Páginas

setembro 02, 2024

As Bestas (2022)

 


Título original: As Bestas
Direção: Rodrigo Sorogoyen
Sinopse: Antoine e Olga, um casal francês, vivem há muito tempo numa pequena aldeia da Galícia. Eles praticam uma agricultura ecologicamente responsável e restauram casas abandonadas para facilitar o repovoamento. Tudo deveria ser idílico, exceto por sua oposição a um projeto de turbina eólica que cria um sério conflito com seus vizinhos. A tensão aumentará a ponto de ser irreparável.


As Bestas (2022), dirigido por Rodrigo Sorogoyan, é um thriller psicológico denso e imersivo que explora as tensões crescentes entre diferentes modos de vida em uma pequena aldeia rural da Galícia, Espanha. Inspirado em eventos reais, o filme revela um choque de culturas e de personalidades, onde o isolacionismo de uma comunidade rural colide com os ideais e ambições de estrangeiros que ali decidem se estabelecer. Em meio a isso, as raízes do preconceito, da desconfiança e da violência são expostas em um enredo que carrega uma crítica social intensa, além de tensionar as relações humanas até o limite.

A história gira em torno de Antoine e Olga, um casal francês que se muda para uma aldeia galega em busca de uma vida tranquila e próxima da natureza, onde possam desenvolver uma pequena fazenda sustentável. No entanto, essa escolha logo revela suas complicações quando eles entram em conflito com os habitantes locais, em particular os irmãos Xan e Lorenzo, vizinhos do casal, que veem os estrangeiros como uma ameaça aos seus interesses. A proposta de uma companhia energética de instalar turbinas eólicas na área, oferecendo uma oportunidade de venda de terras lucrativa para os moradores, exacerba essas tensões, uma vez que Antoine e Olga se recusam a vender suas terras, opondo-se ao progresso que a comunidade deseja.

O filme aborda, com uma sensibilidade impressionante, questões como xenofobia, intolerância, a exploração dos recursos naturais, a ganância e o conflito entre tradições enraizadas e visões de mundo progressistas. A resistência do casal francês ao "progresso" é vista como um ataque direto ao estilo de vida dos moradores, e o filme constrói um sentimento de tensão crescente à medida que pequenas disputas se transformam em hostilidade e, finalmente, em violência.

Rodrigo Sorogoyan demonstra uma habilidade excepcional ao manter a tensão elevada durante todo o filme. Com um ritmo que é ao mesmo tempo paciente e implacável, ele permite que o espectador sinta o peso psicológico que gradualmente toma conta dos personagens. A câmera de Sorogoyan é quase voyeurística, com planos longos e fixos que capturam tanto a vastidão desolada das paisagens rurais quanto os olhares penetrantes e as interações carregadas de rancor entre os personagens.

A construção da atmosfera é um dos pontos altos do filme. O isolamento da aldeia galega, com suas montanhas e campos vastos, é filmado de maneira magistral, contribuindo para um sentimento constante de opressão e claustrofobia. Apesar de ser um local aberto, a sensação de aprisionamento é evidente, tanto fisicamente quanto emocionalmente. Sorogoyan explora esses espaços abertos para amplificar o conflito, como se não houvesse para onde escapar, e a paisagem natural torna-se um personagem por si só, refletindo a dureza e a brutalidade da vida rural.

A fotografia de As Bestas, assinada por Álex de Pablo, merece destaque por sua paleta de cores frias e terrosas, que captura a dureza do ambiente rural e a crescente inospitalidade entre os personagens. A câmera muitas vezes foca nos rostos tensos e nas interações não verbais, o que contribui para a sensação de ameaça latente, enquanto os vastos cenários parecem tanto acolher quanto repelir os protagonistas.

A atuação de Denis Ménochet no papel de Antoine é um dos pontos altos de As Bestas. Seu personagem começa como um homem pacífico, racional e determinado a construir uma vida tranquila, mas à medida que as tensões aumentam, Ménochet revela a transformação gradual de Antoine em alguém profundamente abalado, consumido pela frustração e pelo medo. A intensidade de suas emoções é palpável, e a maneira como ele luta para manter sua dignidade enquanto se depara com a crescente hostilidade da comunidade local é ao mesmo tempo comovente e desesperadora.

Marina Foïs, que interpreta Olga, oferece uma contraparte igualmente poderosa. Sua performance como uma mulher resiliente e pragmática é contida, mas igualmente carregada de emoção. Ao contrário de Antoine, que luta ativamente contra os antagonistas, Olga tenta manter a serenidade, acreditando que a razão e o diálogo eventualmente prevalecerão. No entanto, à medida que a situação se agrava, sua fragilidade também é exposta.

Por outro lado, Luis Zahera e Diego Anido, como os irmãos Xan e Lorenzo, são absolutamente aterrorizantes. Zahera, especialmente, oferece uma performance que encapsula o rancor e a brutalidade daqueles que se sentem ameaçados por forças externas. Seu Xan é um homem consumido pelo ressentimento, e suas interações com Antoine são permeadas por uma tensão que ameaça explodir a cada momento.

O roteiro de As Bestas, coescrito por Sorogoyan e Isabel Peña, é preciso e deliberado. O filme não se apressa em resolver seus conflitos, o que dá ao espectador a oportunidade de se afundar completamente no ambiente e nas dinâmicas entre os personagens. Cada diálogo carrega subtextos profundos, com os habitantes locais falando em um dialeto que reforça ainda mais o sentimento de exclusão dos estrangeiros. Sorogoyan e Peña constroem meticulosamente um retrato de uma comunidade presa entre o desejo de progresso e o medo de mudanças.

Outro elemento interessante do roteiro é como ele lida com a moralidade ambígua de seus personagens. Antoine e Olga, embora sejam retratados como vítimas das circunstâncias, também têm suas falhas. Sua resistência em vender a terra é justificada por motivos ambientais e éticos, mas eles não conseguem enxergar como essa postura afeta a vida dos moradores locais, cujas perspectivas são igualmente válidas dentro do contexto em que vivem. Da mesma forma, os irmãos Xan e Lorenzo, apesar de seus métodos violentos e irracionais, não são apenas vilões simplistas. Eles são o produto de um sistema e de uma forma de vida que está desaparecendo, o que lhes confere uma certa complexidade e tragédia.

A trilha sonora de Olivier Arson desempenha um papel importante na criação da tensão, mas é utilizada de maneira econômica. Os momentos de silêncio são igualmente poderosos, permitindo que o ambiente fale por si. O som da natureza — o vento, os passos, os animais — é amplificado, dando uma sensação de proximidade com os elementos naturais e reforçando o sentimento de isolamento. A ausência de música em momentos críticos intensifica o suspense, deixando o espectador à mercê do que está por vir.

As Bestas é uma obra que explora o conflito entre o progresso e as tradições, entre o pertencimento e o isolamento. Sorogoyan constrói um filme que não só desafia as noções de moralidade, mas também aprofunda a compreensão das complexidades humanas em situações de alta tensão. A tensão psicológica, a cinematografia de tirar o fôlego e as atuações fenomenais fazem deste um filme que prende a atenção do início ao fim. É uma história que, longe de fornecer respostas fáceis, desafia o espectador a refletir sobre os limites da civilidade, da convivência e daquilo que as pessoas estão dispostas a fazer para proteger suas terras, suas identidades e suas vidas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário