Páginas

setembro 25, 2024

Fausto (1926)


Título original: Faust: Eine Deustsche Volkssage
Direção: F. W. Murnau
Sinopse: Disputando o poder sobre a Terra, Deus e Satã apostam a alma de Fausto, um alquimista erudito. Durante uma praga, este homem se desespera, queimando todos os seus livros. Neste momento, Satã envia Mefistófoles para tentar Fausto com o retorno da juventude e o alquimista aceita o pacto. Certo dia, entediado, ele resolve voltar para casa, onde conhece e se apaixona pela bela Gretchen, um encontro que será a desonra da moça. Baseado na famosa peça de Goethe.


Fausto (Faust: Eine Deutsche Volkssage, 1926), dirigido por F. W. Murnau, é uma obra-prima do cinema mudo que sintetiza elementos do expressionismo alemão, ao mesmo tempo em que incorpora temas universais de moralidade e redenção. Baseado no texto clássico de Goethe e nas versões populares da lenda de Fausto, Murnau nos apresenta uma visão épica e sombria do embate entre o bem e o mal, transformando a tela em uma pintura viva, carregada de simbolismo.

Tecnicamente, Fausto é um dos filmes mais impressionantes de sua época, marcado por uma inovadora utilização de efeitos especiais, iluminação e cenografia. O filme começa com uma aposta entre o arcanjo e o demônio Mefistófeles sobre a corrupção da alma humana, o que estabelece o tom quase bíblico da narrativa. Esta sequência de abertura, com as nuvens tempestuosas, o confronto entre luz e sombra e a gigantesca figura de Mefistófeles, é uma das cenas mais icônicas do expressionismo alemão, representando o poder de Murnau em criar imagens de grande impacto visual.

A estética expressionista permeia todo o filme, especialmente na forma como as sombras são usadas para representar a batalha interna de Fausto, bem como as forças externas que o manipulam. A iluminação contrastante destaca o tormento psicológico do protagonista, enquanto a geometria distorcida dos cenários intensifica o caráter onírico da narrativa. Isso é particularmente evidente na cidade onde Fausto vive, cujas ruas e edifícios parecem angulares e deformados, refletindo a corrupção moral que Mefistófeles espalha sobre o mundo.

Em termos de narrativa, Fausto apresenta a familiar história do pacto com o demônio, mas o faz com uma profundidade moral que a torna única. A decisão de Fausto de vender sua alma em troca de juventude e prazeres efêmeros é retratada com uma complexidade emocional que Murnau captura através da performance sutil e atormentada de Gösta Ekman. A dualidade do personagem, dilacerado entre o desejo e o arrependimento, é o cerne emocional do filme, e Ekman consegue equilibrar a fragilidade e a ambição de forma convincente, tornando Fausto uma figura trágica, mas ainda assim relacional.

Em oposição a Fausto, Emil Jannings entrega uma performance marcante como Mefistófeles. Jannings traz à vida um demônio carismático, astuto e sardônico, cuja presença domina a tela. Sua interpretação de Mefistófeles é cheia de nuances, desde o humor sombrio até a crueldade fria, destacando o personagem como uma das melhores encarnações cinematográficas do mal. O demônio aqui não é apenas uma força destrutiva; ele é também uma figura cínica e manipuladora, que se diverte com o sofrimento humano.

O uso de efeitos especiais, como a transformação de Mefistófeles em várias formas e as paisagens apocalípticas, eleva o filme a um patamar quase mítico. Para a época, esses efeitos eram inovadores e desafiavam os limites técnicos do cinema. A cena em que Fausto e Mefistófeles voam sobre as terras devastadas pela peste é especialmente impressionante, combinando cenários pintados e miniaturas para criar uma sensação épica e apocalíptica. Este voo não é apenas uma viagem física, mas simbólica, representando a queda espiritual de Fausto e sua entrega ao pecado.

No entanto, apesar de sua grandeza visual e artística, Fausto sofre de uma narrativa que por vezes se arrasta. O filme se estende em alguns momentos, principalmente na transição entre os estágios de corrupção e redenção de Fausto. O ritmo irregular, sobretudo nas cenas românticas entre Fausto e Gretchen, interpretada por Camilla Horn, quebra o fluxo da tensão dramática. Embora essas cenas sirvam para humanizar Fausto e demonstrar sua vulnerabilidade, elas contrastam de forma um tanto dissonante com o tom épico e sombrio que predomina no resto do filme.

A relação entre Fausto e Gretchen também se desenrola de maneira previsível, sem o mesmo vigor emocional que caracteriza o conflito entre Fausto e Mefistófeles. Gretchen é retratada como a vítima pura e inocente, o que embora funcione dentro da moralidade da história, a torna uma personagem mais passiva, o que limita o impacto dramático da sua tragédia. Ainda assim, a performance de Horn é convincente, especialmente nas cenas finais, onde o sofrimento de Gretchen atinge seu ápice.

Outro ponto digno de destaque é a trilha sonora, composta por Werner R. Heymann, que acompanha de maneira sensível as nuances da narrativa visual. Em um filme mudo, a música tem a responsabilidade de intensificar as emoções dos personagens e estabelecer o clima das cenas. Heymann faz isso com maestria, desde os momentos de terror e tentação, até os de melancolia e redenção.

No final, a redenção de Fausto, conquistada pelo amor de Gretchen, traz uma conclusão catártica à história, mas também levanta questões sobre o papel do perdão e da moralidade em um mundo dominado pelo mal. Murnau não entrega respostas fáceis; ao contrário, ele nos força a refletir sobre as fraquezas humanas e o poder da fé e do amor para superar até mesmo as tentações mais sombrias.

Em suma, Fausto é um filme visualmente deslumbrante e tematicamente profundo, que, embora tenha alguns momentos arrastados, continua a ser uma peça fundamental do cinema expressionista alemão. A habilidade de Murnau em criar atmosferas densas e personagens multifacetados, combinada com o uso inovador da tecnologia da época, garante ao filme um lugar de destaque na história do cinema. Mesmo com seus pequenos deslizes narrativos, a obra permanece poderosa e ressonante, um testamento à habilidade de Murnau em transformar uma simples lenda em uma experiência cinematográfica grandiosa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário