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dezembro 07, 2025

Belén: Uma História de Injustiça (2025)

 


Título original: Belén
Direção: Dolores Fonzi
Sinopse: No conservador norte da Argentina, Julieta é acusada de infanticídio após uma emergência médica. Correndo o risco de ser presa por um crime que não cometeu, sua única esperança é Soledad, advogada destemida que arrisca tudo para defendê-la. Juntas, elas transformam uma batalha judicial num movimento por justiça, solidariedade e direitos das mulheres.


Dolores Fonzi assina com Belén: Uma História de Injustiça um filme que quer ser ao mesmo tempo denúncia, reconstrução jornalística e litígio dramático — uma tentativa óbvia e admirável de transformar um caso real doloroso em narrativa cinematográfica capaz de emocionar e mobilizar. A partir de uma história já conhecida na Argentina — o episódio que abalou Tucumán, quando uma jovem foi acusada após um aborto espontâneo — Fonzi escolhe o ponto de vista da defesa para construir um thriller jurídico de tom militante, encenando o choque entre um sistema punitivo e corpos que exigem empatia. 

A direção de Fonzi revela uma sensibilidade por planos que buscam proximidade com a intimidade das personagens, mas que muitas vezes caem perto do teleobjetivo moralizante. Há, no melhor do filme, sequências de hospital e prisão filmadas com uma frieza clínica que devolve ao espectador a sensação de claustro e de exposição: corredores iluminados por fluorescentes, closes que não perdoam, e uma mise-en-scène que transforma instituições em espaços de vigilância. Esses momentos funcionam porque a câmera se mantém contida, registra o rosto, a respiração, o gesto mínimo — decisões formais que humanizam e evitam o panfletar óbvio. Ao mesmo tempo, quando o filme tenta se ampliar — em discursos públicos, montagens de protesto ou longos interrogatórios midiáticos —, a direção prefere a contundência explícita. O resultado é fraturado: há cenas de grande impacto sensorial e outras onde a intenção política sufoca a narrativa. 

No centro da peça está a protagonista que dá nome ao filme e, sobretudo, a figura da advogada que assume a luta. Fonzi, além de dirigir, interpreta a defensora — e é aqui que o filme ganha e perde. Sua atuação tem momentos de forte presença dramática: olhar determinado, retórica afiada, pequenas fragilidades íntimas que humanizam a militância. Em paralelo, a jovem interpretada por Camila Pláate constrói um personagem de grande economia expressiva — um rosto marcado pela dor e pela confusão, cujo silêncio muitas vezes comunica mais do que qualquer monólogo. A química entre as duas sustenta boa parte do filme e foi justamente reconhecida no circuito de festivais, com destaque para prêmios de atuação que chegaram a acompanhar a produção.

Tecnicamente, Belén é bem resolvido em pontos-chave: a fotografia tende para um naturalismo sombrio que acentua a austeridade do norte argentino, evitando o realismo social glamurizado; a edição busca um ritmo judicial — cortes secos em audiências, respirações mais alongadas nas células e encontros íntimos que deixam o espaço para a interpretação — e a trilha sonora aparece como elemento de tensão mais do que de preenchimento melodramático. Mas é justamente na escrita dramática que o filme oscila. O roteiro, colaborativo e baseado em material jornalístico, alterna sequências de investigação perspicazes com cenas de exposição didática que empobrecem o conflito. Em determinados trechos, o movimento narrativo prefere explicar ao invés de mostrar, e então perde a oportunidade de construir ambivalência: personagens secundários viram arquétipos, e nuances de contexto político são reduzidas a slogans. 

A força política de Belén é inegável e faz parte do mérito do filme: ele recupera um caso que se tornou símbolo da luta pelos direitos reprodutivos e o apresenta como exemplo das contradições de um país que viveu retrocessos e avanços decisivos nos últimos anos. É legítimo — e necessário — que o cinema se envolva com esse tipo de tema. Todavia, o equilíbrio entre militância e dramaturgia não é sempre alcançado. Quando o filme opta pelo tom de proclamação pública, perde o risco narrativo que torna dramas judiciais realmente memoráveis: a dúvida, a complexidade moral, a falha do sistema mostrada sem folclorizar suas vítimas. Em outras palavras, Fonzi prefere denunciar com clareza a manipulação institucional do que explorar as zonas cinzentas onde muitas decisões humanas efetivamente residem. 

Outro ponto ambivalente é o tratamento do poder midiático e do espetáculo do processo: cenas que mostram a cobertura jornalística e o tribunal público têm impacto imediato, mas por vezes caem em um tom exemplificativo — a montagem indica a intenção de provocar indignação sem necessariamente oferecer novos ângulos de reflexão sobre a responsabilidade coletiva. A construção do antagonista institucional é eficaz como símbolo, porém pouco inventiva dramaticamente; faltam camadas que expliquem, por exemplo, por que certos agentes se comportam como agem, além de simplesmente serem postos como representantes do conservadorismo. Ainda assim, a maneira como o longa mobiliza a comunidade e mostra redes de solidariedade é comovente e encontra na dramaturgia judicial momentos de tensão legítima: audiências bem coreografadas, depoimentos que despejam humanidade, e pequenas vitórias simbólicas que servem de catálise emocional. 

No campo do impacto estético, Belén acerta ao manter a austeridade e ao evitar excessos formais — não há estilização gratuita nem efeitos de assinatura que distraiam da matéria humana. A câmera de Javier Juliá confere uma textura sóbria que ajuda a sustentar a verossimilhança do universo representado. Por outro lado, dificilmente o longa será lembrado por um virtuosismo plástico ou por reviravoltas narrativas inventivas; seu triunfo reside mais no recorte temático e na coragem de reencenar uma ferida nacional do que em soluções cinematográficas inéditas. 

Em síntese, Belén: Uma História de Injustiça é um filme necessário e incompleto. Necessário porque recupera e catalisa um debate público que ainda reverbera; incompleto porque, nessa tradução do real para a ficção, Fonzi opta diversas vezes pela clareza retórica em detrimento da complexidade dramática. A obra comete o pecado — compreensível e comum no cinema de denúncia — de, às vezes, ensinar o que poderia mostrar; ainda assim, quando acerta, alcança a garganta: há sequências cujo desconforto político se converte em puro e eficiente cinema. Não é um filme perfeito, mas tampouco é indiferente; é um filme que empurra o espectador para a indignação com ferramentas cinematográficas na maioria das vezes honestas. E, em tempos em que a memória e a justiça parecem disputadas nas ruas e nos tribunais, essa honestidade já tem um valor inestimável. 

Por fim, fica a sensação de um projeto com ambição legítima e execução desigual: Belén desperta empatia e reforça lutas, mas peca por vezes pelo excesso de zelo argumentativo. É um filme que se recomenda por compromisso ético e por atuações que, mesmo enclausuradas por um roteiro hesitante, atingem o que importa — a verdade humana por trás da manchete. E essa verdade, quando bem filmada, nunca é pouca coisa. 

dezembro 06, 2025

Uma Sexta-Feira Mais Louca Ainda (2025)

 


Título original: Freakier Friday
Direção: Nisha Ganatra
Sinopse: A história continua anos depois de Tess e Anna passarem por uma crise de identidade. Agora, Anna é mãe e tem uma futura enteada, enfrentando os desafios de unir duas famílias. No entanto, Tess e Anna logo descobrem que, sim, um raio pode cair duas vezes no mesmo lugar.


Uma Sexta-Feira Mais Louca Ainda surge como um produto que acredita demais na força da nostalgia e de menos na inteligência do próprio público. Dirigido por Nisha Ganatra, o filme tenta atualizar o espírito de Sexta-Feira Muito Louca para uma nova geração, mas acaba entregando algo estranho: uma continuação inchada, excessivamente infantil e surpreendentemente confusa, mesmo dentro de uma proposta que nunca exigiu rigor narrativo absoluto.

Há, logo de saída, um problema conceitual difícil de ignorar. O filme amplia a famosa troca de corpos para um jogo envolvendo quatro personagens, numa tentativa clara de “escalar” a ideia original. Em tese, isso poderia abrir espaço para uma reflexão mais rica sobre identidade, diferença geracional e empatia. Na prática, o que se vê é um emaranhado de situações mal explicadas e personagens pouco desenvolvidos, que tornam a experiência mais cansativa do que divertida. Durante longos minutos, é genuinamente difícil saber quem está onde — não por sofisticação narrativa, mas por falta de clareza dramática.

A direção de Ganatra demonstra preocupação em manter tudo colorido, movimentado e palatável, mas raramente consegue organizar o caos que o próprio filme cria. A encenação prefere a hiperatividade ao ritmo, apostando em exageros cômicos constantes como se tivesse medo do silêncio ou da pausa. O resultado é um filme que nunca respira, nunca amadurece e nunca confia que uma cena possa funcionar sem sublinhar sua piada três vezes seguidas.

É aqui que o elenco principal entra — e, paradoxalmente, se torna o maior lembrete do desperdício envolvido. Lindsay Lohan e Jamie Lee Curtis estão costumeiramente bem aqui, com energia, entrega e um entendimento claro do jogo cômico que essas personagens exigem. É evidente que ambas sabem exatamente o que estão fazendo em cena. Ainda assim, mesmo elas não conseguem salvar um filme tão ruim com um roteiro tão infantil. Falta material. Falta conflito real. Falta inteligência na construção das situações.

O contraste com o filme de 2003 é inevitável — e cruel. Enquanto Sexta-Feira Muito Louca se apoiava em uma astúcia inesperada, misturando humor físico com observações sinceras sobre relações familiares, esta continuação parece interessada apenas em multiplicar gags e situações constrangedoras. Tudo é mais barulhento, mais literal e mais raso. Não há sutileza, não há ironia, não há aquele mínimo de cumplicidade com o espectador que permite que uma comédia familiar funcione em mais de um nível.

As personagens mais jovens sofrem especialmente com esse tratamento. Reduzidas a tipos genéricos, elas existem mais como ferramentas para a confusão da troca de corpos do que como indivíduos com vontades, medos ou contradições. Isso torna o jogo de interpretações ainda mais problemático: sem personalidade bem definida, a troca não revela nada novo sobre ninguém. Apenas repete tiques, caretas e falas didáticas que explicam o que o filme não consegue mostrar.

O tom geral flerta constantemente com o ridículo — e, em vários momentos, atravessa essa linha sem cerimônia. Situações que poderiam ser engraçadas ou emocionalmente eficazes se transformam em números constrangedores, sustentados por um humor que parece subestimar o público o tempo todo. É um filme Disney no pior sentido da frase: excessivamente higienizado, com conflitos diluídos, emoções plastificadas e uma sensação constante de que tudo precisa ser simplificado até o limite do suportável.

Há, claro, pequenos momentos de nostalgia que funcionam quase à revelia do resto do filme. Ver Lohan e Curtis contracenando novamente provoca um afeto automático, uma memória afetiva que o longa explora sem pudor. Mas esse afeto não sustenta uma obra inteira. Quando a nostalgia vira muleta, ela escancara ainda mais a fragilidade do presente.

O maior problema de Uma Sexta-Feira Mais Louca Ainda é sua covardia criativa. Ao invés de repensar o conceito, aprofundar conflitos ou aceitar algum nível de amadurecimento — tanto dos personagens quanto do público que cresceu com o original — o filme opta pelo caminho mais seguro possível. Tudo aqui é desenhado para não incomodar, não desafiar e não exigir nada além de atenção passiva. O resultado é um filme esquecível, que se esgota enquanto acontece.

No fim, fica a sensação de um projeto que confunde escala com impacto e barulho com humor. É uma continuação que existe mais por oportunismo do que por necessidade artística, e que trata uma ideia naturalmente rica como se fosse apenas um brinquedo a ser sacudido até perder o sentido. O filme tenta ser mais louco, mais energético e mais expansivo — mas acaba apenas mais vazio.

dezembro 05, 2025

Vingança no Deserto (2024)

 


Título original: Run!
Direção: Bill Brennenstuhl, Paul Stenerson
Sinopse: Em uma perseguição no deserto, um marido procura pistas para encontrar sua esposa sequestrada, enquanto é perseguido por um louco mascarado, um atirador letal e um motorista de caminhão ameaçador. Em meio ao caos, um drone, controlado pelo orquestrador deste jogo mortal, observa cada movimento deles.


Vingança no Deserto (Run!, 2024), de Bill Brennenstuhl e Paul Stenerson, chega com a premissa prometida nas sinopses: um casal, durante a renovação de votos em uma cidade do deserto, se vê enredado num jogo mortal de amor e vingança cujo operador observa tudo por meio de um drone. A ideia, simples e potencialmente eficiente para um suspense, é minimizada desde os primeiros minutos por uma direção que oscila entre a pequenez e a dourada pretensão. A concepção de ambiente — o calor escaldante do deserto, o céu cortante, a vastidão que deveria ser personagem — é, em tese, o terreno ideal para um thriller de sobrevivência; na prática, o filme parece insistir em adjetivações estéticas que não se transformam em tensão orgânica. 

O problema central de Vingança no Deserto é estrutural, e deriva de escolhas que se apresentam mais como artifícios do que como soluções dramáticas. O roteiro tenta costurar uma série de microsustos e reviravoltas ligadas a perseguições — um mascarado, um atirador, um caminhoneiro ameaçador — e a presença quase onipresente de um drone que vigia a ação. Mas essas peças nunca se encaixam numa engrenagem convincente: faltam motivos sólidos para a escalada do jogo, falta empatia e, sobretudo, falta um pulso autoral que ordene as partes soltas. A impressão, em vários momentos, é a de que se assiste a um exercício de estilo fragmentado; uma ideia que poderia ser tautológica torna-se dispersa e, por vezes, infantil na sua construção. 

Não é exagero dizer que Vingança no Deserto às vezes parece um filme mal feito de ensino médio. A frase soa dura, mas existe aqui uma combinação de orçamento enxuto, escolhas de encenação convencionais e interpretações que raramente convencem — resultado que coloca o espectador numa posição de distância irônica em relação ao material. A direção, que poderia ter se apoiado na precisão do mínimo — enquadramentos mais contidos, montagem que privilegiasse a progressão em vez da colagem — prefere efeitos narrativos mais barulhentos e pouco polidos. Essa opção transforma momentos que poderiam ter alguma solenidade dramática em pequenos dramas de cartolina. 

A fotografia merece menção porque tenta, sem lograr sucesso, imprimir identidade ao filme. Em vez de coesão, vemos uma fotografia estranhíssima — saturações estranhas, contrastes que ora esforçam-se para serem hiperbólicos, ora parecem acidentes de iluminação. Não há força lírica na escolha cromática; há desconforto. A edição, por sua vez, contribui para a confusão: cortes abruptos, passes temporais mal sinalizados e uma montagem não ritmada que impede o surgimento de uma escalada de suspense orgânica. Em certos trechos o filme se coloca como se fosse um Jogos Mortais, só que bem ruim, misturado com um ar de Tarantino; a intenção de fragmentar e surpreender acaba soando, no entanto, como imitação pouco crítica de referências reconhecíveis — e a comparação com obras maiores só ressalta a pobreza dos resultados.

A trilha sonora, que poderia ter sido um aliado — por exemplo, contrapondo o silêncio do deserto a texturas sonoras incômodas — atua, com frequência, como elemento intrusivo. Dá para afirmar sem rodeios que há uma trilha que polui os ouvidos: mixagens que colocam música em primeiro plano quando o filme precisa de silêncio, efeitos sonoros exagerados que buscam chocar em vez de compor, e escolhas temáticas que muitas vezes soam deslocadas em relação ao que está em cena. Em vez de sustentar atmosferas, a música parece frequentemente mascarar a incapacidade da cena de falar por si mesma.

Sobre as atuações: são, em sua maioria, dramáticas demais quando deveriam ser sutis, e excessivamente contidas quando a cena pede entrega física. Há momentos de histrionismo gratuito, olhares que tentam “dizer” emoção sem trabalho interpretativo por trás, e passagens em que a falta de química entre os atores deixa diálogos mecânicos. Em suma: atuações horrendas — não apenas falhas pontuais, mas um conjunto que fragiliza qualquer tentativa de envolvimento emocional do público. 

Tecnicamente, há acertos pontuais — a paisagem do deserto ainda funciona como cenário, alguns planos abertos são esteticamente agradáveis e a ideia de um antagonista que joga com tecnologia (o drone) tem potencial simbólico interessante. No entanto, esses lampejos não compensam a sensação de amadorismo em áreas cruciais: direção de atores, ritmo dramático e construção de cenas de suspense. A tentativa de fundir subgêneros — slasher, suspense rural, pastiche neo-exploracionista — desemboca numa espécie de colagem inconsistente. 

No fim das contas, Vingança no Deserto é um filme que promete agressividade e tensão, mas entrega dispersão e ruído. Há uma aspiração de ser brutal e inteligente, mas o caminho escolhido — imitações mal costuradas, trilha invasiva, montagem que não ajuda a narrativa — transforma a experiência em algo mais próximo do constrangedor do que do perturbador. Para quem busca um filme que trabalhe o deserto como território de uma prova moral e física, a frustração provável será grande. Para quem aceita pequenas doses de diversão involuntária, talvez haja entretenimento — mas não era esse o objetivo que o material parecia apontar desde a sua premissa. 

Fecho com um pensamento incisivo: há sempre um espaço no cinema para filmes de baixo orçamento e para tentativas ousadas, mas ousadia sem clareza de propósito vira ruído. Vingança no Deserto prefere gritar citações estilísticas a construir um universo próprio; o resultado é um filme que, na ânsia de impressionar, acaba por revelar suas costuras — e a costura, quando aparece demais, não deixa o tecido do filme segurar. Se o deserto é metáfora de prova, aqui ele apenas reflete a aridez das intenções.

dezembro 03, 2025

O Bom Bandido (2025)

 


Título original: Roofman
Direção: Derek Cianfrance
Sinopse: Um criminoso carismático, durante sua fuga da polícia, assume uma nova identidade e se esconde em uma loja de brinquedos. Lá, se envolve com uma funcionária e inicia um romance inesperado. Mas quando seu passado ameaça vir à tona, os dois se veem diante de escolhas que podem mudar o destino de suas vidas para sempre.


O Bom Bandido é um filme que joga com contradições desde o primeiro enquadramento: dirigindo um material que poderia facilmente escorregar para o folclore sensacionalista, Derek Cianfrance opta por uma abordagem que tenta (nem sempre com sucesso) equilibrar o tom de comédia inusitada com uma melancolia moral característica de sua filmografia. A história, baseada na vida real de Jeffrey Manchester — o “Roofman” que, nos anos 1990 e começo dos 2000, roubava franquias de fast food entrando pelo teto e que, após uma fuga, viveu escondido dentro de um Toys "R" Us enquanto começava um relacionamento com uma mulher da comunidade local — fornece ao filme um material incrivelmente estranho e, ao mesmo tempo, ternamente humano. Cianfrance e Kirt Gunn assinam o roteiro, e a sensação de que estamos vendo uma dramatização que respeita a verdade emocional mais do que a literal surge desde cedo. 

Channing Tatum assume o papel central de Jeffrey Manchester e constrói uma interpretação curiosa: distante das performances musculares e físicas com as quais o ator muitas vezes foi associado, aqui Tatum mostra um tipo de fragilidade charmosa — um homem que sobreviveu ao sistema militar e à falha do mercado de trabalho, mas que escolheu caminhos torcidos por desespero e um anseio infantil por pertencimento. Ao seu redor, Kirsten Dunst compõe uma Leigh complexa, carregada de ternura e resolução prática, dando ao filme o eixo emocional que impede que a bizarrice do enredo vire mera excentricidade. LaKeith Stanfield, Peter Dinklage, Ben Mendelsohn e um elenco de apoio robusto acrescentam camadas que variam entre o cômico e o ameaçador; é notável como Cianfrance confia na interpretação para modular o ritmo emocional do longa. 

Tecnicamente, O Bom Bandido é um trabalho que merece ser observado com atenção. A escolha de Andrij Parekh de filmar em 35 mm devolve textura e calor a cenas que, narrativamente, seriam fáceis de dessensibilizar por uma estética hiperlímpida; há um granulado que casa bem com a natureza “de segunda mão” do cotidiano do protagonista — roupas, brinquedos, vitrines e ar condicionado de shopping — e que ajuda a naturalizar o absurdo (um homem vivendo entre prateleiras e arcos coloridos). A fotografia privilegia planos médios que deixam a contensão dramática respirar, e alguns momentos de câmera mais móvel lembram a aproximação íntima de Cianfrance a personagens que sofrem por escolhas emocionais pesadas. A edição de Jim Helton (com Ron Patane creditado) busca um compasso que alterna silêncio e leveza, mas em alguns trechos o filme se alonga em digressões que poderiam ter sido mais enxutas; a construção rítmica, então, se torna uma escolha estética ambivalente — às vezes enriquecedora, às vezes redundante. 

A trilha sonora de Christopher Bear merece um parágrafo à parte: longe de ser apenas música de preenchimento, o score sublinha a estranheza afetiva do filme — piadas surreais e gestos de generosidade criminosa são tratados com um colchão sonoro que alterna inocência e fissura. Não se trata de transformar o protagonista em herói romântico, mas de sugerir que a miscelânea de ternura e delito que o percorre é emocionalmente verdadeira e complexa. Em termos de som e design sonoro, o filme privilegia ruídos quase domésticos (o click de câmeras, o zunido de neon, o som das prateleiras), como se todo o universo em cena existisse num microcosmo de segunda mão e pequenas faltas. 

Narrativamente o filme transita entre gêneros: há o thriller de fuga, o estudo de personagem e a comédia romântica deslocada. Essa policromia é ao mesmo tempo sua força e sua fraqueza. Quando o filme decide abraçar a doçura bizarra do enredo — um homem que rouba com gentileza, tranca funcionários no freezer colocando um casaco neles, depois vive à base de M&Ms na noite entre araras de brinquedos — a leveza funciona e gera momentos de humor negro e ternura verdadeiramente memoráveis; quando tenta aprofundar questões sociais ou dar contornos morais mais ásperos ao personagem, a dramaturgia perde alguma contundência, preferindo a empatia estética ao incômodo crítico. Isso é, em boa medida, um traço que dialoga com o estilo de Cianfrance: a inclinação para o afeto que humaniza, às vezes em detrimento de uma crítica social mais incisiva. 

O filme também levanta questões éticas sobre como adaptar uma história real que envolve vítimas, uma comunidade e um homem que ainda cumpre pena. Cianfrance opta por incluir pessoas reais em pequenas aparições no elenco e por consultar diretamente protagonistas da história, o que confere autenticidade e, em certa medida, legitima o tom compassivo escolhido. Ainda assim, há uma sensação de filme “amigável” demais: a bizarrice e o crime são frequentemente amortecidos pela comicidade afetiva, e isso pode incomodar espectadores que esperam um exame mais duro das consequências das ações do protagonista. A discussão sobre empatia sem anistia — como olhar um criminoso e não perdoar automaticamente — é algo que o filme toca, mas não explora até suas arestas mais cortantes. 

No balanço final, O Bom Bandido não é um regresso absoluto ao território sombrio dos filmes anteriores de Cianfrance, nem um exercício puramente comercial; é um filme de meio-termo emocional e formal — ganha pela solidez do elenco, pela textura cinematográfica e por momentos de rara doçura excentrizada, perde quando prefere a ternura a uma investigação moral mais crua. Para espectadores que aceitam a mistura de riso e pena, o longa entrega uma experiência comovente e estranhamente cativante; para os que procuram uma dissecação mais implacável do que leva alguém a cruzar linhas tão perigosas, a sensação será de oportunidade perdida. Em sua melhor hora, o filme transforma um caso bizarro em reflexão sobre família, desamparo e o modo como a bondade pode conviver com a transgressão — não como desculpa, mas como enigma. E esse enigma, interpretado com vulnerabilidade por Tatum e ancorado por Dunst e um elenco afiado, é provavelmente o que ficará na memória muito tempo depois das luzes se apagarem.

novembro 30, 2025

O Beijo da Mulher Aranha (2025)

 


Título original: Kiss of the Spider Woman
Direção: Bill Condon
Sinopse: Para sobreviver ao confinamento e à tortura, Molina usa a imaginação para contar a história de um musical hollywoodiano que o fascina. Ele narra a história de um personagem, a Mulher-Aranha, que mata suas vítimas com um beijo, o que se mistura com a realidade da prisão.


O Beijo da Mulher Aranha de Bill Condon chega à tela com ambição evidente: transformar o clássico literário de Manuel Puig — já revisitado pelo cinema e pelo teatro — em um musical de estúdio que tenta conciliar o áspero do drama carcerário com o verniz luxuoso do technicolor e das grandes divas hollywoodianas. A escolha de Bill Condon como autor de roteiro e direção tinha tudo para ser um acerto: cineasta com trânsito entre o melodrama clássico e a mise-en-scène funcional, ele parte da versão musical de 1992 para reinventar o filme-dentro-do-filme como ilha de fantasia e como contraponto político às cenas de cela. Essa decisão formal funciona às vezes como motor dramático — e outras tantas como artifício que distancia o espectador do núcleo humano que deveria comover. 

O elenco é, em teoria, o ponto mais atraente da proposta. Jennifer Lopez ocupa a sala de espelhos do filme: é a voz e a presença da diva Aurora/Ingrid/Mulher Aranha, uma figura que encarna tanto o ideal romântico quanto o fascínio letal que ronda Molina (Tonatiuh Elizarraraz). Diego Luna interpreta Valentín, o militante, e Tonatiuh dá corpo e canto a Molina, o prisioneiro que usa histórias e canções como escudo. Em cena, Lopez tem momentos de brilho genuíno — sabe mover-se sob os refletores com uma presença de palco inegável —, mas o seu estrelismo acaba por expor as fragilidades do conjunto: há cenas onde a encenação musical se impõe em detrimento da densidade psicológica da relação entre os dois homens. 

Tecnicamente, o filme tem acertos e deslizes. A fotografia de Tobias A. Schliessler é escorreita, faz bom uso de paletas contrastantes entre o escuro das celas e os dourados das sequências fantásticas, e em alguns momentos usa um enquadramento clássico que remete às grandes produções de estúdio — planos-contraplano longos que privilegiam a performance. A montagem de Brian A. Kates, no entanto, decide por uma dicotomia de ritmos que nem sempre se completa: as cenas musicais são, muitas vezes, longas demais para a intensidade emocional real que carregam, enquanto as passagens do drama realista perdem oxigenação pela construção expositiva. A mistura de formatos — mudança de aspecto para separar realidade e fantasia — é uma ideia visual interessante e mostra cuidado estético, mas não salva a sensação de que o filme teme, por vezes, sacrificar o íntimo em nome do espetáculo. 

A trilha sonora caminha no fio entre o repertório de Kander & Ebb e novas inserções compostas para a tela. Há momentos onde as canções funcionam como catapulta emocional — quando Molina canta sua versão idealizada do mundo do cinema, a música abre um espaço onírico que contrasta com a brutalidade exterior. Mas a concretização cinematográfica dessas passagens tem um problema: Condon privilegia a reprodução de grandes números com enquadramentos e coreografias que remetem ao musical clássico, e menos à subversão necessária para que a fantasia se integre organicamente ao universo carcerário. Assim, por mais que existam números tecnicamente bem resolvidos e que Lopez, vocalmente, imponha autoridade, a sensação final é de espetáculo parcialmente deslocado. 

No que toca ao trabalho de atores, Tonatiuh (Molina) é o que mais convence na tentativa de traduzir fragilidade e artifício ao mesmo tempo: seu Molina é astuto, vulnerável e, quando necessário, teatral — sem que isso signifique caricatura. Diego Luna traz a dureza necessária para Valentín, mas o roteiro nem sempre lhe concede camadas suficientes para que a transformação do militante pela convivência emocional se torne impossível de contestar. Jennifer Lopez, por mais que transborde uma atuação de diva, fica refém de um planejamento de cena que prefere o esplendor à penetração psicológica. O filme parece dividido entre reverência à figura icônica da Mulher Aranha e um desejo legítimo de explorar as implicações políticas e afetivas daquele encontro entre um homem político e um homem quebrado por uma sociedade que não aceita sua sexualidade. 

Em matéria de direção de arte e figurino, há uma certa vitória: a recriação dos números musicais — quando pensados como pequenos filmes dentro do filme — tem detalhes deliciosos (luz, maquiagem, cenografia em pequenos apêndices que lembram estúdios da era de ouro). Mas essa beleza pictórica acaba reforçando um efeito colateral: os itens de produção muitas vezes chamam mais atenção do que o núcleo dramático. Ou seja, O Beijo da Mulher Aranha se apresenta como um objeto de muito bom gosto plástico que, paradoxalmente, empobrece o que deveria ser o centro: a relação entre Molina e Valentín e o claro comentário sobre repressão, traição e sobrevivência emocional em tempos de violência política. 

Condon tenta um equilíbrio entre nostalgia e reescrita contemporânea — o que é louvável —, mas a aposta em longos números e numa estética clássica se choca com a urgência do tema. Há sequências onde a tensão política aparece de forma crua e eficaz (tortura, interrogatório, o silêncio dos companheiros), e quando isso acontece o filme acerta em cheio; porém, essas instâncias são intercaladas por interlúdios que soam como homenagens descontextualizadas ao musical de estúdio, distanciando o público do sofrimento narrado. A consequência é que o filme não consegue gerar a empatia necessária para que a virada emocional entre os personagens funcione com a contundência que o material original pede.

No plano discursivo, o filme tenta reafirmar a importância da história queer e latino-americana que Puig escreveu — e há mérito no esforço de reafirmar essas raízes no cinema moderno. Ainda assim, a adaptação padece de uma insegurança de tom: ora quer ser um veículo de estrela, ora um filme político, e quando tenta ser ambos simultaneamente perde coesão. O resultado é um híbrido que, embora admirável em ambição e em vários momentos técnicos, não convence plenamente como peça única e autônoma de cinema. 

Por fim, é preciso reconhecer o risco autoral de revisitar um texto tão carregado de história e expectativa. Condon faz escolhas viscerais — e algumas rendem imagens e performances bonitas —, mas essas escolhas não se somam de maneira suficiente a ponto de transformar o filme numa experiência emocionalmente vibrante e inevitável. O Beijo da Mulher Aranha é, portanto, uma obra cujo valor técnico e momentâneo está claro, mas cuja promessa dramática não se cumpre por inteiro: sobra beleza e falta, em resistidas fatias, profundidade. Para quem busca uma reinvenção do musical que dialogue forte com a urgência política do material, o filme oferece instantes memoráveis, porém não o salto integral que o tema e a história mereciam.

Hereditário (2018)

 


Título original: Hereditary
Direção: Ari Aster
Sinopse: Após a morte da reclusa avó, a família Graham começa a desvendar algumas coisas. Mesmo após a partida da matriarca, ela permanece como se fosse uma sombra sobre a família, especialmente sobre a solitária neta adolescente, Charlie, por quem ela sempre manteve uma fascinação não usual. Com um crescente terror tomando conta da casa, a família explora lugares mais escuros para escapar do infeliz destino que herdaram.


Não há nada de positivo em Hereditário. Não há. O filme de Ari Aster se vende como uma grande obra de terror psicológico, mas, ao fim, tudo o que restou para mim foi tédio mal disfarçado e uma sensação de déjà-vu de todas as tentativas cinematográficas recentes de transformar mitologia sobrenatural em grande teatro familiar. O roteiro se esconde atrás de artifícios — culto, invocação demoníaca, rituais — como se jogar ingredientes clássicos do gênero numa tigela já bastasse para produzir medo verdadeiro. Aster escolhe o caminho óbvio: encenar o sobrenatural como destino inexorável e, com isso, perder qualquer interesse em verdade emocional ou coerência interna. 

Mais uma vez um filme de terror com coisas sobrenaturais, isso me cansa. Como não acredito em nada dessas coisas, passei o filme todo dando risada. Essa é a honestidade necessária: se a base do seu medo é uma mitologia que você já considera pueril, todo o aparato visual e sonoro vira apenas espetáculo vazio. Hereditário depende de sustos tectônicos — gritos, cortes bruscos, composição de quadro que quer impressionar — mas não constrói uma escada dramática que justifique o clímax. A estética é meticulosa — a casa como diorama, os enquadramentos que lembram uma casa de bonecas — mas isso vira decoração sobrecozida quando não há uma sustentação íntima que faça essas escolhas terem peso narrativo real. 

A montagem e a trilha sonora servem mais como muletas do que como ferramentas expressivas. Jennifer Lame (edição) e Colin Stetson (música) são nomes que, isoladamente, poderiam somar sensações incômodas; aqui, contudo, a montagem arrasta e a música tenta preencher lacunas narrativas, dispensando a construção de tensão orgânica — tudo muito performático, pouco consequente. O filme se proclama sobre “herança” e trauma familiar, mas trata essas ideias como pretexto para conduzir o roteiro na direção do folclore ocultista, sacrificando psicologia por espetáculo. 

A atuação de Toni Collette recebe elogios por parte da crítica mainstream, e há quem defenda Hereditário como um novo clássico contemporâneo; não sou desse time. Para mim, o tom geral do filme é histriônico: personagens que sobem e descem num registro emocional pensado mais para o close-up sensacionalista do que para a verdade de uma família arruinada. As reviravoltas finais — que giram em torno da figura de Paimon e da lógica do culto — parecem mais uma solução de roteiro pronta do que a conclusão necessária de uma narrativa bem traçada. Se a intenção era mesclar luto e possessão, falha: o luto vira apenas cenário para o demônio, e a possessão, por sua vez, vira justificativa para golpes fáceis de choque. 

A única coisa que causa terror é a feiura colossal da atriz que interpreta Charlie (Milly Shapiro). É horrenda. No início até achei que fosse maquiagem, mas quando pesquisei e vi que realmente a menina era assim na vida real, fiquei realmente enojado de ter que vê-la e bem feliz por ela ter morrido cedo no filme. Além de feia, a personagem é terrivelmente insuportável. Essa ideia é deliberada e calculada pelo filme: transformar uma criança estranha numa chave para o desconforto do espectador. Mas a escolha não é artística, é provocação barata. Atacar a aparência de um ator não costuma ser produtivo numa análise técnica, mas no caso específico — em que o filme aposta no desconforto físico e na repulsa visual como atalho para o horror — não há como não denunciar a perversidade dessa aposta. 

Tecnicamente, há competência: a direção de fotografia busca composições que prendem o olhar, a construção de produção investe na ambientação opressiva e a atuação em cenas isoladas (alguns momentos de Toni Collette, por exemplo) chegam a cortar pela intensidade. Mas tudo isso é usado para mascarar uma pobreza de ideias: quando a técnica funciona apenas para chocar e não para aprofundar, perde o propósito. A crítica que reverenciou o filme por vezes confundiu brutalidade com profundidade; há distância entre causar náusea e provocar reflexão. Hereditário escolhe a náusea e chama de arte. 

