Inocente Pecadora não é apenas um dos filmes mais emblemáticos de Griffith; é também um reflexo do cinema mudo em sua fase de ouro, quando as limitações técnicas forçavam os cineastas a experimentar. Enquanto alguns elementos podem parecer datados para o espectador contemporâneo, a ousadia de Griffith ao filmar sob condições extremas e a atuação notável de Gish garantem ao filme uma relevância duradoura. Em última análise, Way Down East se afirma como uma peça essencial para entender o cinema da era silenciosa, e, mesmo que a duração ou a narrativa possam se arrastar para alguns, é inegável o poder emocional que Griffith e Gish conseguem transmitir em uma história que, até hoje, permanece como um dos grandes melodramas do cinema mudo.
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