Páginas

setembro 30, 2024

The Staggering Girl (2019)

 


Título original: The Staggering Girl
Direção: Luca Guadagnino
Sinopse: Influenciada pela confissão secreta de um estranho, Francesca volta para a casa de sua infância na Itália para convencer sua mãe doente a ir com ela para Nova York. À medida que a filha confronta a mãe, fantasmas da juventude de Francesca retornam em um turbilhão de dor, lembranças e satisfação.


The Staggering Girl é um exercício visual que tenta se articular entre o cinema e a moda, trazendo consigo o toque estético já característico de Luca Guadagnino. Produzido em parceria com a grife Valentino, o filme é uma imersão estilística, mas que, lamentavelmente, não encontra uma estrutura narrativa ou emocional consistente para sustentar essa ambição visual. Com apenas 37 minutos de duração, Guadagnino desenrola uma sequência fragmentada de memórias e visões desconexas, onde a forma supera o conteúdo, fazendo com que a obra se perca na própria superfície.

O roteiro, assinado por Michael Mitnick, é uma colagem de cenas que tentam construir uma narrativa sobre Francesca Moretti (Julianne Moore), uma escritora ítalo-americana que retorna à casa de sua mãe em Roma. No entanto, o que poderia ser uma jornada de autodescoberta e resolução de traumas parece estar aprisionado por diálogos pouco reveladores e uma superficialidade que não se justifica. As interações entre Francesca e os personagens coadjuvantes, vividos por atores como Marthe Keller, Mia Goth e Kyle MacLachlan, são distantes e pouco envolventes, criando uma sensação de vazio que dificilmente evoca empatia ou compreensão.

O visual é, sem dúvidas, o elemento mais trabalhado do curta, e o trabalho de direção de fotografia de Sayombhu Mukdeeprom é quase impecável. A paleta de cores e o uso de iluminação conferem a The Staggering Girl uma qualidade quase onírica, com cenas que parecem saídas diretamente de uma revista de alta moda. No entanto, essa beleza se torna rapidamente artificial, como uma vitrine que tenta compensar a falta de profundidade emocional com artifícios visuais. É inegável que Guadagnino tem talento para construir imagens belas e cuidadosamente compostas, mas essas qualidades, isoladas, não são suficientes para preencher o vazio narrativo que permeia o filme.

Um dos aspectos que mais pesa negativamente é a falta de desenvolvimento da protagonista. Francesca é, na melhor das hipóteses, uma figura opaca; suas memórias e sentimentos são abordados de forma tão enigmática e minimalista que o espectador é mantido a uma distância considerável de qualquer conexão emocional. A escolha de fragmentar a narrativa em uma sequência de vinhetas também prejudica a linearidade e dificulta a identificação com o enredo. O filme se esforça para capturar uma essência introspectiva e poética, mas acaba soando mais como um projeto de moda, com diálogos ocasionalmente confusos e sem uma direção clara.

A trilha sonora, composta pelo veterano Ryuichi Sakamoto, oferece um contraste interessante e, em alguns momentos, adiciona um toque de melancolia que poderia funcionar em um contexto mais bem definido. No entanto, mesmo a música parece mal empregada, quase sufocada pela falta de substância que permeia o filme. A impressão que fica é que a trilha sonora tenta evocar um drama mais denso do que aquilo que realmente é apresentado.

Em suma, The Staggering Girl é um trabalho bonito, mas esvaziado de propósito. A obra se assemelha a uma campanha publicitária de alto orçamento, onde o foco está no estilo, mas a essência do que se pretende comunicar fica perdida. A ausência de um enredo que realmente envolva e a utilização de personagens como peças estéticas, em vez de figuras humanas, fazem do filme um exercício frustrante. Guadagnino, ao tentar construir algo que se assemelhe a uma pintura em movimento, acaba criando uma obra que é facilmente admirável, mas não significativa. A tentativa de conciliar moda e cinema poderia resultar em algo inovador, mas The Staggering Girl prova que a estética, quando desprovida de alma, torna-se uma casca vazia.

Tempo (2021)

 


Título original: Old
Direção: M. Night Shyamalan
Sinopse: Tempo acompanha uma família durante uma viagem para uma ilha tropical. Quando chegam em uma praia deserta, algo estranho começa a acontecer: todos passam a envelhecer rapidamente, anos inteiros passam em questão de minutos. Eles, então, precisam descobrir o que está acontecendo antes que suas vidas sejam encurtadas drasticamente.


O filme Tempo (Old, 2021), de M. Night Shyamalan, mergulha em um cenário exótico e angustiante, partindo de uma premissa que parece intrigante: um grupo de turistas descobre estar preso em uma praia onde o tempo passa de forma extremamente acelerada, fazendo com que todos envelheçam de maneira alarmante. A base do enredo é uma adaptação da graphic novel Sandcastle, de Pierre Oscar Lévy e Frederik Peeters, o que já estabelece uma expectativa por um suspense de alta tensão. Entretanto, Shyamalan entrega um thriller visualmente chamativo, mas que parece esvaziar-se em sua profundidade e execução.

Tecnicamente, o filme é uma mistura de acertos e tropeços, começando pela cinematografia de Mike Gioulakis, que traz um certo brilho à experiência visual. As imagens da praia são saturadas e parecem quase pictóricas, uma decisão que reforça a beleza do cenário contrastada com o terror da situação. Porém, enquanto Gioulakis compõe belas cenas que exploram a desorientação e o caos dos personagens, a montagem de Brett M. Reed e os enquadramentos de Shyamalan revelam uma inconsistência que prejudica o ritmo. Em vez de criar suspense, a escolha por ângulos desajeitados e rápidos cortes acentua a artificialidade do cenário e do envelhecimento dos personagens, quebrando a imersão que o diretor tenta estabelecer.

No quesito narrativo, Shyamalan começa o filme com o pé direito, introduzindo as tensões familiares dos personagens principais. Este primeiro ato sugere que a experiência será uma análise psicológica do envelhecimento e de seus efeitos nas relações humanas. Contudo, o diretor rapidamente mergulha no território das explicações exageradas e diálogos forçados, uma tendência comum em sua filmografia. As interações entre os personagens soam mecânicas e pouco convincentes, o que dificulta a criação de uma conexão genuína com suas crises. Esse distanciamento emocional é agravado por atuações que oscilam entre a tensão e o melodrama, uma falha que parece derivar da direção inconsistente de Shyamalan.

O elenco, embora promissor, parece limitado por uma caracterização superficial. Vicky Krieps e Gael García Bernal, intérpretes do casal protagonista, tentam trazer humanidade aos seus papéis, mas esbarram em uma trama que não lhes dá espaço para explorar plenamente as complexidades de seus personagens. Mesmo assim, há um esforço visível para equilibrar o medo com a aceitação da situação bizarra em que se encontram, ainda que, no final, o filme falhe em desenvolver arcos de personagens que realmente impactem o público. O envelhecimento físico, um dos principais elementos visuais da história, é retratado com maquiagem e efeitos práticos que variam de impressionantes a incrivelmente inverossímeis, contribuindo para a sensação de que Shyamalan desperdiça uma premissa que poderia ter explorado melhor o terror psicológico.

Do ponto de vista temático, Tempo tenta abordar tópicos densos, como mortalidade e arrependimento, mas acaba caindo em clichês e abordagens simplistas. Shyamalan insere questões existenciais de maneira superficial, quase como adereços narrativos, o que enfraquece o impacto das cenas finais. O resultado é uma experiência que, embora pretenda ser reflexiva, se sente mais como um exercício vazio de estilo. Ao longo do filme, o diretor lança perguntas filosóficas e provocações que são deixadas sem resposta, não por opção artística, mas por uma falta de coesão entre o que se pretende explorar e o que de fato é mostrado. Há uma sensação constante de que Tempo tenta dizer muito, mas se perde em sua própria ambição.

O terceiro ato, que deveria ser o clímax de tensão e mistério, acaba caindo em uma série de explicações que soam tanto desnecessárias quanto insatisfatórias. A revelação final de Shyamalan é apresentada de forma apressada, quase como uma nota de rodapé, o que enfraquece ainda mais o impacto da narrativa. É como se o diretor estivesse mais preocupado em entregar uma “reviravolta” típica de seu estilo do que em construir uma conclusão verdadeiramente impactante. Essa necessidade de amarrar cada ponto do enredo cria uma experiência de suspense que não convida à reflexão, mas apenas ao alívio de que tudo tenha acabado.

Em resumo, Tempo apresenta uma premissa instigante e uma ambientação que poderia facilmente sustentar uma obra memorável. No entanto, a execução tropeça em diálogos mal elaborados, atuações inconsistentes e um roteiro que tenta forçar profundidade onde não há substância. Shyamalan é um diretor conhecido por dividir opiniões, e este filme é um exemplo perfeito de sua tendência a superestimar o impacto de seus próprios truques narrativos. A obra nos deixa com uma sensação de frustração, como uma oportunidade perdida de explorar o terror psicológico do envelhecimento e da mortalidade humana, em vez de apenas criar mais um suspense simplista em um cenário exótico.

setembro 29, 2024

Inocente Pecadora (1920)

 


Título original: Way Down East
Direção: D. W. Griffith
Sinopse: Anna (Lillian Gish) é uma menina do campo pobre e ingênua, que é iludida e acaba por entrar em um falso casamento com Lennox (Lowell Sherman), um homem rico e mulherengo. Ela fica grávida e ele a abandona, mas o bebê morre. Depois, ela arranja emprego e acolhimento em uma fazenda. O filho do dono se apaixona por ela, mas as lembranças do seu último relacionamento farão com que um novo envolvimento amoroso seja difícil.


Inocente Pecadora (Way Down East, 1920), de D. W. Griffith, é uma obra que se equilibra entre a tradicional estética melodramática e o primor técnico que Griffith soube orquestrar na tela. Explorando temas de hipocrisia social, feminilidade e a implacável luta moral de uma jovem em busca de redenção, o filme adapta a peça teatral homônima de Lottie Blair Parker, convertendo-a em um espetáculo cinematográfico. Com quase duas horas e meia, Griffith preenche o tempo com drama, romance e, como é típico de suas obras, uma dose significativa de tensão.

A trama segue a trajetória de Anna Moore (Lillian Gish), uma jovem inocente e de origens humildes, que se vê atraída por um aristocrata astuto e despreocupado, Lennox Sanderson (Lowell Sherman). Sanderson, simbolizando a elite decadente e egoísta, usa sua posição para seduzir Anna, casando-se com ela em uma cerimônia falsa para conquistar sua confiança e, posteriormente, abandoná-la quando ela engravida. Esta premissa — uma mulher arruinada por confiar nos valores da sociedade que a julga — oferece o terreno perfeito para o tratamento moralista de Griffith, que, ao mesmo tempo, tece uma crítica à hipocrisia da época. Essa crítica é reforçada ao longo da narrativa pela interpretação visceral de Lillian Gish, que carrega o filme com uma expressividade comovente e absolutamente sincera.

Gish se destaca em sua atuação, sendo uma das interpretações mais marcantes e aclamadas de sua carreira. Sua habilidade de evocar o desespero silencioso de Anna, utilizando pequenos gestos e uma linguagem corporal que transita entre o retraimento e a fragilidade, é absolutamente crucial para o impacto emocional do filme. Suas expressões de dor, especialmente em cenas de close-up, ressoam como um grito sufocado, explorando com força o potencial do cinema mudo. A atuação de Gish atinge seu auge na famosa sequência do gelo, na qual, em meio a condições reais e perigosas, sua personagem é filmada à deriva em blocos de gelo, rumo a uma catarata. O efeito de realismo é esmagador, e a tensão se torna palpável — Griffith aqui abraça um experimentalismo de locação raramente visto na época, algo que torna essa sequência uma das mais icônicas do cinema mudo.

Essa famosa cena do gelo não é apenas um teste à coragem de Gish como atriz, mas também uma demonstração da visão técnica de Griffith. A cinematografia de Way Down East, assinada por G. W. Bitzer, aproveita os cenários naturais para acentuar a luta interna e externa de Anna. Bitzer, colaborador constante de Griffith, constrói com maestria os contrastes visuais entre a segurança e a ameaça, a calma e o caos, utilizando a natureza para refletir o estado emocional da protagonista. Este uso simbólico da paisagem e dos elementos naturais em prol da narrativa, com montagens entre cortes amplos e close-ups, marca uma construção visual sólida que se destaca em um cinema que ainda experimentava com as possibilidades expressivas da câmera.

A montagem de Way Down East, ao mesmo tempo que se beneficia da maestria de Griffith na construção do ritmo dramático, apresenta ocasionalmente um problema de ritmo, algo que é acentuado pela duração extensa. Em certos momentos, o filme parece insistir em cenas de diálogos e monólogos silenciosos que poderiam ser mais curtas, sobretudo no que diz respeito ao desenvolvimento inicial do romance entre Anna e Lennox. Esses momentos, enquanto atuam para estabelecer a ingenuidade de Anna e o caráter dúbio de Lennox, acabam também por desacelerar o desenvolvimento da trama. No entanto, Griffith compensa essa dilatação com sequências impactantes e decisivas, mostrando sua habilidade em manter o público investido nas tribulações de sua protagonista.

Outro aspecto interessante de Inocente Pecadora é seu papel social. O filme faz uma crítica implícita à moralidade vitoriana, questionando o papel da mulher na sociedade e a opressão que a cerca. Ao retratar Anna como uma personagem vítima das convenções, Griffith escancara as injustiças enfrentadas por mulheres de seu tempo, uma escolha narrativa que desafia as normas culturais de 1920. No entanto, paradoxalmente, o filme também reforça alguns valores conservadores, como a revalorização da pureza feminina e a punição quase imediata da falta moral. Essa ambivalência reflete a própria sociedade americana da época, que ainda caminhava lentamente para uma mudança de paradigmas em relação ao papel da mulher.

O som, ou melhor, a ausência dele, é compensado por uma trilha musical composta para acompanhar as exibições do filme. Na época, as apresentações contavam com músicos ao vivo que variavam a trilha sonora de acordo com o tom das cenas. As partituras criadas para Way Down East usavam a música como um veículo para enfatizar o pathos da narrativa, principalmente nas cenas mais dramáticas e nos momentos de perigo. A música, assim, se torna um personagem coadjuvante, amplificando o impacto emocional que Griffith desejava imprimir no público.

Inocente Pecadora não é apenas um dos filmes mais emblemáticos de Griffith; é também um reflexo do cinema mudo em sua fase de ouro, quando as limitações técnicas forçavam os cineastas a experimentar. Enquanto alguns elementos podem parecer datados para o espectador contemporâneo, a ousadia de Griffith ao filmar sob condições extremas e a atuação notável de Gish garantem ao filme uma relevância duradoura. Em última análise, Way Down East se afirma como uma peça essencial para entender o cinema da era silenciosa, e, mesmo que a duração ou a narrativa possam se arrastar para alguns, é inegável o poder emocional que Griffith e Gish conseguem transmitir em uma história que, até hoje, permanece como um dos grandes melodramas do cinema mudo.

setembro 28, 2024

Teatro de Guerra (2018)

 


Título original: Teatro de Guerra
Direção: Lola Arias
Sinopse: Documentário inovador que revela as histórias pessoais de ex-soldados britânicos e argentinos, cujas vidas foram profundamente afetadas pela guerra das Malvinas.


Teatro de Guerra (2018), dirigido pela argentina Lola Arias, traz consigo a premissa instigante de reunir veteranos argentinos e britânicos que combateram na Guerra das Malvinas, 35 anos após o conflito, e os coloca frente a frente para recontar suas experiências e angústias. A ideia é confrontar memórias e emoções de soldados de lados opostos, o que, na teoria, poderia render uma análise rica e sensível sobre os traumas da guerra e o fardo de quem sobreviveu. Na prática, no entanto, a execução do projeto revela-se falha e superficial, beirando o ridículo em certos momentos.

A começar pelo estilo documental de Arias, que ousa em um formato híbrido entre ficção e documentário, mas que falha em capturar qualquer tipo de naturalidade nas reações dos participantes. Os veteranos, homens carregando cicatrizes físicas e emocionais, parecem deslocados, desconfortáveis com o papel que o filme tenta impor a eles, quase como atores amadores forçados a recriar um momento que preferiam esquecer. Essa “inovação” estilística, que seria um dos pontos fortes do filme, apenas contribui para tornar a experiência constrangedora para quem assiste e visivelmente embaraçosa para os próprios veteranos.

A cena em que os soldados, de nacionalidades opostas, reencenam batalhas e revivem momentos de horror na tela, com falas forçadas e pouco críveis, demonstra o quanto o filme falha em sua tentativa de humanizar essas histórias. Ao fazer com que esses homens atuem as próprias memórias, Teatro de Guerra parece banalizar as dores que deseja explorar, subjugando sentimentos genuínos ao espetáculo vazio. O desconforto dos participantes é perceptível e, em vez de empatia, o espectador é levado a questionar a ética da abordagem de Arias, que parece forçar seus personagens a encenarem o pior momento de suas vidas para uma câmera fria e distante.

A montagem, feita com uma interposição confusa de entrevistas e encenações, torna a narrativa cansativa e dispersa. Não há uma construção coesa que leve a uma reflexão real, e o filme perde-se em suas próprias pretensões de vanguarda, falhando em entregar a conexão emocional que prometia. O documentário tenta se sustentar como um experimento psicológico e emocional, mas ao transformar dor real em entretenimento superficial, torna-se insuportável de assistir, e o espectador é desestimulado a continuar até o final.

Em termos técnicos, Teatro de Guerra não oferece nenhum aspecto visual ou sonoro memorável. A câmera parece não ter uma linha de condução clara e se apoia em longas tomadas que tentam desesperadamente captar um realismo bruto. Em vez disso, esse estilo desajeitado e excessivamente cronometrado só contribui para intensificar a falta de verossimilhança. Cada cena parece uma tentativa frustrada de levar o espectador ao mundo interno dos soldados, mas o resultado é apenas desconforto e tédio. A trilha sonora é esparsa, o que, embora costume ser uma boa escolha em documentários, neste caso, só evidencia a ausência de atmosfera e direção.

A crítica central a Teatro de Guerra é sua falta de sutileza e empatia, que o transforma em um projeto que, de maneira desastrosa, falha em sua proposta. Ao final, o filme é um exercício de resistência para quem assiste, mais pelo desconforto alheio e pela superficialidade do que por qualquer emoção real. A única coisa que se salva — e é o mínimo — é a tentativa, fracassada, de colocar soldados em um diálogo, mas o formato ridículo e forçado torna impossível qualquer conexão verdadeira.

A Metade de Nós (2023)


Título original: A Metade de Nós
Direção: Flavio Botelho
Sinopse: Francisca e Carlos lutam para se adaptar à nova realidade após o suicídio do único filho.


A Metade de Nós (2023), dirigido por Flavio Botelho, é um notável filme brasileiro que mergulha profundamente nos temas do luto e da perda, abordando-os com uma sensibilidade quase palpável. Centrado na história do casal Francisca (Denise Weinberg) e Carlos (Cacá Amaral), que tenta seguir em frente após o suicídio do filho, o filme explora os efeitos devastadores de uma ausência permanente. Essa narrativa não se limita a ser uma exposição sobre o suicídio, mas sim um estudo intenso sobre o vazio deixado na vida dos que ficam. A obra é um excelente exemplo do cinema intimista brasileiro, que se destaca pelo retrato honesto e sem adornos do cotidiano, trazendo à tona as nuances emocionais e psicológicas de seus personagens sem se perder em idealizações ou exageros estéticos​.

No filme, a dinâmica entre os protagonistas é um dos aspectos mais fascinantes e sensíveis da história. Denise Weinberg, no papel de Francisca, compõe uma personagem envolta em dor e inconformidade, refletindo um sofrimento interno que se recusa a cicatrizar. A atriz transmite essa revolta com uma precisão angustiante, evidenciando a ferida aberta da perda e a busca incessante por explicações. Carlos, interpretado por Cacá Amaral, contrasta com a personagem de Francisca ao buscar refúgio nas memórias do filho. Ele se muda para o antigo apartamento de Felipe, tentando reconstruir as pontas soltas do passado, numa tentativa tanto de se reconciliar com a dor quanto de preservar a lembrança do filho em seu cotidiano. A complementaridade dessas interpretações oferece uma visão singular sobre a dor, o luto e a forma como cada indivíduo encontra diferentes meios para processar a ausência de um ente querido​.

Outro ponto que merece destaque é a direção de arte e a fotografia, que capturam a atmosfera melancólica e árida da São Paulo urbana. O cenário não serve apenas como pano de fundo, mas como um componente essencial da narrativa, refletindo a dureza da experiência de luto do casal. A câmera segue de perto os personagens, quase como se fizesse parte da rotina deles, e o resultado é um retrato realista da vida em uma metrópole que, mesmo repleta de gente, consegue exalar um sentimento de isolamento e vazio que ressoa com o estado emocional dos protagonistas. Essa ambientação, assinada por Leo Resende Ferreira, contribui para que o espectador sinta o peso e a intensidade dos acontecimentos, sem que precise recorrer a exageros visuais para intensificar as emoções da história​.

O roteiro, escrito por Botelho e Bruno H. Castro, carrega uma carga emocional intensa e permite que a narrativa se desenvolva sem pressa, refletindo a complexidade dos sentimentos humanos que surgem em momentos de dor. Esse ritmo pausado é uma escolha deliberada e essencial, permitindo que o espectador vivencie a mesma angústia e exaustão emocional dos personagens. A história não segue uma trajetória de fácil resolução; em vez disso, evidencia a realidade do luto, que é feita de etapas incompletas e caminhos confusos. A narrativa se desenrola como um mosaico de memórias, medos e incertezas, oferecendo um retrato sensível e verdadeiro sobre a jornada de duas pessoas em busca de sentido em meio a uma situação aparentemente insuportável​.

Ao escolher abordar a história a partir do ponto de vista de um casal mais velho, Botelho traz uma profundidade ainda maior à trama, explorando como o luto e a dor se manifestam em diferentes fases da vida. A escolha de colocar um casal idoso no centro da narrativa destaca a complexidade da perda de um filho e como esse evento desafia a ordem natural das coisas, intensificando a dor e o desespero. A falta de respostas definitivas e o desconforto constante da narrativa não são meras escolhas estilísticas, mas sim um reflexo da realidade de quem vive o luto, fazendo com que o público compreenda que não existe uma forma correta de lidar com a dor​.

Por fim, A Metade de Nós desafia o espectador a encarar a experiência do luto sem julgamentos ou tentativas de conforto superficial. O filme é brutalmente honesto em sua abordagem, deixando claro que o luto não é uma jornada linear, mas sim uma sequência de tentativas e erros, de momentos de dor e de breves instantes de aceitação. Flavio Botelho cria uma obra que, embora pesada, é profundamente humana e libertadora, oferecendo um retrato realista e tocante de uma experiência que, em última análise, todos compartilhamos. É um filme que reafirma o poder do cinema brasileiro de explorar temas universais com uma sensibilidade e autenticidade incomparáveis, fazendo do luto uma jornada tão devastadora quanto, paradoxalmente, acolhedora​.

setembro 27, 2024

O Gabinete do Dr. Caligari (1920)

 


Título original: Das Cabinet des Dr. Caligari
Direção: Robert Wiene
Sinopse: Num pequeno vilarejo da fronteira holandesa, o misterioso hipnotizador Dr. Caligari (Krauss) chega acompanhado do sonâmbulo Cesare (Veidit), que estaria supostamente adormecido por 23 anos. À noite, Cesare perambula pela cidade concretizando as previsões funestas do seu mestre, o Dr. Caligari.


A imersão no cinema expressionista alemão atinge seu ápice em O Gabinete do Dr. Caligari (1920), dirigido por Robert Wiene. Esse filme não apenas moldou o horror psicológico e visual das telas, mas também estabeleceu novos parâmetros de experimentação estética, rompendo com as convenções cinematográficas de seu tempo. A obra transcende a simples narrativa de suspense e apresenta uma complexidade estética que ecoa nas mentes dos espectadores muito depois de o último frame desaparecer.

Do ponto de vista técnico, o filme é revolucionário. As cenografias são grotescas e distorcidas, com cenários desenhados à mão que deliberadamente se afastam do realismo. O design dos cenários e as angulações das câmeras colaboram para criar um ambiente de instabilidade e desorientação, refletindo a mente perturbada do narrador. O uso de sombras e formas geométricas distorcidas realça o desequilíbrio emocional que permeia o filme, tanto no visual quanto no enredo. As janelas tortuosas, as ruas inclinadas e os edifícios que desafiam a gravidade são uma metáfora para a realidade fragmentada, e, acima de tudo, simbolizam a loucura e o caos interno dos personagens.

A história acompanha Francis (Friedrich Fehér), que narra os eventos que cercam o misterioso Dr. Caligari (Werner Krauss) e seu sonâmbulo Cesare (Conrad Veidt). À primeira vista, o enredo pode parecer uma simples história de mistério e terror, mas Wiene e os roteiristas Carl Mayer e Hans Janowitz tecem camadas de subtexto político e social que revelam um desconforto profundo com a autoridade e o controle sobre a mente humana. Nesse sentido, o Dr. Caligari torna-se um símbolo de poder corrupto, e sua capacidade de manipular Cesare representa uma crítica aos regimes opressivos, especialmente em um período de instabilidade política na Alemanha do pós-Primeira Guerra Mundial.

O expressionismo, aqui, não se limita ao design de produção. As atuações, especialmente a de Werner Krauss, são exageradas de maneira deliberada. Sua performance cria uma figura ameaçadora e inquietante, cujos gestos grandiosos e olhar penetrante fazem de Caligari uma figura autoritária que transcende o plano físico, quase um espectro da paranoia que assola a sociedade. Conrad Veidt, por sua vez, como o sonâmbulo Cesare, oferece uma interpretação icônica. Sua presença imóvel, quase autômata, projeta uma sensação de terror visceral e passividade frente ao poder, um espelho da alienação humana diante da opressão.

No aspecto visual, a fotografia de Willy Hameister é fundamental para a criação da atmosfera perturbadora. A escolha do preto e branco intensifica o contraste entre luz e escuridão, quase como uma luta entre razão e loucura. O filme é uma peça de arte viva, em que cada quadro parece uma pintura expressionista saída diretamente de um pesadelo. As sombras são usadas não apenas para criar suspense, mas para sugerir a dualidade moral e psicológica dos personagens. Esse jogo de luz e sombra reflete a ambiguidade presente no próprio enredo, culminando na famosa reviravolta final que questiona a sanidade do narrador e, por extensão, do espectador.

A montagem de Wiene contribui para esse clima surreal, com cortes que aumentam o sentido de desconexão com a realidade. Não há um fluxo linear de eventos, e as transições abruptas entre cenas exacerbam a sensação de que estamos entrando em um mundo dos sonhos – ou dos pesadelos. As ações parecem ocorrer em um tempo e espaço distorcidos, reforçando a ideia de que a percepção de tempo no filme é mais um reflexo do estado mental dos personagens do que da realidade objetiva.

Outro aspecto fascinante de O Gabinete do Dr. Caligari é a sua capacidade de influenciar o cinema posterior. A obra é frequentemente citada como precursora do cinema noir, do horror psicológico e até mesmo do expressionismo visual que cineastas como Tim Burton e Guillermo del Toro viriam a explorar décadas depois. Contudo, sua relevância vai além da técnica. O filme aborda questões de controle social e da manipulação da mente humana de forma atemporal, temas que continuam a ressoar na era moderna.

Se há algo a criticar em O Gabinete do Dr. Caligari, talvez seja a forma como a narrativa se desenrola em um ritmo que, por vezes, pode parecer lento aos padrões contemporâneos. No entanto, isso é uma característica inerente ao cinema expressionista, que privilegia a atmosfera e a psicologia em detrimento da velocidade da ação. Esse “lento construir” serve ao propósito de aprofundar a sensação de claustrofobia e paranoia que permeia o filme. Ainda assim, essa abordagem pode ser desafiadora para espectadores acostumados a uma narrativa mais ágil.

Ao final, o impacto de O Gabinete do Dr. Caligari se encontra tanto na sua estética ousada quanto nas suas implicações filosóficas. Robert Wiene criou um filme que não apenas definiu o expressionismo alemão no cinema, mas também serviu como um espelho da angústia social e política da Alemanha do início do século XX. A obra continua a ser uma pedra angular do cinema de terror e, ao mesmo tempo, uma meditação sobre a fragilidade da mente humana. É um clássico indiscutível, que resiste ao teste do tempo com uma inquietante beleza.

setembro 26, 2024

Paraíso: Esperança (2013)

 


Título original: Paradies: Hoffnung
Direção: Ulrich Seidl
Sinopse: Com sua mãe no Quênia, Melanie, de 13 anos, passa suas férias de verão em um rigoroso acampamento de dieta no interior da Áustria. Entre exercícios físicos e aulas de nutrição, brigas de travesseiro e os primeiros cigarros, ela se apaixona por um médico 40 anos mais velho.


Paraíso: Esperança (Paradies: Hoffnung, 2013) é o terceiro filme da trilogia de Ulrich Seidl, e apesar de seu título sugerir uma possível redenção ou otimismo, o que encontramos é mais um mergulho no abismo da condição humana, como nos dois filmes anteriores. A obra acompanha a história de Melanie, uma adolescente enviada para um acampamento de emagrecimento, e explora as nuances do desejo, da solidão e das interações humanas em um ambiente de controle físico e emocional.

Ulrich Seidl mantém sua assinatura visual inconfundível, com uma abordagem que lembra a frieza de documentários. Seu estilo minimalista, com longos planos estáticos e uma câmera quase impassível, enfatiza a alienação dos personagens. O uso da câmera em Paraíso: Esperança parece buscar uma objetividade desconcertante, como se Seidl estivesse mais interessado em examinar seus personagens como espécimes do que como seres humanos plenos de complexidade emocional. Essa técnica, embora potente em filmes anteriores, aqui falha em capturar um desenvolvimento narrativo satisfatório, resultando em uma experiência que parece crua, mas, ao mesmo tempo, monótona.

Seidl explora temas profundamente desconfortáveis, como a exploração do desejo em uma relação de poder, no caso, entre Melanie e o médico responsável pelo acampamento. O filme propõe uma crítica velada à forma como os corpos são policiados e a maneira como a sociedade constrói expectativas em torno da juventude e da beleza. Contudo, a ausência de uma profundidade maior no desenvolvimento desses temas torna o filme frustrante. O relacionamento entre Melanie e o médico, que poderia oferecer uma rica análise sobre vulnerabilidade e poder, acaba sendo tratado de maneira superficial e previsível. Ao invés de nos conduzir por uma investigação psicológica mais profunda, Seidl se atém a cenas que parecem desconectadas, quase aleatórias, o que dilui o impacto emocional da história.

Em termos técnicos, o design de som é igualmente minimalista, com uma trilha sonora praticamente ausente. Essa escolha parece ter o intuito de intensificar o sentimento de desolação, mas acaba contribuindo para um clima apático. Sem a presença de qualquer envolvimento emocional criado pela música, o filme depende exclusivamente dos diálogos e das atuações para gerar conexão. No entanto, as interações entre os personagens são marcadas por uma falta de empatia e calor, o que cria uma barreira entre o espectador e o drama central.

As atuações, especialmente a de Melanie Lenz no papel principal, são competentes, mas limitadas pelas próprias restrições da narrativa. Lenz retrata uma adolescente fragilizada, presa em um corpo que sente não pertencer à normatividade ditada pelo mundo ao seu redor, mas o roteiro pouco faz para desenvolver sua complexidade interna. A personagem se move em um ciclo de repetição, interagindo com outros adolescentes no acampamento, mas essas interações não fornecem a profundidade necessária para compreendermos suas angústias. O médico, interpretado por Joseph Lorenz, não é muito mais desenvolvido. Ele surge como um arquétipo previsível, preso entre a moralidade e seus próprios desejos, sem que Seidl se aventure a explorar mais a fundo suas motivações ou arrependimentos.

Se compararmos Paraíso: Esperança aos filmes anteriores da trilogia, Paraíso: Amor e Paraíso: Fé, podemos perceber uma queda considerável no impacto narrativo e emocional. Enquanto os primeiros filmes ofereciam uma crítica feroz aos sistemas de poder e à hipocrisia social, este terceiro filme parece simplesmente estagnar, sem a mesma ousadia provocadora. A falta de um arco dramático mais claro e a insistência de Seidl em uma abordagem estética rigorosamente distanciada tornam a experiência cansativa, mesmo com a curta duração do filme.

Há uma ausência de propósito no que concerne à direção de arte, que, embora tenha sido propositalmente esvaziada para refletir o ambiente estéril do acampamento, não consegue criar um contraste interessante com o tema central do filme. A monotonia dos cenários, a paleta de cores lavada e a estética quase clínica apenas contribuem para o sentimento de apatia que permeia toda a narrativa. Enquanto isso, os temas de crescimento, esperança e mudança que poderiam ser explorados em um ambiente onde os personagens estão em uma fase tão delicada de suas vidas são abandonados em prol de uma análise distante e desapaixonada das suas rotinas diárias.

A trilogia Paraíso foi amplamente elogiada por sua ousadia temática e sua abordagem implacável em dissecar as fragilidades e perversidades humanas, mas em Paraíso: Esperança, essa ousadia se transforma em tédio. O filme parece estar satisfeito em ser apenas uma observação estática, recusando-se a mergulhar nas águas mais turvas do desenvolvimento de seus personagens. Faltam momentos de verdadeira introspecção ou impacto emocional. O resultado é uma obra que, ao invés de provocar, acaba por ser indiferente.

A crítica de Seidl ao controle social sobre os corpos e desejos, que poderia ser poderosa, é prejudicada pela falta de uma narrativa envolvente. Ao final, Paraíso: Esperança parece mais uma oportunidade perdida de abordar questões profundas sobre adolescência, autoimagem e vulnerabilidade. Para um diretor tão capaz de chocar e desconstruir convenções, este filme se apresenta como uma entrada morna em sua filmografia, que, apesar de técnica e esteticamente precisa, carece de alma.

setembro 25, 2024

Ferrari (2023)

 


Título original: Ferrari
Direção: Michael Mann
Sinopse: O ex-piloto de corrida, Enzo Ferrari está em crise. A falência assombra a empresa que ele e sua mulher, Laura, construíram do nada 10 anos atrás. O casamento tempestuoso dos dois sofre com o luto pela morte de um filho e a dificuldade de reconhecer outro. Ele decide contrapor essas perdas apostando tudo em uma corrida - a icônica Mille Miglia, na Itália.


Ferrari (2023), dirigido por Michael Mann, é o tipo de filme que te faz questionar como algo tão entediante pode ser feito a partir de uma figura histórica tão polêmica quanto Enzo Ferrari. O filme tenta capturar a complexidade do homem por trás da marca de carros icônica, mas o que vemos é uma narrativa sem alma, onde até mesmo o enredo parece circular sem propósito – assim como as corridas de carros que ele promoveu. Não importa o quanto a história tente humanizar Ferrari ou explorar os dramas pessoais, tudo é extremamente vazio e desprovido de emoção.

Enzo Ferrari, interpretado por Adam Driver, aparece como uma figura insensível e fria. A atuação de Driver é nada menos que caricata, com sua tentativa de incorporar o sotaque italiano soando mais como um retorno de sua performance em Casa Gucci. É difícil entender como alguém poderia se sentir atraído por um personagem tão apático, que não parece importar-se com nada além de seus carros, nem mesmo com as mortes trágicas ocorrendo ao seu redor. A incapacidade de o filme mergulhar na verdadeira complexidade emocional do personagem faz com que a história se arraste ainda mais.

E que história arrastada! A sensação de monotonia permeia cada cena. O filme tenta nos vender o drama da vida pessoal de Ferrari, seu casamento em colapso com Laura (Penélope Cruz, desperdiçada em um papel que poderia ter sido mais explorado) e sua relação extraconjugal com Lina Lardi (Shailene Woodley, igualmente sem brilho). No entanto, toda vez que essas subtramas surgem, é como se o filme parasse bruscamente, travando como um carro de corrida que perde o controle em uma curva. Esses momentos são tão aborrecidos que se tornam quase insuportáveis, e se não fosse pelo barulho constante e irritante dos motores, teria sido fácil dormir.

Falando em barulhos, as cenas de corrida, embora tecnicamente competentes, tornam-se uma tortura sonora. Para alguém que odeia carros e tudo relacionado a eles, o rugido contínuo dos motores se transforma em uma experiência quase insuportável. É um dos sons mais irritantes do mundo, e o filme faz questão de colocá-lo em evidência o tempo todo, como se fosse uma espécie de tortura acústica para o espectador. Mesmo para os amantes do automobilismo, a intensidade dessas cenas parece deslocada, como se fosse uma tentativa desesperada de injetar energia em uma história que está, literalmente, sem combustível.

O grande problema de Ferrari é que, por trás das câmeras, parece não haver propósito real. Enzo Ferrari é tratado como uma espécie de semideus no mundo dos carros, mas o filme falha miseravelmente em explicar por que ele merece essa reverência. No final das contas, ele é apenas um homem que criou máquinas rápidas para andar em círculos, indiferente ao sofrimento e às consequências de suas ações. Sua frieza diante da morte e dos sacrifícios humanos é chocante, e o filme não faz nenhum esforço real para condenar essa postura ou sequer explorá-la de forma crítica.

Com atuações que variam do exagerado ao apático, uma narrativa desinteressante e um personagem principal vazio e insensível, Ferrari é uma decepção monumental. Não há nada aqui que justifique seu tempo de tela ou o investimento emocional do espectador. Se você, como eu, já não tem interesse algum em carros, essa é uma experiência que será particularmente exaustiva. O filme não oferece nada além de motores barulhentos e um vazio emocional tão grande quanto as pistas de corrida que ele celebra.

Fausto (1926)


Título original: Faust: Eine Deustsche Volkssage
Direção: F. W. Murnau
Sinopse: Disputando o poder sobre a Terra, Deus e Satã apostam a alma de Fausto, um alquimista erudito. Durante uma praga, este homem se desespera, queimando todos os seus livros. Neste momento, Satã envia Mefistófoles para tentar Fausto com o retorno da juventude e o alquimista aceita o pacto. Certo dia, entediado, ele resolve voltar para casa, onde conhece e se apaixona pela bela Gretchen, um encontro que será a desonra da moça. Baseado na famosa peça de Goethe.


Fausto (Faust: Eine Deutsche Volkssage, 1926), dirigido por F. W. Murnau, é uma obra-prima do cinema mudo que sintetiza elementos do expressionismo alemão, ao mesmo tempo em que incorpora temas universais de moralidade e redenção. Baseado no texto clássico de Goethe e nas versões populares da lenda de Fausto, Murnau nos apresenta uma visão épica e sombria do embate entre o bem e o mal, transformando a tela em uma pintura viva, carregada de simbolismo.

Tecnicamente, Fausto é um dos filmes mais impressionantes de sua época, marcado por uma inovadora utilização de efeitos especiais, iluminação e cenografia. O filme começa com uma aposta entre o arcanjo e o demônio Mefistófeles sobre a corrupção da alma humana, o que estabelece o tom quase bíblico da narrativa. Esta sequência de abertura, com as nuvens tempestuosas, o confronto entre luz e sombra e a gigantesca figura de Mefistófeles, é uma das cenas mais icônicas do expressionismo alemão, representando o poder de Murnau em criar imagens de grande impacto visual.

A estética expressionista permeia todo o filme, especialmente na forma como as sombras são usadas para representar a batalha interna de Fausto, bem como as forças externas que o manipulam. A iluminação contrastante destaca o tormento psicológico do protagonista, enquanto a geometria distorcida dos cenários intensifica o caráter onírico da narrativa. Isso é particularmente evidente na cidade onde Fausto vive, cujas ruas e edifícios parecem angulares e deformados, refletindo a corrupção moral que Mefistófeles espalha sobre o mundo.

Em termos de narrativa, Fausto apresenta a familiar história do pacto com o demônio, mas o faz com uma profundidade moral que a torna única. A decisão de Fausto de vender sua alma em troca de juventude e prazeres efêmeros é retratada com uma complexidade emocional que Murnau captura através da performance sutil e atormentada de Gösta Ekman. A dualidade do personagem, dilacerado entre o desejo e o arrependimento, é o cerne emocional do filme, e Ekman consegue equilibrar a fragilidade e a ambição de forma convincente, tornando Fausto uma figura trágica, mas ainda assim relacional.

Em oposição a Fausto, Emil Jannings entrega uma performance marcante como Mefistófeles. Jannings traz à vida um demônio carismático, astuto e sardônico, cuja presença domina a tela. Sua interpretação de Mefistófeles é cheia de nuances, desde o humor sombrio até a crueldade fria, destacando o personagem como uma das melhores encarnações cinematográficas do mal. O demônio aqui não é apenas uma força destrutiva; ele é também uma figura cínica e manipuladora, que se diverte com o sofrimento humano.

O uso de efeitos especiais, como a transformação de Mefistófeles em várias formas e as paisagens apocalípticas, eleva o filme a um patamar quase mítico. Para a época, esses efeitos eram inovadores e desafiavam os limites técnicos do cinema. A cena em que Fausto e Mefistófeles voam sobre as terras devastadas pela peste é especialmente impressionante, combinando cenários pintados e miniaturas para criar uma sensação épica e apocalíptica. Este voo não é apenas uma viagem física, mas simbólica, representando a queda espiritual de Fausto e sua entrega ao pecado.

No entanto, apesar de sua grandeza visual e artística, Fausto sofre de uma narrativa que por vezes se arrasta. O filme se estende em alguns momentos, principalmente na transição entre os estágios de corrupção e redenção de Fausto. O ritmo irregular, sobretudo nas cenas românticas entre Fausto e Gretchen, interpretada por Camilla Horn, quebra o fluxo da tensão dramática. Embora essas cenas sirvam para humanizar Fausto e demonstrar sua vulnerabilidade, elas contrastam de forma um tanto dissonante com o tom épico e sombrio que predomina no resto do filme.

A relação entre Fausto e Gretchen também se desenrola de maneira previsível, sem o mesmo vigor emocional que caracteriza o conflito entre Fausto e Mefistófeles. Gretchen é retratada como a vítima pura e inocente, o que embora funcione dentro da moralidade da história, a torna uma personagem mais passiva, o que limita o impacto dramático da sua tragédia. Ainda assim, a performance de Horn é convincente, especialmente nas cenas finais, onde o sofrimento de Gretchen atinge seu ápice.

Outro ponto digno de destaque é a trilha sonora, composta por Werner R. Heymann, que acompanha de maneira sensível as nuances da narrativa visual. Em um filme mudo, a música tem a responsabilidade de intensificar as emoções dos personagens e estabelecer o clima das cenas. Heymann faz isso com maestria, desde os momentos de terror e tentação, até os de melancolia e redenção.

No final, a redenção de Fausto, conquistada pelo amor de Gretchen, traz uma conclusão catártica à história, mas também levanta questões sobre o papel do perdão e da moralidade em um mundo dominado pelo mal. Murnau não entrega respostas fáceis; ao contrário, ele nos força a refletir sobre as fraquezas humanas e o poder da fé e do amor para superar até mesmo as tentações mais sombrias.

Em suma, Fausto é um filme visualmente deslumbrante e tematicamente profundo, que, embora tenha alguns momentos arrastados, continua a ser uma peça fundamental do cinema expressionista alemão. A habilidade de Murnau em criar atmosferas densas e personagens multifacetados, combinada com o uso inovador da tecnologia da época, garante ao filme um lugar de destaque na história do cinema. Mesmo com seus pequenos deslizes narrativos, a obra permanece poderosa e ressonante, um testamento à habilidade de Murnau em transformar uma simples lenda em uma experiência cinematográfica grandiosa.

setembro 24, 2024

Amantes Eternos (2013)

 


Título original: Only Lovers Left Alive
Direção: Jim Jarmusch
Sinopse: Este filme mostra a história de amor entre dois vampiros (Tilda Swinton e Tom Hiddleston), cansados da sociedade onde vivem. Durante muitos séculos eles vivem uma relação juntos, até serem interrompidos pela incontrolável irmã caçula da vampira (Mia Wasikowska).


Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive, 2013), de Jim Jarmusch, é uma verdadeira ode à atemporalidade, e mais uma vez, o diretor prova ser um mestre em transformar histórias improváveis em pequenas obras-primas memoráveis. Se a premissa de vampiros melancólicos vagando pela escuridão da existência moderna pode soar trivial, Jarmusch a reimagina com uma sensibilidade única, carregada de poesia, filosofia e música que, mais do que pano de fundo, se torna uma extensão das próprias almas de seus protagonistas.

A trama acompanha Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda Swinton), um casal de vampiros que atravessou séculos de história. Longe dos clichês do terror, a abordagem de Jarmusch é tão introspectiva quanto hipnotizante, concentrando-se no tédio existencial, na beleza fugaz da arte e no luto pela degradação do mundo moderno. Adam, uma figura atormentada, vive recluso em uma Detroit desolada, imerso em sua música e numa depressão sem fim, enquanto Eve, sua eterna companheira, reside no exótico caos de Tânger, envolvendo-se com livros e sabedoria ancestral.

Que direção! Jim Jarmusch domina a narrativa com uma maestria que transcende o convencional, explorando temas de mortalidade, amor e decadência cultural de forma que só ele consegue. Sua habilidade em pegar histórias aparentemente banais e elevá-las a uma dimensão quase espiritual é rara, e aqui ele faz isso de maneira sublime. Como já fez em Flores Partidas (2005), onde transformou a busca de um homem pelo passado em uma reflexão sobre a própria existência, ou em Paterson (2016), onde o cotidiano de um motorista de ônibus vira poesia, Jarmusch mais uma vez nos leva por um caminho inesperado e comovente.

O trio de atuações centrais é simplesmente impecável. Tilda Swinton, sempre uma força da natureza, traz uma profundidade absurda a Eve. A atriz, que já deu vida a personagens tão diversos quanto a angelical Gabriel em Constantine (2005), a perturbada mãe em Precisamos Falar Sobre o Kevin (2011), a majestosa Feiticeira Branca de As Crônicas de Nárnia (2005) e até a excêntrica diretora de uma escola de dança em Suspiria (2018), constrói aqui uma vampira cheia de elegância, inteligência e uma calma milenar, quase indiferente às tragédias do mundo humano. Sua presença em tela é magnética, capaz de alternar entre o etéreo e o visceral com uma facilidade assustadora.

Ao lado dela, Tom Hiddleston interpreta Adam, um músico torturado pela eternidade e pela decadência cultural do mundo. Mais conhecido por seus papéis em Os Vingadores (2012), onde interpreta o vilanesco e carismático Loki, e em Kong: A Ilha da Caveira (2017), onde mostra seu lado mais aventureiro, Hiddleston aqui exibe uma performance contida e dolorosa. Ele é o retrato do artista incompreendido, consumido pela sua própria criatividade, mas incapaz de encontrar sentido no presente. Sua interpretação dá ao filme um ar de tragédia shakespeariana, um eco de Hamlet perdido em uma Detroit pós-industrial.

Para completar o trio, temos Mia Wasikowska, que aqui interpreta Ava, a jovem e insaciável irmã de Eve. A atriz, lembrada por seu papel como Sophie, a complexa e vulnerável paciente em In Treatment (2008), traz uma energia caótica ao filme. Sua Ava é impetuosa, irresponsável, quase um reflexo do hedonismo juvenil, destoando das figuras introspectivas de Adam e Eve. Ela é a faísca de caos que rompe a calma silenciosa da narrativa, adicionando uma camada de perigo e imprevisibilidade ao filme.

O roteiro é outra joia rara. Insanamente bom, cada linha de diálogo está carregada de significado e sutileza. Jarmusch mistura referências literárias, científicas e culturais de forma orgânica, sem nunca soar pedante. As conversas entre Adam e Eve não são apenas sobre seu relacionamento, mas sobre o mundo ao redor, sobre a arte que desaparece, a cultura que se dissolve e a própria insignificância da humanidade diante da eternidade. Essa reflexão, no entanto, não é puramente niilista; há uma beleza no desespero de Adam e uma aceitação tranquila no olhar de Eve. Juntos, eles formam o yin e yang da existência imortal.

Além disso, a trilha sonora é um elemento crucial, quase um personagem por si só. As canções, que vão desde rock gótico até sons eletrônicos experimentais, criam o clima certo para cada cena, reforçando a atmosfera densa e melancólica. É um filme onde a música não só ambienta, mas expressa o interior das personagens, especialmente Adam, que vive para sua arte e através dela. A escolha de Jarmusch por músicos como Jozef van Wissem e Yasmine Hamdan é um toque de mestre, fornecendo à película uma sonoridade etérea e hipnotizante, que ecoa a própria alma de seus protagonistas.

Tecnicamente, Amantes Eternos é um espetáculo à parte. A cinematografia de Yorick Le Saux é deslumbrante, com uma paleta de cores que alterna entre o escuro gótico de Detroit e o calor avermelhado de Tânger, refletindo o estado de espírito de Adam e Eve. A direção de arte também merece destaque, com cada cenário cuidadosamente construído para parecer uma extensão das personagens — o apartamento de Adam, cheio de instrumentos, máquinas analógicas e relíquias culturais, é um reflexo direto de sua obsessão pela arte e pelo passado.

No fim, Amantes Eternos é um filme que transcende o gênero de vampiros e se transforma em uma meditação sobre o tempo, o amor e a arte. Com uma direção impecável de Jarmusch, atuações marcantes de Swinton, Hiddleston e Wasikowska, e um roteiro afiado, essa é uma daquelas obras que ressoam muito depois dos créditos finais. É um filme que não se apressa em chegar a lugar nenhum, mas te convida a saborear cada momento, como se fosse o último. Que experiência!

setembro 23, 2024

Twisters (2024)

 


Título original: Twisters
Direção: Lee Isaac Chung
Sinopse: Kate Cooper é uma ex-caçadora de tempestades assombrada por um encontro devastador com um tornado durante seus anos de faculdade, que agora estuda padrões de tempestades nas telas em segurança na cidade de Nova York. Ela é atraída de volta às planícies por seu amigo, Javi, para testar um novo sistema revolucionário de rastreamento.


Twisters (2024) é um daqueles filmes que desafia a lógica ao existir. Uma sequência completamente desnecessária para um filme já duvidoso como Twister (1996), esta produção consegue a proeza de ser pior que o original em quase todos os aspectos, criando uma experiência não apenas entediante, mas ativamente dolorosa para quem ousa sentar-se diante dela por mais de 10 minutos. Seria exagero chamar Twisters de um desastre natural cinematográfico? Não mesmo. A ironia aqui é que os tornados retratados no filme não são tão catastróficos quanto o próprio roteiro, os personagens ou as decisões criativas. Se existisse uma competição para "Pior Filme do Ano", este já estaria no topo da lista.

Vamos começar com o roteiro, que mais parece ter sido escrito por um algoritmo de clichês. Aqui temos a cientista prodígio Kate Carter (Daisy Edgar-Jones), que, após um passado trágico, retorna ao perigoso mundo da caça a tornados, relutantemente se unindo ao "bad boy" de tempestades Tyler Owens (Glen Powell), uma personalidade de YouTube obcecada por capturar os tornados mais extremos e lucrar com a desgraça alheia. Juntos, eles atravessam uma série de situações previsíveis e completamente absurdas, como encontrar não um, não dois, mas oito tornados diferentes, cada um mais ridiculamente irreal do que o anterior. Há até um momento surreal em que um tornado destrói um cinema, em uma tentativa bizarra de ser "meta", como se o público fosse se conectar com essa bobagem​.

A quantidade de clichês reciclados é simplesmente exasperante. Desde o inevitável romance entre os protagonistas, que parece ter sido tirado diretamente do manual dos "relacionamentos forçados em blockbusters", até as tentativas rasas de humanizar a trama com algum drama de fundo que, francamente, ninguém se importa. Parece que os roteiristas jogaram tudo que podiam no liquidificador e cruzaram os dedos para que algo fizesse sentido — o que, evidentemente, não acontece. O filme se arrasta entre cenas expositivas sem fim e diálogos que fariam qualquer roteirista iniciante corar de vergonha. E mesmo quando chega a tão aguardada ação, ela é manchada por efeitos visuais risíveis, para não dizer amadores, especialmente para uma produção de orçamento gigantesco.

Falando dos efeitos, é inacreditável que em pleno 2024, com toda a tecnologia disponível, Twisters tenha conseguido ser visualmente tão ruim. Tornados que parecem ter saído diretamente de um filme de 2003, feitos com CGI de segunda categoria, colocam em dúvida como o dinheiro do orçamento foi gasto. O que deveria ser o ponto alto da experiência — as sequências das tempestades — se torna uma fonte de gargalhadas involuntárias. A tentativa de criar grandiosidade e tensão, com tornados flamejantes e gêmeos assassinos, resulta apenas em um espetáculo visual de quinta categoria, sem qualquer senso de perigo real​. Quando as maiores emoções que um filme de desastre pode evocar são risadas, há algo muito, muito errado.

E se os efeitos são ruins, a trilha sonora não fica atrás. Prepare-se para ter seus ouvidos torturados com o pior da música country cafona americana. A trilha, em vez de intensificar a ação ou criar atmosfera, joga o público em um mar de guitarras dedilhadas, letras chorosas e refrãos dignos de karaokê de quinta. Essa escolha musical apenas sublinha o quanto Twisters está fora de sintonia com qualquer ideia de qualidade cinematográfica, como se os produtores quisessem, deliberadamente, criar uma experiência desagradável em todos os níveis sensoriais.