No desfecho, Ari Aster opta por fechar as pontas com a liturgia do ocultismo — um final que alguns interpretam como “feliz” para o culto interno da história, mas que para mim é apenas a consagração de um filme que prefere fechar seu universo num círculo de conveniências mitológicas do que explicar ou dialogar com o humano que prometeu investigar. Dizer que o filme é “sobre herança” soa mais como slogan publicitário do que insight narrativo. Em suma: Hereditário é uma peça de cenografia sombria que se acha profunda por ter imagens perturbadoras; eu, ao menos, vi aí uma conjunção de artifício e mau gosto que não merece empatia nem defesa. Não há um ponto positivo — insisto — e a sensação final é de perda de tempo e de paciência com o modelo atual do cinema de terror que confunde choque com significado.

novembro 29, 2025

Viagem de Risco (2025)

 


Título original: Fight or Flight
Direção: James Madigan
Sinopse: Um mercenário assume a tarefa de eliminar um alvo de alto valor em um voo, mas quando uma enxurrada de assassinos rivais aparece, ele percebe que eles terão que se unir para sobreviver.


Viagem de Risco é daqueles filmes que chegam sem pedir licença e transformam a sala da sua casa num parque de diversões cinematográfico. Há algo nele que pulsa desde os primeiros minutos, uma vibração ousada que mistura adrenalina, humor ácido e um prazer quase infantil de assistir um filme de ação que não teme parecer absurdo. Certamente um dos filmes mais gostosos e divertidos de se assistir que vi em muito tempo — e isso já diz muito para quem acompanha o ritmo atual das produções de ação hollywoodianas, que frequentemente se perdem na própria grandiosidade.

Dirigido por James Madigan, que até então era mais conhecido por sua trajetória sólida como supervisor de efeitos visuais em superproduções, o longa assume com confiança o espírito de um thriller aéreo, mas sem jamais se restringir às convenções do gênero. A trama acompanha um ex-agente interpretado por Josh Hartnett, encarregado de transportar um alvo misterioso, conhecido apenas como Ghost, em um voo transcontinental a bordo de um Airbus A380. A tecnologia, a proporção e o design do avião não são meros detalhes: Madigan transforma o gigante do ar em um labirinto de possibilidades cênicas, funcionando quase como um personagem vivo dentro da narrativa.

Ainda que o filme comece como um thriller mais contido, com toques de espionagem, rapidamente se percebe que a intenção não é seguir por um caminho sério demais. A sensação é de que Madigan flerta com o drama e a tensão apenas para, em seguida, subvertê-los com entusiasmo. Da metade para o fim, o roteiro deliberadamente chuta o balde e se transforma em uma grande celebração de exageros: confrontos coreografados de maneira quase utópica, sequências psicodélicas que brincam com cores e movimentos, e uma quantidade de sangue que lembra diretamente o estilo visual de Quentin Tarantino. Não de maneira imitativa, mas como um tributo escancarado à violência estilizada e catártica que fez escola. A sensação geral é a de estar testemunhando uma espécie de Kill Bill dentro de um avião, com o mesmo senso de humor sarcástico e a mesma liberdade estética.

Entre os elementos mais impressionantes da produção está a decisão de filmar muitas das cenas de luta sem cortes abruptos. As coreografias, desenvolvidas com evidente rigor técnico, ganham impacto justamente porque o espectador é convidado a acompanhá-las de forma contínua, sem a edição fragmentada que costuma mascarar movimentos. Com isso, cada golpe, cada queda, cada reviravolta dentro de um corredor estreito ou de uma cabine luxuosa entrega não só um espetáculo visual, mas também um senso físico de presença. É visceral, é dinâmico e, acima de tudo, é impressionante.

A fotografia de Matt Flannery contribui para esse efeito com luzes e sombras que ampliam a sensação de confinamento, ao mesmo tempo em que brincam com a geometria do avião de maneira engenhosa. A paleta varia entre o frio do aço e o neon de delírios cromáticos que surgem conforme a narrativa mergulha cada vez mais no exagero. A montagem de Ben Mills, mesmo quando opta por sequências mais vertiginosas, mantém a coerência espacial necessária para que o espectador entenda a geografia dos confrontos — algo que muitos filmes de ação contemporâneos simplesmente não conseguem entregar.

Outro elemento que merece destaque é a trilha sonora de Paul Saunderson. Em vez de apostar em músicas facilmente reconhecíveis ou em composições épicas previsíveis, o filme opta por uma seleção de faixas absurdamente aleatórias, que reforçam o aspecto humorístico e o absurdo visual do longa. Esse contraste entre som e imagem lembra imediatamente a irreverência das trilhas clássicas de Tarantino: há um humor involuntário, um charme deslocado que intensifica a experiência. Cada música parece surgir não para reforçar a emoção da cena, mas para contrariá-la — e justamente por isso funciona tão bem.

No centro desse caos planejado está Josh Hartnett, que entrega aqui uma das atuações mais divertidas e afiadas de sua carreira recente. Seu talento natural para o humor ácido reaparece com vigor, lembrando seu desempenho em Xeque-Mate (Lucky Number Slevin, 2006). Hartnett equilibra cinismo, senso de perigo e momentos de fragilidade de um jeito que torna seu personagem não apenas carismático, mas também funcional dentro da lógica exagerada da história. Ele sabe rir de si mesmo, sabe rir do filme, e sabe exatamente até onde pode levar o absurdo sem quebrar a suspensão de descrença do público. É uma performance que transcende o simples “herói de ação” e encontra personalidade dentro do caos.

É verdade que o filme não busca coerência absoluta e nem pretende parecer plausível — e ainda bem. A narrativa abre mão de explicações muito elaboradas, assume atalhos, brinca com clichês e, em alguns momentos, se entrega sem pudor a soluções mirabolantes. Mas tudo isso é parte intencional da brincadeira. Ele não quer ser contido, não quer ser sóbrio, não quer ser realista. Quer ser divertido, surpreendente, estiloso e exagerado — e cumpre essa proposta com uma convicção rara.

Ao final, Viagem de Risco oferece algo que às vezes parece estar desaparecendo do cinema de ação comercial: espontaneidade. Ele não se leva tão a sério quanto poderia, mas é justamente isso que o torna tão prazeroso. É um filme que pulsa, respira e se diverte com seu próprio excesso, sem nunca perder o controle sobre a própria estética.

Quando os créditos sobem, a sensação é clara: poucos filmes recentes entregaram tamanha mistura de energia, humor, violência estilizada e criatividade visual. É entretenimento puro, feito com técnica, personalidade e um sorriso malicioso no canto da boca. Um lembrete poderoso de que o cinema também existe para nos arrancar da rotina e nos jogar em viagens completamente insanas — e deliciosas.

A Mulher na Cabine 10 (2025)

 


Título original: The Woman in Cabin 10
Direção: Simon Stone
Sinopse: A bordo de um iate de luxo a trabalho, uma jornalista vê uma pessoa caindo no mar, mas ninguém acredita. Para descobrir a verdade, ela coloca a própria vida em risco.


