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agosto 29, 2024

Paraíso (2016)

 


Título original: Рай
Direção: Andrei Konchalovsky
Sinopse: Durante um terrível período de guerra e de intensos conflitos bélicos, as vidas de três pessoas acabam se cruzando: Olga (Yuliya Vysotskaya), uma aristocrata russa e membro da resistência francesa; Jules (Philippe Duquesne), um francês; e Helmut (Christian Clauss), um oficial de alta patente dentro das tropas nazistas.


Andrei Konchalovsky, diretor russo de uma carreira marcada por obras densas e repletas de significados, apresenta em Paraíso ("Рай") um retrato sombrio e cru, focado na Segunda Guerra Mundial e nas cicatrizes deixadas pela ocupação nazista. O filme, que se passa em grande parte dentro de um campo de concentração, adota uma estrutura que lembra um documentário, alternando entre confissões de seus três personagens principais: Olga (Julia Vysotskaya), uma aristocrata russa membro da Resistência Francesa, Helmut (Christian Clauss), um oficial nazista de alta patente, e Jules (Philippe Duquesne), um colaborador francês.

O maior destaque de Paraíso é, sem dúvida, sua fotografia. Filmado em preto e branco, com enquadramentos precisos e uma textura visual que remete ao cinema dos anos 1940, a estética é ao mesmo tempo nostálgica e perturbadora. A ausência de cores contribui para uma sensação de atemporalidade, sugerindo que os horrores retratados transcendem qualquer época. A câmera de Aleksandr Simonov, o diretor de fotografia, evita artifícios ou grandes movimentos. Cada plano é construído com uma secura proposital, evitando a glamourização das cenas e destacando a realidade implacável do campo de concentração. Em vez de buscar a beleza nos horrores, o filme deixa o espectador frente a frente com a crueldade, sem filtros ou romantizações.

Konchalovsky é conhecido por sua habilidade em explorar a complexidade humana, e em Paraíso ele mergulha profundamente nas ambiguidades morais de seus personagens. Olga, por exemplo, apesar de ser uma vítima do regime nazista, apresenta um misto de fragilidade e força que a torna imprevisível. Ao mesmo tempo, Helmut, o oficial nazista, é apresentado como um homem que acredita na pureza de seus ideais, mas que, ao confrontar Olga, começa a mostrar rachaduras em sua crença. Essa dinâmica entre opressor e oprimido é apresentada sem julgamentos morais simplistas, deixando ao espectador a tarefa de decifrar os dilemas humanos em jogo.

No entanto, essa abordagem de Konchalovsky traz também um sentimento de distanciamento. O formato escolhido, com entrevistas diretas com a câmera, quase como se os personagens estivessem sendo interrogados por um tribunal divino, cria uma sensação de artificialidade. Embora essa técnica tenha como objetivo aproximar o espectador das motivações e pensamentos dos personagens, ela também limita o desenvolvimento emocional das cenas. A estrutura do filme acaba por sufocar a narrativa, tornando-a episódica e por vezes fragmentada.

Outro aspecto que merece destaque é a forma como o filme lida com a violência. Ao contrário de muitos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial, que transformam a brutalidade em espetáculo, Paraíso apresenta a crueldade de forma seca e direta. As execuções, os abusos e a degradação dos prisioneiros são mostrados sem cortes, em tomadas longas que forçam o espectador a encarar a realidade do que está sendo retratado. Não há espaço para o heroísmo ou para momentos de alívio. Cada ato de violência é apresentado como parte de uma rotina insensível, o que aumenta o impacto emocional.

Essa abordagem é eficaz em transmitir a brutalidade da época, mas ao mesmo tempo, essa secura pode afastar alguns espectadores. Em certos momentos, a falta de alívio dramático ou emocional cria uma sensação de monotonia. A própria Olga, por exemplo, apesar de ser uma personagem fascinante, é frequentemente apresentada de maneira distante, o que impede uma maior conexão com seu sofrimento e suas motivações. O filme, ao escolher uma narrativa tão despojada de sentimentos explícitos, acaba por tornar-se frio em certos aspectos.

A trilha sonora, composta por Sergei Shustitsky, também segue essa linha minimalista. Utilizada com parcimônia, a música nunca toma o protagonismo das cenas, servindo mais como um pano de fundo atmosférico. A ausência de uma trilha sonora impactante ressalta ainda mais o peso do silêncio e dos sons ambientes, como o ruído de passos no campo de concentração ou o eco das portas das celas se fechando. Esse uso do som ou da falta dele reforça a sensação de isolamento e desumanização que permeia o filme.

Um dos pontos mais discutíveis em Paraíso é a maneira como o filme se posiciona em relação à culpa e à redenção. A estrutura "confessional" de seus personagens sugere que cada um está buscando, de alguma forma, justificar suas ações, sejam elas a favor ou contra o regime nazista. Helmut, por exemplo, acredita em sua missão de purificar a raça ariana, mas suas interações com Olga o fazem repensar, mesmo que de maneira sutil, suas convicções. Olga, por sua vez, não é pintada como uma heroína tradicional, e seu desejo de sobreviver a qualquer custo coloca em xeque os limites da moralidade em tempos de guerra.

O grande desafio do filme está em equilibrar essas tensões internas com uma narrativa que se mantenha coesa e envolvente. Em vários momentos, Paraíso parece mais preocupado em criar uma reflexão filosófica do que em contar uma história fluida. Isso pode tornar a experiência de assistir ao filme um tanto árida, especialmente para aqueles que buscam um arco narrativo mais tradicional.

Por fim, Paraíso é uma obra visualmente impactante, com uma fotografia que merece ser estudada e apreciada. No entanto, seu enfoque seco, quase clínico, na crueldade da guerra, aliado a uma narrativa fragmentada, pode afastar parte do público. Konchalovsky oferece um filme que não busca agradar ou confortar. Pelo contrário, Paraíso obriga o espectador a confrontar as verdades duras e incômodas da humanidade em tempos de guerra, sem oferecer soluções fáceis ou catarses emocionais. A obra é, acima de tudo, um convite à reflexão sobre os limites da moralidade e da sobrevivência, mas talvez seja também um filme que requer um estado de espírito particular para ser plenamente apreciado.

Trama Fantasma (2017)

 


Título original: Phantom Thread
Direção: Paul Thomas Anderson
Sinopse: Nos anos 1950, Reynolds Woodcock é um renomado e confiante estilista que trabalha ao lado da irmã, Cyril, para vestir grandes nomes da realeza e da elite britânica. Sua inspiração surge através das mulheres que, constantemente, entram e saem de sua vida. Mas tudo muda quando ele conhece a forte e inteligente Alma, que vira sua musa e amante.


Paul Thomas Anderson, diretor renomado por filmes que exploram o interior dos personagens e suas complexas relações humanas, nos entrega em Trama Fantasma uma obra que combina elegância e intensidade. Situado na Londres dos anos 1950, o filme é centrado no excêntrico e perfeccionista estilista Reynolds Woodcock (interpretado por Daniel Day-Lewis), cuja vida ordenada e meticulosamente controlada sofre uma reviravolta ao conhecer Alma (Vicky Krieps), uma jovem de espírito livre que desafia seu controle. Mais do que uma narrativa sobre moda, Trama Fantasma é um estudo psicológico sobre a dinâmica do poder, obsessão e amor tóxico, envolto em uma estética impecável que eleva a experiência cinematográfica.

Um dos maiores destaques do filme é, sem dúvida, a trilha sonora composta por Jonny Greenwood, que não só complementa a narrativa, mas a enriquece com uma intensidade emocional profunda. Greenwood, que já havia colaborado com Anderson em filmes anteriores, atinge um novo nível de excelência em Trama Fantasma, criando uma trilha orquestral que captura a tensão e a beleza do mundo de Reynolds e Alma.

A música de Greenwood age quase como um personagem adicional no filme, intensificando cada cena com uma sutileza notável. Desde os momentos mais delicados até os mais dramáticos, a trilha eleva o tom do filme, refletindo as camadas complexas das emoções dos personagens. As composições para piano e cordas são especialmente marcantes, preenchendo o ar com uma sensação de nostalgia e sofisticação que dialoga diretamente com o cenário de alta costura da época. A trilha funciona não apenas como acompanhamento, mas como um eco das personalidades controladoras e obsessivas de Reynolds, ao mesmo tempo que revela as vulnerabilidades ocultas por trás de sua fachada de perfeição.