Mesmo as performances, que poderiam ao menos salvar alguma coisa, falham em nos convencer. Daisy Edgar-Jones, que já provou ser uma atriz competente em outros trabalhos, parece perdida em um roteiro que a obriga a murmurar diálogos insossos enquanto corre em meio a efeitos de vento gerados por computador. Glen Powell, por sua vez, faz seu melhor para injetar um pouco de humor em um personagem insuportável, mas até ele parece perceber o tamanho da bobagem em que se meteu. A dinâmica entre eles é tão previsível quanto mal-executada, tornando difícil para o público se importar minimamente com seus destinos.

Além disso, o filme se esforça desesperadamente para ser relevante, jogando referências aleatórias à cultura de mídia social e influenciadores digitais, mas falha miseravelmente em torná-las interessantes. A tentativa de incluir discussões sobre meteorologia, mudanças climáticas e capitalização de desastres soa tão superficial e mal pensada que qualquer espectador com o mínimo de senso crítico ficará revirando os olhos a cada nova cena.

Se há algo que Twisters faz com perfeição, é exemplificar o estado lamentável do cinema comercial americano. Ao lado de tantos outros blockbusters recentes, incluindo os intermináveis filmes de super-heróis que saturam o mercado, este filme é mais um prego no caixão da criatividade em Hollywood. Não há originalidade, não há risco, apenas uma tentativa desesperada de capitalizar em cima da nostalgia dos anos 90, mas sem qualquer respeito pelo público ou pela arte cinematográfica em si. É a prova de que, em meio à mediocridade, o cinema comercial de grande orçamento perdeu completamente a noção de propósito.

Se Twisters fosse um tornado real, ele certamente não deixaria destruição para trás — só uma profunda decepção, uma vontade de pedir reembolso e um questionamento sério sobre as escolhas de vida que te levaram a assistir a isso. Candidato a pior filme do ano? Sem sombra de dúvida.

Lírio Partido (1919)

 


Título original: Broken Blossoms
Direção: D. W. Griffith
Sinopse: Em Londres, um jovem chinês se envolve com uma pobre moça que sofre nas mãos de seu pai abusivo.


"Lírio Partido" ("Broken Blossoms"), dirigido por D.W. Griffith e lançado em 1919, é um filme do período do cinema mudo que exemplifica o apogeu das técnicas narrativas visuais da época. A trama foca na trágica história de amor entre Cheng Huan, um imigrante chinês, e Lucy, uma jovem britânica maltratada por seu pai. Embora seja celebrado por sua estética e inovações técnicas, também apresenta problemas que podem ser controversos quando vistos com os olhos de hoje, especialmente no que diz respeito a questões culturais e sociais.

Do ponto de vista técnico, "Lírio Partido" é uma das obras mais delicadas de Griffith. Sua abordagem visual reflete a busca pela sofisticação em um momento em que o cinema começava a ser reconhecido como uma forma de arte legítima. A cinematografia de Billy Bitzer é um dos maiores destaques do filme. Ele usa luz e sombra para criar uma atmosfera sombria e sufocante, que é essencial para reforçar o tom trágico da narrativa. A iluminação suave e difusa em várias cenas – especialmente aquelas que envolvem Lucy (interpretada por Lillian Gish) – dá ao filme uma qualidade quase onírica, como se os personagens estivessem presos em uma realidade frágil e triste.

A montagem é outro ponto importante a ser mencionado. Griffith já havia mostrado sua habilidade com o ritmo de edição em obras anteriores, como O Nascimento de uma Nação (1915) e Intolerância (1916), mas em Lírio Partido ele opta por uma abordagem mais contida e introspectiva. Aqui, ele desacelera o ritmo, permitindo que os sentimentos dos personagens ganhem mais espaço. A lentidão da montagem contribui para o ambiente de melancolia e resignação que permeia o filme.

Os intertítulos (cartelas de texto que aparecem entre as cenas no cinema mudo) são utilizados de forma econômica e poética. Eles fornecem o contexto necessário para a narrativa, mas também oferecem momentos de reflexão ao público. Esses intertítulos trazem uma qualidade literária à narrativa, conectando o espectador aos temas de sofrimento e sacrifício que dominam a história.

No entanto, apesar de sua sofisticação técnica, "Lírio Partido" tem limitações em termos de enredo e representação cultural. A escolha de Griffith de escalar Richard Barthelmess, um ator branco, para interpretar o personagem de Cheng Huan é um exemplo do "yellowface", uma prática comum em Hollywood na época, onde atores brancos eram maquiados para parecerem de outras etnias. Isso é problemático, não apenas porque perpetua estereótipos raciais, mas também porque limita a autenticidade e a profundidade emocional que o personagem poderia ter.

Lillian Gish, uma das atrizes favoritas de Griffith, oferece uma performance comovente e com nuances como Lucy. Seu talento em transmitir vulnerabilidade e desespero apenas com expressões faciais é notável. A cena em que ela, temendo o pai abusivo, se esconde em um armário, contorcendo o rosto em uma máscara de medo puro, é uma das mais lembradas do filme. Gish consegue capturar a essência de uma vítima oprimida sem recorrer ao exagero, o que ressalta sua habilidade como atriz.

Por outro lado, Richard Barthelmess, apesar de entregar uma performance sensível como Cheng Huan, enfrenta as limitações impostas pela caracterização racial de seu personagem. O filme o retrata como um homem idealista e pacífico, mas as nuances de sua identidade como imigrante chinês em um ambiente hostil são amplamente simplificadas. Além disso, o uso do yellowface é desconfortável para audiências modernas, tornando difícil apreciar completamente sua performance sem reconhecer o impacto negativo dessa escolha.

A história de "Lírio Partido" toca em temas de violência doméstica, racismo e sacrifício. A relação de Lucy com seu pai abusivo, Battling Burrows (interpretado de maneira assustadora por Donald Crisp), é uma das mais duras representações de abuso físico e psicológico já mostradas no cinema da época. O tratamento de Burrows em relação à filha é brutal, e Griffith não poupa o espectador de cenas que mostram a crueldade do personagem. No entanto, essa violência é equilibrada pela delicadeza com que Cheng Huan cuida de Lucy, criando um contraste visual e emocional poderoso.

O filme, entretanto, reflete também as limitações culturais e sociais de seu tempo. A visão de Griffith sobre a China e sua cultura é idealizada e simplificada, enquanto os personagens britânicos são retratados com uma brutalidade exacerbada. Isso pode ser visto como uma tentativa de criticar a sociedade ocidental, mas o fato de o herói da história ser um estereótipo racial enfraquece a mensagem.

Além disso, o subtexto colonialista não pode ser ignorado. Embora Cheng Huan seja mostrado como um personagem nobre e moralmente superior, ele ainda está preso a uma visão ocidentalizada da China e de si mesmo. O filme se encaixa em um padrão comum do início do século XX, onde as culturas asiáticas eram frequentemente retratadas de forma exótica e romantizada, mas sem verdadeira compreensão ou empatia. Essa abordagem diminui o impacto emocional e intelectual que a história poderia ter tido, especialmente considerando que o filme tenta abordar a questão do preconceito racial.

Embora Lírio Partido seja indiscutivelmente uma obra importante no desenvolvimento da linguagem cinematográfica, suas falhas narrativas e a representação racial problemáticas não podem ser ignoradas. É um filme que se destaca por suas inovações técnicas e pelo desempenho excepcional de Lillian Gish, mas, ao mesmo tempo, sofre com uma visão datada e limitada das culturas não ocidentais.

Dada a importância de D.W. Griffith na história do cinema, é inegável que Lírio Partido tenha deixado um legado duradouro. No entanto, do ponto de vista moderno, o filme pode parecer desconfortável e limitado em seu tratamento de temas raciais e culturais. Para muitos, especialmente aqueles que procuram narrativas mais complexas e representações mais justas, a experiência de assistir a Lírio Partido pode ser dividida entre a admiração pela forma e o desconforto com o conteúdo. Ele merece ser estudado e reconhecido por sua importância histórica, mas com a ressalva de que suas falhas ideológicas precisam ser abordadas e discutidas à luz dos valores contemporâneos.