Quando peguei o título da nova aposta da Netflix — A Mulher na Cabine 10 — pensei: será que a plataforma finalmente conseguiu combinar boa produção com um thriller eficiente? A resposta, triste e inescapável, é: não. Por mais que o filme tenha elementos técnicos de razoável qualidade — direção competente, fotografia limpa, produção de luxo — seu alicerce narrativo é torto, batido e cansativo.

A premissa, para começar, é o tipo de esquema que há décadas roda por aí: alguém — neste caso a jornalista Laura “Lo” Blacklock — afirma ter visto um crime, acredita ter testemunhado uma mulher sendo jogada ao mar dentro de um iate de luxo. Mas quando ela levanta o alarme, todos confirmam que a cabine “culpada” estava vazia, que nenhum passageiro sumiu, que ela “deve ter imaginado”. A partir daí: ela sozinha contra todo mundo. Pois é. Como pode uma premissa tão batida ainda ser colocada para produção no cinema? É inacreditavelmente comum, ruim. Ruim mesmo. E, pior que isso: destrói até mesmo a boa intenção e produção que cercam o filme. A Netflix cada vez parece se afundar mais e mais em filmes duvidosos — títulos com brilho visual, elenco conhecido, mas sem substância nem frescor.

Tecnicamente, dá para reconhecer alguns pontos: a ambientação do iate — um superiate filmado nas costas inglesas — tenta reproduzir com classe o luxo e o isolamento claustrofóbico necessários ao terror psicológico de alto-mar. A fotografia assina um mar acinzentado, vidro, corrimão cromado, quartos com interiores elegantes: tudo funciona para transmitir uma atmosfera de elegância obscura, de falso conforto prestes a ruir. A montagem eficiente tenta dar ritmo, e a trilha sonora — minimalista nos momentos de tensão — ajuda a construir momentos de angústia. O diretor Simon Stone, com a ajuda de seu time técnico (cinegrafista, editores, cenografia), imprime certo profissionalismo à obra: dá prazer técnico observar a ambientação, o uso das câmeras dentro de quartos apertados, os corredores do iate, o contraste entre festa de luxo e desespero psicológico.

Mas aí — e é aí que o filme se afunda — tudo o que poderia ter validade se esfarela. O enredo não convence. Os personagens não têm densidade. E o principal: a “verdade” que a protagonista sustenta não gera empatia, mas irritação.

No centro disso tudo, a escolha de Keira Knightley para viver Lo Blacklock. Honestamente? A atriz está terrivelmente mal. Há anos que o talento de Knightley me parece inflado, artificial — e aqui alcança níveis surpreendentemente maus. Sua interpretação é risível. Ao invés de transmitir vulnerabilidade, trauma, dúvida e paranoia convincentes, ela adota uma postura histriônica, excessiva, que transforma o que poderia ser suspense psicológico em teatro barato. Sua Laura é mais “histérica insistente” do que “sobrevivente traumatizada”. Inacreditável que alguém a leve a sério como protagonista de um thriller que depende da adesão emocional do espectador a um drama de dúvida.

O filme ainda insiste em colocar Lo numa posição de “jornalista heroica, destemida, dona da verdade”. E talvez aí resida um dos poucos méritos — se podemos chamar de mérito — da película: ela acaba servindo como uma caricatura da arrogância jornalística. Jornalistas que se acham donos da verdade, capazes de jogar a vida de todos ao redor no inferno por causa da pressão de ter “a matéria”, de provar algo a qualquer preço. O longa exagera, claro — e de forma grosseira —, mas faz essa crítica involuntária ao transformar Lo em uma presença irritante, incansável, invasiva, dramática demais. Em diversos momentos da narrativa ficamos torcendo não por sua vitória, mas por sua falência: torcendo para que a maré a leve embora, para que seu “combate pela verdade” a engula de uma vez por todas. A personagem Laura é terrivelmente irritante, e o espectador — pelo menos eu — sente mais alívio do que tensão a cada suspiro da protagonista.

Enquanto isso, o suposto mistério central — a “mulher na cabine 10” — perde qualquer força. As reviravoltas são pouco inteligentes, os “suspeitos” surgem e desaparecem sem peso dramático real, as pistas são adiantadas demais ou deixadas de lado sem consequência. A sensação é de déjà-vu: já vimos isso em dezenas de thrillers baratos, tanto livros quanto filmes, pior ainda quando o roteiro não tenta nem renovar o clichê.

O final, que poderia salvar tudo — com confrontos, revelações, exposição de conspiração — vira uma espécie de “clímax modesto”, previsível, com antagonistas maniqueístas e resolução rasa. Não há subtexto, não há ambiguidade: tudo é branco ou preto, culpa óbvia ou sanidade supostamente inabalável da protagonista. Quando o “grande segredo” se revela, ele não choca, não incomoda, não perturba — apenas conclui. E nos deixa com a impressão de que todo o resto foi tempo perdido.

Em resumo: A Mulher na Cabine 10 convence visualmente — superfície brilhante, cenários de luxo, atmosfera de iate em alto-mar —, mas se afoga por dentro. A construção dramática é frágil, o roteiro previsível, a protagonista irritante, e o suspense fraco. A aposta da Netflix num thriller moderno que revisita o clássico “só eu vi, ninguém acredita em mim” se mostra não apenas preguiçosa, mas até irresponsável do ponto de vista criativo.

Se há algo de valor, é talvez o alerta — consciente ou não — para como a noção de “verdade” e “credibilidade” pode ser usada (e abusada) em narrativas de poder, privilégio e paranoia. Mas esse resquício simbólico é soterrado por tantos defeitos que quase não resta nada depois de terminada a projeção.

Talvez o pior legado disso tudo seja a constatação: não basta ter iate, produção cara, elenco conhecido e “conceito de suspense” para fazer um bom thriller. É preciso sustância — e A Mulher na Cabine 10 brutalmente não tem. No fim, ele despeja toda sua maré de promessas ao mar.

E fica a pergunta: a que ponto a Netflix vai afundar antes de aprender que o brilho da superfície não salva um enredo podre?

novembro 28, 2025

Entre Nós: Uma Dose Extra de Amor (2025)

 


Título original: The Threesome
Direção: Chad Hartigan
Sinopse: Em uma noite, tudo parece dar certo para Connor quando Olivia, sua paixão de longa data, os leva a um ménage à trois com a sedutora Jenny. O encontro dá início a um relacionamento entre Connor e Olivia, e o amor deles cresce rapidamente. O romance logo é destruído quando Jenny reaparece em suas vidas, lançando os três em uma jornada rumo à responsabilidade e à vida adulta.