Outro elemento que brilha em Trama Fantasma é a fotografia, supervisionada pelo próprio Paul Thomas Anderson, que dispensa um diretor de fotografia oficial. O estilo visual do filme é extremamente refinado, e cada quadro parece cuidadosamente desenhado, assim como os vestidos criados por Reynolds. Há uma estética clássica permeando toda a obra, com uma paleta de cores que ressalta os tons suaves e neutros, sem abrir mão de uma profundidade emocional intrínseca.

A luz natural é usada com maestria, especialmente nas cenas dentro da casa e do ateliê de Woodcock, que se tornam quase uma extensão da personalidade do protagonista. O controle visual reflete a rigidez com que ele governa seu mundo, e essa estética rígida é ocasionalmente rompida pelos contrastes sutis, especialmente nos momentos em que Alma começa a desafiar as regras. A câmera de Anderson é precisa, focando nos detalhes das costuras, dos gestos e das expressões mínimas dos personagens, fazendo com que até mesmo um simples olhar ou o ato de ajustar um vestido se torne carregado de significado.

Seria impossível falar sobre Trama Fantasma sem mencionar a excelência do figurino, que desempenha um papel vital na construção da narrativa. Os trajes não são apenas belos de se ver, mas também funcionam como uma extensão da psicologia dos personagens. Reynolds, um homem obcecado pela perfeição e pelo controle, encontra nos vestidos que cria uma forma de expressar seu poder e seu desejo por ordem. No entanto, à medida que a relação entre ele e Alma se desenvolve, esses trajes começam a refletir a luta de poder entre eles.

Os vestidos, desenhados pela figurinista Mark Bridges, são absolutamente deslumbrantes, e capturam perfeitamente a opulência e o glamour da alta costura dos anos 1950. A atenção aos detalhes é impressionante, desde os tecidos luxuosos até os bordados intrincados, que servem como uma metáfora visual para as complexas relações tecidas ao longo da trama. Cada peça de roupa parece uma obra de arte viva, moldada não apenas pela estética, mas pelas emoções reprimidas e pela tensão que atravessa o filme.

No centro dessa história está Daniel Day-Lewis, que, em sua suposta última atuação, entrega uma performance contida e profundamente calculada. Seu Reynolds é ao mesmo tempo fascinante e repelente, um homem cuja genialidade é inegável, mas cuja incapacidade de se conectar emocionalmente torna-o trágico. Day-Lewis constrói um personagem complexo, cujo silêncio e gestos mínimos falam mais do que palavras. Cada movimento seu, seja ajustando um vestido ou movendo uma colher de chá, é carregado de significado. Vicky Krieps, por sua vez, é o contraponto perfeito, trazendo uma leveza inicial que logo se transforma em uma força silenciosa capaz de abalar o mundo de Reynolds. A relação entre eles, marcada pela manipulação e interdependência, é o coração do filme, e suas interações são fascinantes de assistir.

Lesley Manville, como Cyril, a irmã de Reynolds, é igualmente brilhante. Sua personagem é uma presença constante, rígida e fria, mas com nuances que revelam uma compreensão profunda dos mecanismos que sustentam o mundo de seu irmão. Ela é a figura que garante que a ordem seja mantida, mas também é capaz de ver quando essa ordem está em risco.

O roteiro de Paul Thomas Anderson, assim como a direção, é meticuloso e profundamente psicológico. Trama Fantasma não é um filme de grandes reviravoltas ou explosões dramáticas, mas de sutilezas. Cada interação entre os personagens é carregada de subtexto, e o que não é dito muitas vezes tem mais impacto do que as palavras. A narrativa explora temas como o controle, a obsessão e a necessidade humana por conexão, de uma forma quase claustrofóbica.

A estrutura do filme é lenta, mas intencionalmente construída para que cada momento seja uma peça de um quebra-cabeça emocional. Anderson desafia o espectador a ler nas entrelinhas, a observar as camadas escondidas sob a superfície polida de seus personagens, especialmente no jogo psicológico entre Reynolds e Alma, que se desenrola de forma quase invisível, mas sempre presente.

Trama Fantasma é uma obra de arte cinematográfica que se destaca pela sua sofisticação técnica e emocional. Desde a trilha sonora envolvente de Jonny Greenwood até a fotografia meticulosa e o figurino luxuoso, o filme é uma experiência visual e auditiva que se entrelaça com uma narrativa densa e provocativa. Através das atuações sutis, mas poderosas, e da direção precisa de Anderson, o filme explora as profundezas da psique humana e as dinâmicas do poder nas relações de uma maneira elegante e inesquecível. É um filme que exige paciência e atenção, recompensando aqueles que mergulham em seus detalhes com uma experiência rica e gratificante.

Melhores Amigos (2016)

 


Título original: Little Men
Direção: Ira Sachs
Sinopse: Jake está de mudança junto com a sua família para a casa onde vivia o seu avô, que faleceu recentemente. No novo bairro, ele faz amizade com Tony e os dois se tornam grandes amigos com o passar do tempo. Mas junto com a fraternidade dos dois, as suas famílias também se aproximam, mas de maneira negativa, em uma discussão sobre o aluguel da loja localizada no térreo da casa.


Melhores Amigos (Little Men), dirigido por Ira Sachs, é um filme que busca explorar, com sensibilidade e sutileza, as tensões econômicas e emocionais que surgem quando uma amizade infantil entra em colisão com questões adultas. Ambientado no Brooklyn, Nova York, o filme segue a trajetória de Jake (Theo Taplitz) e Tony (Michael Barbieri), dois garotos que desenvolvem uma amizade inesperada enquanto suas famílias enfrentam uma crescente disputa sobre o aluguel de uma loja de roupas. Embora a premissa do filme tenha grande potencial para um drama íntimo e profundo, a execução apresenta certas limitações que comprometem o impacto emocional e a coesão narrativa da obra.

O ponto de partida do filme é a mudança de Jake e sua família para o apartamento acima da loja que sua falecida avó possuía. Ao mesmo tempo, conhecemos Tony, cuja mãe, Leonor (Paulina García), é inquilina da loja. Os garotos rapidamente se tornam amigos inseparáveis, compartilhando sonhos e interesses, mas a tranquilidade de sua amizade é abalada pela tensão entre os pais de Jake, Brian (Greg Kinnear) e Kathy (Jennifer Ehle), e Leonor, que não consegue pagar o novo aluguel que a família de Jake decide impor.

A trama coloca questões importantes sobre gentrificação e desigualdade, ao mesmo tempo em que tece a narrativa íntima da infância e suas complexidades. No entanto, embora os temas sejam pertinentes e a premissa intrigante, o filme não se aprofunda o suficiente em suas questões centrais. A falta de conflito dramático robusto, ou de uma progressão mais marcante na relação entre os adultos e as crianças, dá ao filme um ritmo arrastado, tornando-o por vezes excessivamente introspectivo, mas sem um impacto emocional à altura. Há uma tentativa de criar um retrato sóbrio e delicado de vidas comuns, mas em certos momentos o filme falha em fazer com que essas pequenas tensões ressoem de forma significativa.

Theo Taplitz, como Jake, apresenta uma atuação naturalista e introspectiva, representando bem a insegurança de um adolescente criativo e introspectivo, muitas vezes perdido no mundo ao seu redor. Michael Barbieri, por outro lado, traz uma energia completamente oposta com Tony, mais extrovertido e confiante. As interações entre eles, especialmente em cenas mais leves, como quando andam de patins ou discutem sobre suas ambições, são genuínas e oferecem momentos de ternura que capturam a natureza sincera da amizade infantil.

Porém, é nos adultos que o filme apresenta seu maior desafio. Greg Kinnear e Jennifer Ehle, dois atores de grande talento, entregam performances competentes, mas limitadas pela superficialidade de seus personagens. Kinnear interpreta um ator fracassado que luta com suas próprias limitações financeiras e emocionais, enquanto Ehle é uma mãe atenciosa, mas pouco desenvolvida no roteiro. Suas interações parecem muitas vezes desprovidas de um verdadeiro conflito interno, o que dificulta a construção de uma narrativa mais envolvente entre as tensões familiares. Paulina García, como Leonor, tem alguns dos melhores momentos do filme, especialmente ao expressar sua frustração com a crescente pressão para deixar o espaço que sustenta sua vida e seu negócio. No entanto, sua personagem também carece de um arco mais aprofundado.

Ira Sachs é conhecido por seus dramas sutis, com foco em relações humanas e questões contemporâneas, e isso é evidente em Melhores Amigos. No entanto, aqui, essa abordagem minimalista acaba por prejudicar o filme em certos aspectos. Sachs opta por uma direção que evita o melodrama, o que, em teoria, é admirável, mas a falta de uma progressão emocional clara torna o filme insosso em vários momentos. A escolha de Sachs por um ritmo mais contido e uma estética realista é uma faca de dois gumes: por um lado, ele captura com precisão a banalidade do cotidiano; por outro, essa mesma abordagem pode parecer apática, especialmente quando o roteiro não oferece diálogos ou conflitos suficientemente potentes para manter o espectador investido.

Há uma sensação de que o filme se contém demasiadamente, evitando explorar de forma mais aguda os dilemas que apresenta. Ao final, o sentimento é de uma obra que, embora tenha uma premissa sólida, não entrega totalmente o potencial dramático que ela promete.

A fotografia de Óscar Durán é simples e direta, refletindo a abordagem discreta do filme. Os cenários, principalmente o Brooklyn contemporâneo, são capturados com uma certa melancolia, mas sem grandes artifícios visuais. As cores são muitas vezes suaves, acompanhando o tom do filme, com a luz natural predominando. Essa escolha reforça a sensação de realismo que permeia toda a obra. No entanto, assim como o enredo, a estética do filme carece de uma assinatura visual mais marcante que poderia dar mais vigor ao ambiente urbano que o filme retrata. A cidade de Nova York, que tantas vezes assume um papel de protagonista em filmes, aqui é apenas um pano de fundo, sem grande presença ou impacto na narrativa.

A trilha sonora de Dickon Hinchliffe é discreta, composta por peças instrumentais que ajudam a criar uma atmosfera de introspecção. Contudo, assim como a fotografia e o ritmo narrativo, a trilha contribui para o clima contido do filme, sem momentos memoráveis ou que realmente elevem a experiência emocional. Em alguns pontos, a ausência de uma trilha mais marcante pode ser sentida, especialmente em cenas que poderiam ter se beneficiado de uma maior intensidade sonora para ressaltar o drama em jogo.

Melhores Amigos é um filme que tenta equilibrar o drama social com a leveza da amizade infantil, mas acaba tropeçando em sua própria sutileza. Embora a amizade entre Jake e Tony seja o coração da história, o filme se perde nas complexidades mal desenvolvidas do enredo adulto, criando um contraste desconexo entre os dois núcleos da narrativa. A falta de exploração mais profunda das questões sociais, como a gentrificação e as dificuldades econômicas, e a ausência de uma maior densidade emocional nos personagens adultos, faz com que a obra, embora competente em alguns aspectos, não atinja todo o seu potencial dramático.

O filme tem mérito por sua tentativa de abordar temas contemporâneos de forma delicada e não sensacionalista, mas, ao evitar qualquer tipo de explosão emocional ou confronto mais direto, acaba por ser uma experiência cinematográfica morna. A sensibilidade de Ira Sachs é visível, mas sua recusa em adotar uma postura mais incisiva acaba tornando o filme menos envolvente do que poderia ser. Em suma, Melhores Amigos é uma obra que poderia ter sido muito mais impactante se tivesse ousado mergulhar com mais profundidade nos conflitos que propõe.

agosto 28, 2024

Oppenheimer (2023)

 


Título original: Oppenheimer
Direção: Christopher Nolan
Sinopse: A história do físico americano J. Robert Oppenheimer, seu papel no Projeto Manhattan e no desenvolvimento da bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial, e o quanto isso mudaria a história do mundo para sempre.


Christopher Nolan retorna com mais uma de suas produções grandiosas em Oppenheimer (2023), um filme que busca retratar a vida de J. Robert Oppenheimer, o físico responsável pela criação da bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial. Contudo, como muitos dos filmes de Nolan, Oppenheimer sofre com os mesmos problemas que permeiam suas obras anteriores: um excesso de pretensão, uma narrativa inchada e uma tentativa frustrada de combinar múltiplos gêneros sem coesão.

Em termos de duração, Oppenheimer peca por ser um filme incrivelmente longo, o que compromete a fluidez da narrativa. Ao invés de construir uma tensão crescente ou de proporcionar um aprofundamento significativo na vida do personagem título, o filme se arrasta, estendendo-se por mais de três horas. Esse tempo exagerado não só cansa o espectador, mas também dilui o impacto que a história poderia ter tido se fosse contada de maneira mais concisa. O resultado é uma obra enfadonha, com um anticlímax que deixa o público desapontado ao final.

A trilha sonora de Ludwig Göransson, colaborador frequente de Nolan, também não ajuda. Assim como em Interestelar (2014), a trilha parece invasiva e fora de lugar. As composições são grandiosas, mas sem sutileza, e acabam parecendo mais adequadas para fundos de stories e reels do Instagram do que para um filme que deveria ser um drama histórico de peso. Em vez de intensificar a narrativa, a música soa exagerada e distraída, atrapalhando a imersão do espectador na história. A trilha sonora falha em criar a ambientação emocional necessária para a história de Oppenheimer e seu impacto global.

A própria história, que deveria ser o centro emocional e narrativo do filme, é contada de maneira confusa e sem foco. O filme se vende como uma biografia de Oppenheimer, mas falha em capturar a profundidade e complexidade do personagem. Ao longo das três horas de exibição, pouco se revela sobre as motivações internas do físico, o que o transforma em um personagem entediante e difícil de se conectar. A oportunidade de explorar o peso emocional e psicológico de ser o “pai da bomba atômica” é perdida, resultando em um retrato superficial que não faz jus à relevância histórica do personagem.

Além disso, Oppenheimer falha em desenvolver adequadamente a narrativa em torno da bomba atômica em si. Para um filme que deveria tratar de um dos eventos mais impactantes do século XX, Nolan oferece muito pouco em termos de reflexão sobre a bomba, seu desenvolvimento ou as consequências morais de seu uso. O público que entra no cinema esperando uma abordagem mais intensa sobre o Projeto Manhattan e suas repercussões se vê frustrado por um enredo que parece se dispersar em subtramas políticas e pessoais que não conseguem se conectar de maneira satisfatória.

Em termos de abordagem política, Nolan escolhe uma linha que pode ser considerada, no mínimo, polêmica. O filme se posiciona como uma defesa disfarçada da esquerda política, apresentando os comunistas da época de maneira suavizada, quase vitimizada. Em diversos momentos, os personagens comunistas são retratados como “coitadinhos”, como se suas motivações fossem sempre puras e nobres. Oppenheimer, que teve suas ligações com o comunismo exploradas durante o Macartismo, é tratado de forma extremamente benevolente. Essa abordagem acaba por distorcer os fatos históricos, retirando a ambiguidade moral que torna a história real de Oppenheimer tão interessante.

A crítica ao capitalismo e ao sistema político americano durante a Guerra Fria é feita de maneira rasa e previsível, sem grandes insights ou complexidade. Nolan parece indeciso se quer fazer uma biografia de Oppenheimer, um filme político ou uma reflexão filosófica sobre o poder destrutivo da ciência. No final, não consegue ser nenhum dos três. O filme se perde em sua própria grandiosidade, sem se aprofundar em nenhum desses aspectos de maneira satisfatória. O resultado é uma narrativa confusa que não sabe a que veio.

Visualmente, o filme tem momentos impactantes, principalmente nas cenas que envolvem o teste da bomba em Los Alamos. A cinematografia de Hoyte van Hoytema, que colabora frequentemente com Nolan, é competente e oferece algumas tomadas visualmente deslumbrantes, especialmente nos momentos de maior tensão. No entanto, as belas paisagens e os efeitos especiais não são suficientes para compensar a falta de profundidade no enredo e a caracterização rasa dos personagens.

Em termos de ritmo, o filme tem momentos que parecem promissores, mas são rapidamente seguidos por cenas que parecem não ir a lugar nenhum. A narrativa se torna repetitiva e monótona, com diálogos longos e pouco dinâmicos, que minam qualquer senso de urgência ou de desenvolvimento emocional dos personagens. Nolan tenta infundir complexidade em uma história que, ao contrário de suas pretensões, é simples e direta. Essa tentativa de complicar a narrativa acaba prejudicando o filme, que se arrasta sem uma direção clara.

Em resumo, Oppenheimer é um filme que falha em quase todos os aspectos. Sua duração excessiva, narrativa confusa, e uma trilha sonora exagerada fazem com que a obra se torne um fardo para o espectador. Nolan, conhecido por suas abordagens ambiciosas, mais uma vez se perde em sua própria grandiosidade, esquecendo-se do que realmente importa: contar uma boa história. Oppenheimer poderia ter sido uma reflexão poderosa sobre a ciência, a moralidade e as consequências da bomba atômica, mas se transforma em um filme inchado e superficial. Mesmo sendo o "menos pior" dos filmes de Nolan, ele ainda carrega os mesmos problemas que afetam toda a filmografia do diretor.

agosto 27, 2024

O Amor É Estranho (2014)

 


Título original: Love Is Strange
Direção: Ira Sachs
Sinopse: Ben e George formam um casal há quatro décadas. Quando finalmente decidem se casar, a cerimônia é aprovada por amigos e familiares, mas acaba levando George a perder o seu emprego. Sem dinheiro, os dois são obrigados a viver separadamente até conseguirem vender a casa e comprar outra, mais barata. A nova vida em lares provisórios torna-se bastante desgastante para o casal e para os amigos envolvidos.


Dirigido por Ira Sachs, O Amor É Estranho (2014) é uma obra delicada e reflexiva que explora a complexidade dos relacionamentos humanos em meio a mudanças inesperadas da vida. O filme, com sua abordagem sutil e emocionalmente carregada, oferece uma visão profunda sobre o amor, o envelhecimento e as dificuldades que surgem ao lidar com sistemas sociais que frequentemente falham em apoiar o indivíduo. Ao focar nas nuances de um relacionamento de longa data, Sachs apresenta uma narrativa que, apesar de suas sutilezas, carrega uma ressonância emocional significativa.

A história segue Ben (John Lithgow) e George (Alfred Molina), um casal gay que, após quatro décadas juntos, finalmente consegue se casar. No entanto, a celebração da união traz uma reviravolta quando George perde seu emprego de professor em uma escola católica devido à sua orientação sexual. Esse evento desencadeia uma série de mudanças abruptas na vida do casal, que se vê forçado a vender seu apartamento e viver separadamente com amigos e familiares. A narrativa de O Amor É Estranho se desenrola a partir desse ponto de crise, explorando as tensões e desafios que surgem quando pessoas que se amam são forçadas a se adaptar a novas e difíceis circunstâncias.

Um dos aspectos mais marcantes do filme é a performance magistral de seus dois protagonistas. John Lithgow e Alfred Molina entregam atuações emocionantes e comoventes, carregadas de uma humanidade palpável. Lithgow, no papel de Ben, é doce, gentil, e revela a fragilidade de um homem que, apesar das adversidades, mantém sua ternura e otimismo. Já Molina, como George, transmite uma dignidade discreta, mas também a dor de alguém que enfrenta a perda de sua estabilidade profissional e emocional. Juntos, eles compartilham uma química que transparece o tipo de conexão construída ao longo de décadas de convivência. Suas interações são cheias de afeto e respeito mútuo, e é justamente essa intimidade que se torna o coração do filme.

A direção de Sachs se destaca pela sutileza. Ao invés de recorrer a grandes reviravoltas dramáticas ou a um melodrama excessivo, ele opta por um ritmo mais calmo, quase contemplativo. A câmera de Sachs observa seus personagens com paciência, deixando que suas emoções se desdobrem de maneira natural. Essa escolha faz com que o filme tenha uma qualidade quase documental em alguns momentos, como se estivéssemos observando a vida real ao invés de uma ficção. Essa abordagem torna O Amor É Estranho um filme íntimo, onde o drama está nos pequenos gestos, nos silêncios compartilhados, e nas dificuldades cotidianas de seus personagens.

A trilha sonora, composta principalmente por peças de Frédéric Chopin, acrescenta uma camada extra de sensibilidade à narrativa. A música clássica, com sua melancolia suave, reflete o estado emocional dos personagens e eleva o tom do filme sem nunca se sobrepor à delicadeza das cenas. A escolha de Chopin parece particularmente adequada, já que suas composições são conhecidas por expressar sentimentos de saudade e introspecção – temas que ressoam profundamente na história de Ben e George.

Outro ponto forte do filme é a maneira como aborda o envelhecimento e as implicações sociais do amor em sua fase mais madura. Ao contrário de muitos filmes que focam no romance jovem ou nos conflitos passionais, O Amor É Estranho oferece uma representação rara de um casal mais velho enfrentando os desafios de uma sociedade que ainda tem dificuldade em aceitar a diversidade. A separação forçada de Ben e George devido a limitações financeiras e sociais destaca como, apesar das conquistas no campo dos direitos LGBTQ+, ainda existem barreiras significativas que impactam a vida cotidiana de casais como eles.

Visualmente, o filme é simples, mas eficaz. A cinematografia de Christos Voudouris captura a cidade de Nova York com uma beleza sutil e nostálgica. A metrópole, com seus apartamentos apertados e parques urbanos, serve como pano de fundo para a história de Ben e George, refletindo a vida urbana contemporânea com todas as suas limitações e encantos. As cenas internas são frequentemente íntimas e claustrofóbicas, reforçando a sensação de confinamento físico e emocional que os personagens experimentam ao serem forçados a viver em espaços que não são seus.

No entanto, O Amor É Estranho também tem suas falhas. Embora o ritmo pausado contribua para a intimidade da narrativa, ele pode ser um pouco arrastado em certos momentos, fazendo com que o filme pareça se estender além do necessário. Além disso, alguns dos personagens secundários, como a família que acolhe Ben, poderiam ter sido mais desenvolvidos. As interações entre Ben e o casal mais jovem que o abriga são tocantes, mas há momentos em que essas subtramas parecem subaproveitadas, sem o mesmo nível de profundidade que o relacionamento central.

Ainda assim, esses pontos não diminuem a força emocional do filme. Ira Sachs constrói uma narrativa que, apesar de seus momentos mais lentos, ressoa com uma honestidade brutal sobre as complexidades do amor e da vida em sociedade. Ele retrata como o amor, por mais profundo e verdadeiro que seja, pode ser impactado por fatores externos – como a economia, a religião, e as normas sociais – de maneiras inesperadas e dolorosas.

No final das contas, O Amor É Estranho não é um filme sobre grandes gestos ou resoluções dramáticas. É uma obra que encontra beleza e profundidade nas pequenas coisas – nos olhares trocados entre Ben e George, nos momentos de silêncio compartilhados, e até mesmo nas dificuldades de adaptação a novas realidades. O filme deixa uma marca não pela grandiosidade de seu enredo, mas pela humanidade de seus personagens e pela maneira como retrata o amor em sua forma mais duradoura e resiliente.

Com performances excepcionais e uma direção sensível, O Amor É Estranho se consolida como um filme que, embora não seja perfeito, traz uma mensagem poderosa sobre as complexidades e os desafios do amor, especialmente em uma sociedade que ainda luta para aceitar a diversidade em todas as suas formas.

O Homem do Norte (2022)

 


Título original: The Northman
Direção: Robert Eggers
Sinopse: Baseado na obra de Shakespeare, Hamlet, e na lenda viking de Amelth. No ano de 914, o príncipe Amleth (Alexander Skarsgård) testemunha o brutal assassinato de seu pai, Horvendill (Ethan Hawke) por seu tio, Fjölnir (Claes Bang). O menino foge mas jura que voltará para vingar seu pai, salvar sua mãe e matar seu tio. Vinte anos depois conhece uma vidente que o lembra que é chegada a hora de cumprir sua promessa.


Robert Eggers emergiu como uma força no cinema moderno, conhecido por suas visões singulares e seu comprometimento com a precisão histórica. No entanto, O Homem do Norte (2022) marca um ponto de inflexão, onde o diretor, antes elogiado por sua ousadia e autenticidade, se perde em clichês e repetição. A história de vingança viking, embora visualmente impressionante, não escapa do desgaste que o próprio tema já sofreu nos últimos anos, especialmente com o sucesso prolongado da série Vikings. O resultado é um filme que, apesar de alguns méritos técnicos, acaba sendo tedioso e exaustivamente previsível.

Desde o primeiro momento, o filme já apresenta os elementos familiares: um jovem príncipe exilado (Alexander Skarsgård) jura vingar a morte do pai e reconquistar seu reino. Essa narrativa, arquetípica e repetida à exaustão na ficção viking, não oferece nenhuma novidade. O desejo de Eggers de se manter fiel aos mitos e sagas nórdicas é evidente, mas o problema está na ausência de frescor. A história já foi contada de diversas maneiras e, infelizmente, aqui não há nada que a diferencie. O espectador já sabe o que esperar, e o filme falha em surpreender ou provocar reflexões mais profundas. Ao tentar enfiar complexidade em uma trama que, em sua essência, é simples, o filme acaba se arrastando, sem conseguir atingir o impacto emocional desejado.

Em termos visuais, O Homem do Norte explora amplamente as paisagens da Islândia. Montanhas geladas, campos desolados e neblinas espessas servem como pano de fundo para a jornada de vingança do protagonista. No entanto, essas paisagens, outrora deslumbrantes, já não causam o mesmo efeito de encantamento. A Islândia, que nos últimos anos se tornou cenário recorrente em filmes e séries, começa a parecer cansativa, quase previsível em sua beleza. A exaustão visual é palpável, e a fotografia que deveria evocar grandiosidade e mistério acaba por parecer apenas mais do mesmo. A beleza natural da Islândia perde seu impacto quando constantemente reutilizada, e, neste filme, o que poderia ser um elemento atmosférico crucial se torna uma escolha banal.

A trilha sonora de Robin Carolan e Sebastian Gainsborough é, sem dúvida, um dos pontos altos do filme. Ela traz um peso dramático e uma intensidade ritualística que casa bem com a brutalidade e o misticismo da narrativa. No entanto, mesmo a música, por mais bem executada que seja, não é suficiente para salvar o filme da monotonia. A familiaridade com os sons nórdicos – tambores, coros guturais e cânticos ancestrais – também já se tornou algo esperado, e enquanto a trilha cumpre seu papel de amplificar as emoções, ela não oferece nada além do que já se ouviu antes em produções similares.

O filme sofre também com sua duração. Com quase duas horas e vinte minutos, O Homem do Norte se estende além do necessário. A narrativa poderia ter sido enxugada sem perder sua essência, mas ao tentar adicionar camadas de complexidade à história simples de vingança, o ritmo se torna arrastado. Há cenas que parecem excessivas, diálogos que se repetem em temas e simbolismos que, ao invés de enriquecerem a trama, apenas sublinham o óbvio. Essa sensação de repetição e lentidão faz com que o espectador perca o interesse, tornando a experiência exaustiva ao invés de imersiva.

Outro aspecto decepcionante é a presença de Björk no elenco. Conhecida por sua excentricidade, a cantora islandesa interpreta uma vidente, mas sua atuação deixa a desejar. Na verdade, Björk não atua – ela simplesmente está lá, como Björk. Com maquiagem elaborada e uma presença enigmática, sua performance parece mais uma extensão de sua persona pública do que uma verdadeira contribuição ao filme. Sua presença no elenco parece mais uma jogada de marketing, destinada a atrair curiosidade e público, do que uma escolha artística genuína. E, enquanto ela certamente traz um elemento de estranheza à cena, isso não é suficiente para compensar a superficialidade de sua interpretação.

Eggers, um diretor conhecido por sua precisão histórica e cuidado com os detalhes, parece, aqui, ter se deixado levar pela grandiosidade da produção. O que funcionou em seus filmes anteriores, como A Bruxa e O Farol, era a intimidade das narrativas e o controle sobre a tensão e o medo psicológico. Em O Homem do Norte, essa intimidade é substituída por uma grandiosidade artificial, que acaba por diluir o impacto emocional. A tentativa de explorar as mitologias vikings em uma escala épica soa forçada, e o resultado é um filme que, por mais bem produzido que seja, carece da alma e do frescor dos trabalhos anteriores de Eggers.

Em última análise, O Homem do Norte acaba caindo na armadilha de se tornar apenas mais uma história de vikings, em uma época saturada por narrativas semelhantes. O desgaste do tema é evidente, e o filme não oferece nada de novo ou interessante para reverter essa saturação. Embora existam momentos de beleza visual e uma trilha sonora competente, esses elementos são ofuscados por uma narrativa cansada, performances questionáveis e uma duração excessiva. Robert Eggers, que já demonstrou ser um cineasta talentoso, infelizmente tropeça aqui ao tentar transformar uma história simples em algo que ela não é.

A Bruxa (2016)

 


Título original: The Witch
Direção: Robert Eggers
Sinopse: O casal William e Katherine leva uma vida cristã com suas cinco crianças em uma comunidade extremamente religiosa, até serem expulsos do local por sua fé diferente daquela permitida pelas autoridades. A família passa a morar num local isolado, à beira do bosque, sofrendo com a escassez de comida. Um dia, o bebê recém-nascido desaparece. Enquanto buscam respostas, cada membro da família descobre seus piores medos.


O terror contemporâneo frequentemente se apoia em sustos fáceis, fórmulas repetitivas e excessos visuais. A Bruxa (2016), dirigido por Robert Eggers, é uma obra que vai contra essa maré, oferecendo uma abordagem minimalista, atmosférica e profundamente psicológica. Ao fazer isso, Eggers cria uma obra-prima de horror que, além de assustadora, funciona como uma análise sutil e mordaz sobre o fanatismo religioso e a fragilidade da condição humana diante do desconhecido.

Logo nas primeiras cenas, o espectador é transportado para a Nova Inglaterra do século XVII, onde uma família de colonos puritanos é expulsa de sua comunidade e se vê forçada a viver isolada, à beira de uma floresta densa e ameaçadora. Esse isolamento é o primeiro ponto-chave do filme. Eggers constrói o terror a partir da claustrofobia do espaço, da imensidão da floresta e do vazio emocional da família. Ao contrário do terror tradicional, onde o medo vem de ameaças externas, A Bruxa coloca o perigo no núcleo familiar e nas suas interações cotidianas. O verdadeiro horror surge do que essas pessoas são capazes de fazer a si mesmas.

A direção de arte de A Bruxa é impecável. Eggers, obcecado pela precisão histórica, recria com maestria o ambiente da época. As cabanas rudimentares, as roupas cinzentas e gastas, e a ausência de qualquer forma de luxo ou conforto contribuem para a atmosfera opressiva. Não há espaço para alívio ou alegria naquele mundo sombrio. O filme é dominado por uma paleta de cores frias e sujas, que reforça a desolação da vida daqueles puritanos. Cada cena parece envolta em um filtro cinza que captura o espectador em uma realidade sem esperança. A fotografia de Jarin Blaschke complementa essa escolha estética com enquadramentos que priorizam o vazio e a natureza hostil, reforçando a sensação de que o perigo pode estar tanto fora quanto dentro da casa.

No coração da história está a figura de Thomasin (Anya Taylor-Joy, em um desempenho brilhante), a filha mais velha, que se vê acusada de bruxaria pela própria família à medida que eventos estranhos começam a acontecer ao seu redor. A tensão crescente entre Thomasin e os outros membros da família revela como a fé cega e o fanatismo cristão podem ser ferramentas de destruição. A mãe, Katherine (Kate Dickie), afunda cada vez mais na loucura após a perda de seu filho mais novo, enquanto o pai, William (Ralph Ineson), luta contra sua impotência diante das calamidades que acometem a família. Os filhos mais novos, por sua vez, contribuem para a atmosfera de paranoia, com suas brincadeiras sinistras e acusações constantes. A dinâmica familiar é tão central quanto a suposta presença sobrenatural.

Eggers, no entanto, é cuidadoso em nunca mostrar demais. O filme constrói sua tensão a partir de um suspense gradual, onde o espectador nunca tem certeza do que é real e do que é fruto da paranoia religiosa. O uso do som, por exemplo, é magistral. A trilha sonora composta por Mark Korven é composta de notas dissonantes e sons perturbadores que criam uma constante sensação de desconforto. E, mais importante, não há pulos de susto forçados. O terror está na expectativa, no silêncio e na ambiguidade.

De fato, o maior triunfo de A Bruxa reside em sua capacidade de questionar as fronteiras entre o natural e o sobrenatural. A bruxa da floresta existe de verdade? Ou seria ela apenas uma projeção dos medos mais profundos da família? Para além da trama, o filme se posiciona como uma espécie de sátira ao fanatismo cristão. A fé extrema daquelas pessoas, em vez de protegê-las, se transforma em uma força de destruição. O medo do desconhecido – do diabo, da bruxaria, da floresta – é exacerbado pela crença inabalável de que o pecado está sempre à espreita, pronto para condená-los.

Em termos simbólicos, A Bruxa questiona o papel da mulher dentro de uma sociedade patriarcal e religiosa. Thomasin, como a filha mais velha, é a primeira a ser acusada de bruxaria. Sua crescente frustração com a falta de controle sobre sua própria vida reflete a repressão que as mulheres enfrentavam na época – e ainda enfrentam em muitas sociedades. Sua transformação ao longo do filme, de uma garota obediente a uma figura de poder e autonomia, sugere que a verdadeira “bruxaria” não reside em pactos demoníacos, mas na libertação das amarras sociais e religiosas.

Tecnicamente, Robert Eggers prova ser um mestre em seu primeiro longa-metragem. Sua habilidade de criar uma atmosfera de crescente desespero, aliada a sua direção precisa, mostra um profundo conhecimento das tradições do cinema de terror, mas com uma visão inovadora. Ele opta por um terror psicológico e existencial, onde o sobrenatural é menos importante do que as reações humanas a ele. As escolhas de Eggers não apenas subvertem as expectativas tradicionais do gênero, mas também elevam o filme a um patamar artístico raro em obras de terror.

A Bruxa é um filme sobre o medo – mas não o medo que vem de monstros ou demônios saltando na tela. É o medo do desconhecido, o medo do outro, e, mais importante, o medo que nasce dentro de nós mesmos. Robert Eggers consegue transformar os detalhes mais banais do cotidiano – como ordenhar uma cabra ou rezar em família – em momentos de puro terror. Essa é a marca de um filme que entende que o horror mais profundo não precisa ser explícito, ele já está presente nas pequenas falhas da humanidade.

Ao final, A Bruxa é mais do que um filme de terror; é uma alegoria sobre o fanatismo, a repressão e o preço da fé cega. A obra-prima de Eggers não só reescreve as regras do gênero, mas também nos força a olhar para o espelho e questionar as crenças que moldam nossas próprias vidas.

agosto 26, 2024

Era uma Vez em... Hollywood (2019)

 


Título original: Once Upon a Time in... Hollywood
Direção: Quentin Tarantino
Sinopse: Los Angeles, 1969. Rick Dalton é um ator de TV que, juntamente com seu dublê, está decidido a fazer o nome em Hollywood. Para tanto, ele conhece muitas pessoas influentes na indústria cinematográfica, o que os acaba levando aos assassinatos realizados por Charles Manson na época, entre eles o da atriz Sharon Tate, que na época estava grávida do diretor Roman Polanski.


Dirigido por Quentin Tarantino, Era uma Vez em... Hollywood (Once Upon a Time in... Hollywood, 2019) é uma obra que mistura nostalgia e revisionismo histórico, transportando o espectador diretamente para o final dos anos 1960, quando o glamour de Hollywood estava em seu auge e as tensões sociais e culturais dos Estados Unidos começavam a atingir seu ponto de ebulição. Tarantino, com sua assinatura visual e narrativa, constrói um filme que é, ao mesmo tempo, uma carta de amor ao cinema e uma reflexão sobre as transições culturais e sociais dessa época. No entanto, apesar da maestria técnica e artística envolvida, o filme não está isento de problemas, especialmente em seu ritmo e na forma como lida com certos elementos narrativos.

A recriação da Los Angeles de 1969 é um dos pontos mais fortes do filme. Desde o design de produção até o figurino, Era uma Vez em... Hollywood transporta o espectador para uma época dourada da história do cinema. As ruas de Hollywood Boulevard, os outdoors, os carros, as estações de rádio e os cinemas drive-in são recriados com uma precisão impressionante, capturando não apenas o visual da época, mas também seu espírito. A atenção aos detalhes que Tarantino e sua equipe de produção demonstram é impressionante, tornando o cenário quase um personagem à parte na narrativa.

O uso de câmeras antigas e filtros que remetem ao visual dos anos 60 reforça essa imersão. A cinematografia de Robert Richardson, colaborador frequente de Tarantino, é fundamental para a construção desse mundo nostálgico. A luz natural de Los Angeles, os tons quentes e o brilho suave que permeiam o filme criam uma atmosfera quase de sonho, como se estivéssemos vendo a Hollywood de 1969 através das lentes da memória. Essa ambientação é complementada pela trilha sonora recheada de hits da época, que transporta ainda mais o espectador para o contexto da história.

Leonardo DiCaprio e Brad Pitt interpretam, respectivamente, Rick Dalton, um ator em decadência, e Cliff Booth, seu dublê e melhor amigo. A relação entre os dois é o coração do filme, com Pitt e DiCaprio demonstrando uma química incrível que mantém o interesse do público mesmo em momentos em que a narrativa parece se arrastar. Rick Dalton é o retrato de um ator que vive o declínio de sua carreira com um misto de melancolia e desespero, enquanto Cliff Booth é um homem confiante e relaxado, que parece confortável em sua posição de subordinado, mas que esconde um passado sombrio.

A atuação de DiCaprio é cheia de nuances, especialmente nas cenas em que ele lida com a insegurança sobre sua relevância na indústria. Ele oferece uma performance rica em emoção, equilibrando momentos de desespero e introspecção com a habilidade cômica que o tornou famoso. Brad Pitt, por outro lado, dá vida a Cliff com um carisma despretensioso que rouba a cena em vários momentos. A combinação de sua fisicalidade e seu humor seco faz de Cliff uma das figuras mais memoráveis da filmografia recente de Tarantino. Pitt, aliás, tem uma das cenas mais intensas do filme, quando visita o rancho Spahn, local infame associado à família Manson. Essa sequência, embora lenta, é cheia de tensão e mostra a habilidade do diretor em construir suspense.

Se a estética e as performances são pontos altos, o ritmo do filme apresenta um desafio maior. Tarantino é conhecido por suas narrativas longas e diálogos afiados, mas em Era uma Vez em... Hollywood, essa abordagem resulta em uma estrutura que nem sempre flui com naturalidade. A trama é episódica, com muitas cenas que, embora visualmente interessantes e cheias de referências à cultura pop da época, parecem não contribuir para o avanço da história de maneira significativa.

Essa escolha de Tarantino para se concentrar mais na ambientação e nos personagens do que em uma trama linear pode ser frustrante para alguns espectadores. Há momentos em que o filme parece vagar sem rumo, como se estivesse mais interessado em capturar o espírito da época do que em contar uma história coesa. Embora essa abordagem seja interessante do ponto de vista artístico, ela pode fazer com que o filme pareça excessivamente longo e disperso.

Como já fez em filmes como Bastardos Inglórios, Tarantino emprega o revisionismo histórico em Era uma Vez em... Hollywood, reimaginando eventos reais para criar um final que desafia as expectativas do público. O filme culmina com uma sequência violenta e absurda que, em típico estilo tarantinesco, vira a realidade de cabeça para baixo. Ao invés de seguir os eventos trágicos que levaram à morte de Sharon Tate e seus amigos nas mãos da família Manson, Tarantino nos oferece uma espécie de catarse fictícia, onde a justiça é feita de uma maneira explosiva e exagerada.

Essa escolha pode ser polarizadora. Para alguns, o final oferece uma redenção fictícia, um "e se" que alivia o peso da tragédia que realmente ocorreu. Para outros, no entanto, pode parecer uma exploração insensível de um evento traumático da história. Margot Robbie, no papel de Sharon Tate, é subutilizada ao longo do filme, e sua presença acaba sendo mais simbólica do que narrativa. O filme a retrata como um símbolo de esperança e otimismo, mas sem nunca realmente mergulhar em sua vida ou em sua personalidade, o que é um dos aspectos mais decepcionantes do filme.

Os diálogos são um dos pontos fortes da obra de Tarantino, e aqui não é diferente. Mesmo nos momentos em que a narrativa parece estagnada, os diálogos afiados mantêm o interesse. As conversas entre Rick Dalton e Cliff Booth são cheias de humor e introspecção, explorando temas como a passagem do tempo, a amizade e a indústria do entretenimento. Os diálogos são frequentemente impregnados com referências à cultura pop da época, o que pode agradar aos fãs mais atentos, mas também pode alienar quem não está familiarizado com o contexto histórico e cultural dos anos 60.

Era uma Vez em... Hollywood é um filme que mistura nostalgia, subversão e uma dose saudável de revisionismo histórico. Tarantino celebra o cinema e a Hollywood de uma época passada com maestria técnica e atuações memoráveis, especialmente de Brad Pitt e Leonardo DiCaprio. No entanto, a estrutura episódica e o ritmo irregular podem testar a paciência de alguns espectadores, especialmente aqueles que esperam uma trama mais linear e focada.

O filme é, ao mesmo tempo, uma homenagem e uma reimaginação da era de ouro de Hollywood, e embora suas escolhas artísticas nem sempre funcionem de maneira fluida, ele ainda se destaca como uma obra visualmente deslumbrante e uma peça importante no repertório de Tarantino. Para quem aprecia o cinema como arte, Era uma Vez em... Hollywood oferece uma experiência rica e nostálgica, mesmo que seus excessos e desvios narrativos impeçam que ele alcance o status de obra-prima.

