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setembro 09, 2024

A Grande Testemunha (1966)

 


Título original: Au Hasard Balthazar
Direção: Robert Bresson
Sinopse: Uma obra de enorme cariz simbólico, onde a concepção humana e espiritual das personagens, virtudes, receios e defeitos, é encompassada pelo olhar e presença de um burro, de seu nome Balthazar, que surge quase como uma figura de matriz religiosa. Não é um burro qualquer. No circo descobrem-lhe qualidades extraordinárias, como uma inteligência rara que lhe permite resolver difíceis operações de multiplicar. Intemporal, pela reflexão que provoca e pela universalidade que evoca.

Robert Bresson, em A Grande Testemunha, concebe uma obra que desafiou expectativas e que, para muitos, tornou-se um marco do cinema espiritual e filosófico. No entanto, ao revisitar essa produção hoje, fica evidente que a experimentação formal e a estética minimalista, características de seu estilo, também acabam tornando a narrativa desgastante e desconectada em pontos cruciais. O filme, aclamado por sua alegoria religiosa e pelo rigor estilístico, apresenta sérios problemas de ritmo e engajamento emocional, que comprometem o impacto que poderia ter tido.

Logo de início, somos introduzidos ao protagonista incomum, Balthazar, um burro, cuja trajetória de sofrimento e abuso ao longo do filme é o eixo central da narrativa. Bresson utiliza o animal como uma metáfora para o sofrimento humano, oferecendo uma visão da vida que parece quase ascética em sua desolação. A escolha de contar a história através de um burro, embora ousada, não consegue sustentar a narrativa com a profundidade emocional necessária para envolver o espectador em um nível visceral. Há um afastamento que, em vez de criar um senso de universalidade, apenas aliena o público.

No aspecto técnico, Bresson opta por sua abordagem característica de performances minimalistas. Aqui, no entanto, essa escolha soa como uma faca de dois gumes. Por um lado, os atores—ou "modelos", como Bresson preferia chamá-los—são dirigidos para evitar expressões emocionais exageradas, algo que teoricamente deveria reforçar a pureza da narrativa. Porém, essa recusa em explorar a profundidade emocional dos personagens humanos acaba por tornar suas histórias banais e pouco convincentes. Marie (Anne Wiazemsky), uma das poucas personagens humanas centrais, é apresentada como uma jovem passiva, cuja vida parece igualmente marcada pelo abuso e pela apatia. A forma como Wiazemsky é dirigida, evitando exibir emoções intensas ou reações significativas, não contribui para a construção de uma figura empática. Pelo contrário, sua performance se aproxima mais de uma representação desanimada, quase robótica, que não estimula qualquer vínculo com o espectador.

A fotografia em preto e branco, assinada por Ghislain Cloquet, é um dos poucos pontos em que o filme apresenta uma excelência incontestável. Cloquet consegue capturar a paisagem rural da França com uma beleza desoladora que combina com a temática da narrativa. As composições simples e austeras reforçam a estética minimalista do filme, e há momentos em que a câmera parece parar no tempo, contemplando o sofrimento silencioso de Balthazar ou a dureza da vida camponesa. No entanto, mesmo essa beleza visual acaba sendo subaproveitada, pois a monotonia narrativa e a repetição de temas pesados—abuso, desespero, e desumanização—tornam a experiência de assistir ao filme mais exaustiva do que contemplativa.

O maior problema de A Grande Testemunha reside na sua tentativa de transmitir uma espiritualidade pura, quase transcendental, enquanto se distancia demais da experiência humana concreta. Bresson, em seu desejo de evitar a manipulação emocional que ele acreditava ser comum no cinema convencional, acaba esvaziando seu filme de qualquer tensão dramática significativa. Isso é particularmente evidente nas interações entre os personagens humanos. A relação de Marie com os homens que a cercam, incluindo o violento Gérard (François Lafarge), é reduzida a uma série de encontros dolorosos, onde a apatia parece dominar tudo. A falta de qualquer resolução emocional ou desenvolvimento psicológico nos personagens impede o espectador de se importar com seus destinos. O que resta é uma visão impiedosa do sofrimento, onde o burro Balthazar parece ser o único ponto de coerência, mas até mesmo ele é tratado mais como um símbolo do que como uma criatura viva.

Bresson também faz uso de música de maneira parcimoniosa, com trechos da obra de Schubert pontuando momentos-chave do filme. A escolha de Schubert sugere uma tentativa de criar um contraponto emocional à frieza visual e performativa. No entanto, a trilha sonora soa deslocada, como se estivesse forçando uma emoção que o filme não conseguiu evocar organicamente. Esse uso esparso de música destaca ainda mais a ausência de dinamismo dramático ao longo da obra.

Um aspecto que não pode ser ignorado é o simbolismo cristão que permeia A Grande Testemunha. A jornada de Balthazar é muitas vezes vista como uma alegoria da paixão de Cristo, com o burro representando uma figura de pureza e sacrifício, sofrendo sem nunca retaliar. Embora essa leitura seja válida, o filme não consegue balancear esse simbolismo com a narrativa, de modo que, em vez de ser um complemento, acaba sendo uma camada forçada sobre uma história que já se esforça para se sustentar. A alegoria é entregue de maneira tão crua e direta que perde sutileza, tornando-se quase um sermão em vez de uma reflexão genuína sobre a condição humana.

Por fim, ao considerar o legado de A Grande Testemunha, é inegável que o filme teve um impacto profundo em muitos cineastas e críticos. Sua abordagem ascética e a recusa em seguir convenções narrativas o tornaram um ponto de referência para o cinema de arte europeu. No entanto, sua capacidade de se conectar com o público contemporâneo é limitada. Para muitos, o filme pode parecer uma curiosidade intelectual mais do que uma experiência emocionalmente ressonante. A insistência de Bresson em evitar as "armadilhas" emocionais do cinema acaba por criar uma obra fria e distanciada, onde a carga simbólica sufoca qualquer possibilidade de conexão real com a história ou com os personagens.

Em última análise, A Grande Testemunha se sustenta como um experimento interessante, mas profundamente falho. Seu valor estético é inegável, assim como a ambição artística de Bresson. No entanto, a experiência de assistir ao filme é árdua e, por vezes, frustrante. O burro, que deveria ser o centro de uma metáfora universal, acaba sendo uma figura quase inerte, e a falta de desenvolvimento emocional dos personagens humanos transforma o filme em um exercício de paciência mais do que em uma jornada espiritual.

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