Brothers (2015)

 


Título original: Brothers
Direção: Robert Eggers
Sinopse: A história de dois irmãos, Tom e Jake, e seu relacionamento problemático.


Dirigido por Robert Eggers, conhecido por sua estética detalhista e atmosferas inquietantes, o curta-metragem Brothers (2015) explora os temas de isolamento, cumplicidade e a selvageria da natureza humana. O filme, embora curto, carrega muitos dos elementos que tornariam Eggers um diretor aclamado em produções posteriores, como A Bruxa (2015) e O Farol (2019). Em Brothers, ele já demonstra uma habilidade excepcional em criar um ambiente carregado de tensão, utilizando uma abordagem que mistura o visual sombrio e uma narrativa de ambiguidade.

O curta segue a relação entre dois irmãos que vivem isolados no campo, enfrentando os desafios da vida no interior, ao mesmo tempo em que lidam com conflitos pessoais não resolvidos. Sem muitos diálogos, o filme se apoia na construção de uma atmosfera pesada, cheia de silêncios incômodos e interações que parecem escondidas por trás de ressentimentos e segredos. Eggers, aqui, utiliza uma narrativa fragmentada, onde o espectador precisa ler nas entrelinhas e prestar atenção aos detalhes para compreender a profundidade do relacionamento entre os personagens. O isolamento físico no qual os irmãos se encontram serve como um reflexo do distanciamento emocional que permeia a história.

Um ponto interessante é a falta de uma explicação clara sobre o motivo dos conflitos entre os irmãos. Eggers não entrega respostas fáceis, o que reforça a sensação de mistério e desconforto que o filme quer transmitir. A narrativa implícita convida o público a mergulhar em uma análise mais introspectiva dos sentimentos dos personagens, sem nunca revelar totalmente suas motivações. Esse estilo de contar histórias, característico de Eggers, contribui para a complexidade emocional que marca Brothers.

O ponto mais forte de Brothers é, sem dúvida, seu uso magistral de elementos visuais e sonoros para criar uma atmosfera envolvente e inquietante. A cinematografia, feita com uma paleta de cores desbotadas e tons frios, combina perfeitamente com o cenário rural desolado, criando um ambiente de constante tensão e desconforto. A fotografia emoldura a paisagem como um personagem por si só, tornando a natureza quase um terceiro elemento na relação dos irmãos, atuando como uma força viva e opressora.

A escolha de luz natural é um recurso recorrente no filme. As cenas internas, com iluminação suave e sombras pesadas, reforçam a sensação de claustrofobia emocional, enquanto as externas destacam a vastidão e a imensidão do mundo que os circunda, aumentando a sensação de isolamento. Eggers utiliza a câmera de maneira sutil, com poucos movimentos abruptos, preferindo enquadramentos estáticos que aumentam o peso das interações entre os personagens. Essa abordagem contribui para o ritmo lento, mas proposital, do filme.

Outro aspecto técnico relevante é o som. Em Brothers, o uso do som ambiente é crucial para a construção da tensão. Os ruídos da natureza — o farfalhar das folhas, o vento batendo nas árvores, os passos silenciosos sobre a terra — são amplificados de forma a transmitir um sentimento de constante ameaça ou presença invisível. O silêncio entre as falas é igualmente importante, servindo para destacar a solidão dos personagens e a distância emocional que os separa. A ausência de uma trilha sonora tradicional também reforça o tom de naturalismo, permitindo que o ambiente sonoro dite o humor das cenas.

As atuações são minimalistas, mas potentes. Os dois protagonistas, que têm poucos diálogos, transmitem uma gama de emoções por meio de olhares, gestos e silêncios. A tensão entre os irmãos é palpável, e a maneira como os atores trabalham essa relação através de pequenas nuances ajuda a elevar o curta, mesmo com seu ritmo contemplativo e contido. A química entre os dois protagonistas é sutil, mas eficaz, sugerindo uma longa história de mágoas não verbalizadas e ressentimentos reprimidos. Embora as interações físicas sejam poucas, o subtexto emocional é constantemente presente, o que mantém o espectador atento a cada olhar e movimento.

Eggers consegue extrair dos atores performances que parecem quase arcaicas, como se os personagens existissem fora do tempo, em um universo particular que remete a tradições e rituais antigos. Isso se alinha com a estética geral do filme, que se inclina para uma atmosfera histórica, mesmo que o período exato da narrativa nunca seja claramente definido.

Brothers carrega muitos dos temas que se tornariam centrais na obra de Robert Eggers: o isolamento, o confronto entre homem e natureza, e a exploração da psique humana sob condições extremas. A dinâmica dos dois personagens remete a uma narrativa bíblica, quase como uma versão intimista de Caim e Abel, onde o conflito e a lealdade entre os irmãos se mesclam em uma linha tênue de amor e ódio.

Além disso, o curta toca em questões sobre masculinidade, legado familiar e os desafios da sobrevivência em ambientes hostis. Esses temas, combinados com a estética rural sombria, fazem de Brothers uma obra com forte identidade, mesmo que o enredo seja propositalmente vago. As influências de Eggers em filmes de terror psicológico e dramas de época são evidentes, mas ele as transforma em algo novo ao misturar elementos góticos e naturalistas.

Brothers é uma obra curta, mas intensa, que explora as profundezas emocionais e psicológicas da relação entre dois irmãos. Embora o ritmo lento e a falta de explicações explícitas possam frustrar alguns espectadores, o filme se destaca pela sua atmosfera imersiva e a direção técnica precisa de Robert Eggers. A combinação de performances sutis, uma estética visual poderosa e o uso magistral do som resultam em uma experiência envolvente, que deixa o espectador com mais perguntas do que respostas — uma marca registrada de Eggers.

O curta, apesar de suas qualidades, pode não agradar a todos devido à sua natureza contida e à falta de uma narrativa convencional. No entanto, para aqueles que apreciam um cinema mais introspectivo e atmosférico, Brothers é uma experiência recompensadora, que antecipa muitos dos elementos que Robert Eggers exploraria de forma ainda mais aprofundada em seus trabalhos futuros.

agosto 25, 2024

Love (2015)

 


Título original: Love
Direção: Gaspar Noé
Sinopse: Murphy é um americano vivendo em Paris que se envolve em um relacionamento altamente sexual e emocionalmente exigente com a instável Electra. Inconsciente do efeito sísmico que isso terá na relação, eles convidam a linda vizinha para a cama deles.


Love, de Gaspar Noé, é um dos exemplos mais deploráveis de como o cinema pode perder seu rumo em nome de um suposto “experimentalismo” que, na verdade, se revela apenas como uma desculpa para a exibição gratuita e constante de cenas de sexo explícito. Não se enganem: não estamos falando de uma obra que utiliza o erotismo como parte de uma narrativa profunda ou provocadora, mas de uma produção que abandona qualquer tentativa de contar uma história coerente, focando unicamente em explorar o aspecto carnal sem nenhum propósito maior.

Desde o início, o espectador já é forçado a confrontar uma avalanche de cenas explícitas que, por si só, ultrapassam o limite do desconforto. E, em vez de oferecer alguma forma de introspecção sobre o relacionamento ou as emoções dos personagens, o filme transforma-se em um desfile interminável de atos sexuais. Sexo por sexo, sem um pingo de narrativa que justifique a presença dessas cenas. Não há enredo, não há desenvolvimento de personagens, e muito menos um motivo claro para que essas sequências estejam ali, a não ser chocar ou “chamar atenção” de forma barata.

Noé, conhecido por seu estilo visual arrojado, desta vez parece ter perdido completamente a mão. Enquanto em outros filmes, sua direção pode até ter causado impacto por seu visual perturbador e intenso, aqui essa abordagem é simplesmente preguiçosa e ofensiva. O 3D, que teoricamente deveria proporcionar uma experiência cinematográfica mais imersiva, é ridículo e absolutamente desnecessário. Utilizado apenas para acentuar cenas já grotescas, o efeito tridimensional parece uma piada de mau gosto, forçando o espectador a uma proximidade ainda mais desconfortável com um conteúdo que não mereceria sequer estar em uma tela convencional, quanto mais em uma sala de cinema equipada com essa tecnologia. Exibir este filme em 3D é um dos maiores absurdos já cometidos no cinema.

Ao longo das excruciantes duas horas de projeção, fica claro que o diretor decidiu abandonar qualquer tentativa de trabalhar com narrativa ou profundidade emocional. O filme não tem qualquer propósito dramático, não explora temas interessantes e muito menos consegue justificar sua existência como obra cinematográfica. O que se vê é um amontoado de cenas explícitas que não levam a lugar algum e não conseguem desenvolver nenhum arco significativo. A relação entre os protagonistas, que deveria ser o núcleo emocional da história, é rasa, insuportável e se dissolve em diálogos vazios e pretensiosos.

A tentativa de Noé de criar um filme que explore os altos e baixos do amor, as complexidades das emoções humanas ou os conflitos de relacionamentos fracassa miseravelmente. Tudo o que Love consegue fazer é reduzir esses temas a um pano de fundo para cenas que beiram a pornografia. Se havia alguma intenção artística ou poética por trás dessa abordagem, ela foi completamente obscurecida pela maneira grotesca e desnecessariamente explícita com que o diretor decide representar a intimidade. E de pensar que esse conteúdo ainda conseguiu ser exibido nos cinemas... é inimaginável.

Outro ponto a ser mencionado é a ausência de uma das características mais marcantes de Gaspar Noé: sua trilha sonora. Em produções anteriores, pelo menos, suas escolhas musicais, como o uso de french house, criavam uma atmosfera que, de certo modo, suavizava o impacto das cenas mais pesadas ou conferia algum dinamismo à narrativa. Aqui, nem isso! Não há absolutamente nenhum elemento sonoro que possa ao menos resgatar um fragmento de interesse no que está sendo apresentado na tela. A ausência de uma trilha minimamente interessante ou envolvente só aumenta a sensação de tédio e revolta.

A parte técnica do filme, que normalmente salva ou melhora uma experiência ruim, é também um desastre. A cinematografia, muitas vezes elogiada nos filmes anteriores de Noé, aqui parece ser usada apenas para servir ao objetivo de transformar o filme em uma desculpa visual para a exibição de corpos em situações gráficas. O enquadramento e o uso das câmeras são tão invasivos que chega a ser repulsivo, e o que poderia ser uma exploração estética de algo profundo e significativo é reduzido a um voyeurismo grosseiro.

Não há qualquer justificativa moral, artística ou social para que Love exista da maneira como existe. O filme é simplesmente repugnante em todos os aspectos. A ideia de que foi exibido em grandes festivais de cinema e em salas comerciais chega a ser ofensiva para o público e para o cinema como arte. Trata-se de uma obra que deveria ter sido vetada, não pela sua ousadia ou por tratar de temas tabus, mas pela sua absoluta falta de conteúdo e por sua abordagem vazia e exploradora.

Gaspar Noé já nos trouxe filmes controversos, mas nenhum deles desceu a um nível tão baixo quanto Love. Aqui, a única reação possível é a de indignação: um filme que deveria ser esquecido, apagado da história do cinema. Em última análise, Love não é nada além de uma experiência repulsiva, um atentado à paciência e à inteligência do espectador, que é forçado a testemunhar um espetáculo lamentável e sem propósito algum.

agosto 24, 2024

Os Oito Odiados (2015)

 


Título original: The Hateful Eight
Direção: Quentin Tarantino
Sinopse: Durante uma nevasca, um carrasco, uma prisioneira, um caçador de recompensas e um homem que alega ser xerife buscam abrigo no Armazém da Minnie, onde quatro outros desconhecidos estão abrigados. Aos poucos, os oito viajantes no local começam a descobrir os segredos sangrentos uns dos outros, levando a um inevitável confronto entre eles.


Os Oito Odiados (The Hateful Eight), de Quentin Tarantino, é um épico western claustrofóbico e brutal que mostra a maestria do diretor ao construir tensão e narrativas densas, mesmo quando confinado a um único cenário. Este filme de 2015 é um perfeito exemplo da habilidade única de Tarantino em pegar um conjunto de personagens díspares, colocá-los em um espaço limitado e, através de diálogos intensos e reviravoltas chocantes, prender o espectador por quase três horas sem nunca perder o ritmo.

Logo de início, a atmosfera sombria do filme é intensificada pela trilha sonora magistralmente composta por Ennio Morricone, que conquistou o Oscar por seu trabalho. O veterano compositor cria uma sensação de iminente perigo e suspense, remetendo aos clássicos westerns dos anos 60, ao mesmo tempo que introduz novos tons que se alinham perfeitamente à visão moderna e irreverente de Tarantino. Desde a primeira nota, o espectador é jogado em um ambiente de tensão crescente, como se cada nota fosse um aviso do caos que está por vir. A trilha de Morricone é, sem dúvidas, uma das maiores forças do filme, funcionando quase como um personagem à parte, conduzindo emocionalmente o público através dos altos e baixos dessa narrativa.

Tarantino, conhecido por seus diálogos afiados e sua habilidade em subverter convenções, cria em Os Oito Odiados um verdadeiro estudo de personagens. A história se passa logo após a Guerra Civil Americana, em um Wyoming devastado por uma nevasca implacável. O cenário, uma cabana isolada chamada Minnie's Haberdashery, é o palco onde esses personagens se encontram, trazendo consigo uma bagagem de desconfiança, mentiras e segredos. Apesar da maior parte do filme se desenrolar dentro dessa cabana, nunca sentimos a limitação espacial. Pelo contrário, Tarantino usa o ambiente a seu favor, transformando-o em um caldeirão de tensão psicológica, com os personagens constantemente testando os limites uns dos outros.

O roteiro é uma aula de construção de tensão. Tarantino não tem pressa em revelar os mistérios por trás de cada personagem e de suas intenções. Ele permite que os diálogos fluam naturalmente, criando um ritmo que, embora deliberadamente lento em certos momentos, nunca se arrasta. Cada conversa parece ter uma camada oculta de significado, cada troca de olhares sugere traição, e o espectador é convidado a tentar decifrar as verdadeiras motivações de cada um. Essa incerteza constante mantém o filme vibrante, mesmo quando pouco parece acontecer fisicamente.

A escolha de elenco é outro ponto alto da produção. Samuel L. Jackson, em mais uma colaboração brilhante com Tarantino, entrega uma performance fascinante como Major Marquis Warren, um ex-soldado afro-americano que carrega um profundo ressentimento racial, exacerbado pelas cicatrizes da Guerra Civil. Jackson rouba a cena em vários momentos com sua habilidade de alternar entre o humor sombrio e a intensidade emocional, mantendo o público sempre alerta. Jennifer Jason Leigh também é uma força a ser reconhecida, interpretando Daisy Domergue, uma prisioneira brutal e imprevisível que se encontra no centro de toda a trama. Sua atuação é de uma ferocidade inigualável, e sua presença caótica eleva a tensão da história a níveis insuportáveis.

O visual de Os Oito Odiados é outro aspecto que merece destaque. Filmado em 70mm, o formato clássico utilizado em épicos, Tarantino contrasta a vastidão das paisagens cobertas de neve com a opressão sufocante do espaço interno da cabana. Mesmo com a maior parte do filme acontecendo em um único ambiente, o diretor e seu diretor de fotografia, Robert Richardson, conseguem criar uma sensação de grandeza épica. O enquadramento cuidadoso e os movimentos precisos de câmera tornam cada cena um deleite visual, enquanto as cores ricas e sombrias adicionam camadas de peso emocional ao que está em jogo.

Outro aspecto interessante é a maneira como o filme, apesar de sua brutalidade, consegue balancear momentos de humor negro. Tarantino sempre teve uma afinidade especial com diálogos carregados de ironia, e aqui ele mais uma vez mostra sua habilidade em fazer o espectador rir e, ao mesmo tempo, sentir-se desconfortável com o que está acontecendo na tela. Esse equilíbrio entre violência e comédia é algo que poucos diretores conseguem dominar tão bem quanto ele.

A estrutura do filme, dividida em capítulos, reforça a sensação de que estamos lendo um romance, onde cada parte revela uma nova camada de complexidade. O ritmo implacável e as reviravoltas constantes, especialmente no terceiro ato, fazem com que o espectador seja continuamente surpreendido. O desfecho, como em muitas obras de Tarantino, é uma explosão de violência catártica que, embora chocante, parece inevitável, dada a intensidade acumulada ao longo da trama.

Os Oito Odiados é, sem dúvidas, uma das obras mais ousadas e originais de Quentin Tarantino. É um filme que requer paciência, mas recompensa o espectador com um estudo profundo sobre a natureza humana, cheio de traições, preconceitos e desejos ocultos. Com uma trilha sonora impecável de Ennio Morricone, atuações poderosas e uma direção imaculada, Tarantino prova mais uma vez que é um mestre em criar tensão e narrativa, até mesmo em espaços confinados.