Entre Nós: Uma Dose Extra de Amor (no original The Threesome), de Chad Hartigan, chega como uma comédia romântica que se presta a desconstruir, com candura e algumas hesitações, aquilo que o cinema costuma chamar de “crescer”: a história acompanha Connor, Olivia e Jenny — personagens interpretados com compromisso pela trinca Zoey Deutch, Jonah Hauer-King e Ruby Cruz — e transforma uma noite impulsiva em um longo exercício sobre consequências, responsabilidade e o jeito desajeitado com que a vida adulta insiste em chegar. A trama, escrita por Ethan Ogilby, não tenta disfarçar sua ambição: partir de um ménage casual para tocar em temas como paternidade inesperada, amadurecimento emocional e a tensão entre desejo e compromisso é arriscado, e Hartigan dirige com uma mistura de leveza e nervo que ora funciona, ora se perde por tentativas de equilibrar comédia e drama de forma demasiadamente literal. O roteiro, curioso por costurar a narrativa em trimestres — uma escolha estrutural que imprime ritmo e contagem regressiva à crescente urgência dos eventos — constrói bons momentos de diálogo e pequenos ganchos emocionais, mas por vezes recai em personagens que parecem mais esboços simpáticos do que seres humanos plenamente contraditórios; ainda assim, há cenas em que a empatia surge com facilidade, sobretudo quando a câmera deixa espaço para as pequenas vergonhas e as falas nervosas de quem tenta, pela primeira vez, assumir responsabilidades reais. 

Tecnicamente o filme faz escolhas coerentes com sua proposta íntima: a fotografia de Sing Howe Yam aposta em enquadramentos próximos e paletas que alternam calor doméstico e frieza urbana, sustentando a sensação de que os personagens navegam constantemente entre conforto e desconforto; há uma estética de proximidade que favorece as performances, e que funciona bem nas cenas de diálogo estendido, embora em alguns momentos Hartigan pareça relutar em abrir o plano quando a cena pede detalhamento — e nisso o filme perde a oportunidade de transformar pequenos gestos em imagens memoráveis. A montagem de Autumn Dea, por sua vez, equilibra bem os saltos temporais e os cortes de humor, imprimindo um compasso que evita que a trama torne-se apenas uma sucessão de incidentes; há, porém, instantes em que a edição opta pelo atalho emocional, buscando resolver tensões com cortes que preferem a economia ao aprofundamento. A trilha de Keegan DeWitt está exatamente onde o filme precisa: discreta quando exige sensibilidade, sorridente nas passagens cômicas, e capaz de sublinhar sem manipular demais. 

As performances são o motor mais confiável da narrativa. Zoey Deutch constrói uma Olivia que mistura dureza e fragilidade com uma naturalidade muitas vezes cativante; há momentos em que sua personagem poderia virar caricatura, mas a atriz encontra sutilezas — gestos, inflexões, pequenos recuos — que a mantêm humana. Jonah Hauer-King dá corpo a Connor com uma ingenuidade simpática que funciona como antídoto para a autopiedade: seu personagem não é totalmente heroico, mas a entrega do ator faz com que sua falha — ou sua imaturidade inicial — não seja fatídica, e sim terreno para transformação. Ruby Cruz, por sua vez, oferece uma Jenny mais contida, cuja força reside na modulação emocional; o filme surpreende ao permitir que parte da carga dramática venha dessa discrição, e a atriz tira proveito disso ao mostrar que presença não precisa ser sinônimo de excessos. O elenco de apoio — entre eles Jaboukie Young-White, Josh Segarra e Julia Sweeney — contribui com notas de alívio cômico e humanidade que ajudam a tornar o universo ao redor do trio mais crível.

Narrativamente, Entre Nós se beneficia quando aceita o desconforto: as melhores sequências são as que deixam a situação permanecer estranha, onde o riso e a vergonha coexistem e o espectador é convidado a manter um pé em cada terreno — o do riso fácil e o do afeto complicado. Em contrapartida, o filme por vezes adere a um moralismo sutil que soa como um recuo: a premissa sexual é tratada com alguma condescendência, e há momentos em que o roteiro parece preferir punir ou redimir em vez de simplesmente observar. Essa ambivalência tonal é o que torna a obra menos coesa — o equilíbrio entre a comédia romântica à moda antiga e o drama contemporâneo é delicado, e nem sempre alcançado. Essa oscilação entre o afeto sincero e escolhas narrativas soa conveniente demais, e é justo dizer que o filme sai-se melhor quando aceita sua própria bagunça emocional do que quando tenta polir às pressas suas arestas. 

No balanço final, Entre Nós: Uma Dose Extra de Amor é um filme que vale sobretudo pelas interpretações e pela honestidade de algumas ideias — a ideia de que a “vida adulta” não chega de uma hora para outra, mas é forjada em encontros desajeitados e decisões improvisadas é tratada com humanidade —, mas que sente falta de uma voz mais firme para transformar suas intenções em algo completamente memorável. Chad Hartigan demonstra sensibilidade para as cenas de intimidade emocional e competência para extrair humor do embaraço, mas por vezes se esquiva de aprofundar a complexidade moral que a premissa exige. Ainda assim, para quem procura uma comédia romântica que não se entrega apenas ao riso fácil, que privilegia o trabalho com atores e que não tem medo de mostrar as consequências — mesmo que às custas de um ritmo irregular —, o filme entrega suficientes momentos de ternura e reflexão para justificar a sessão. É uma obra com falhas visíveis, mas também com achados sinceros: no fim, fica a impressão de uma comédia romântica do século XXI tentando lembrar-se de que o humor pode e deve conviver com as perguntas difíceis sobre amor, responsabilidade e os passos trêmulos de quem aprende a cuidar.

A Astronauta (2025)

 


Título original: The Astronaut
Direção: Jess Varley
Sinopse: Quando uma astronauta faz uma aterrissagem forçada na Terra, um general coloca-a em quarentena para reabilitação e testes. À medida que acontecimentos perturbadores se desenrolam, ela teme que algo extraterrestre a tenha seguido de volta para a Terra.


A Astronauta é um filme que se posiciona entre o suspense claustrofóbico e a fábula de transformação corporal — um híbrido de ficção científica e horror íntimo que tenta, com requintes de técnica e aparato, traduzir para a tela o terror daquilo que nos habita e nos corrói por dentro. A estreia como longa-metragem de Jess Varley revela ambição: roteiro próprio, direção centrada no ponto de vista de sua protagonista e escolhas estéticas que procuram fazer da casa isolada não apenas um cenário, mas um organismo hostil que reage à presença daquela que voltou do espaço. Com Kate Mara no centro, Laurence Fishburne em papel paternal de influência militar, com Gabriel Luna e Ivana Miličević completando o circuito familiar e científico — podemos entender que Varley apostou em intérpretes experientes para dar veracidade emocional às camadas mais fantásticas da trama.

O mérito imediato de A Astronauta está na construção sonora e na oscilação entre silêncio e ruído: silenciosas frequências industriais, ruídos de equipamentos hospitalares e uma mistura de visuais orgânicos que lembram a bioluminescência marinha — inspirou a concepção das criaturas do filme. Essa paisagem sonora é trabalhada como personagem, empurrando a tensão mesmo quando a câmera está imóvel. A direção de som e a partitura — compostas para sublinhar um desconforto visceral em vez de melodias redentoras — funcionam como o motor emocional da narrativa, fazendo o espectador acompanhar o avanço da aflição física da protagonista. 

Visualmente, o filme aposta em uma dicotomia elegante: fotografia de interiores polidos, geometria arquitetônica e luz dura contrastam com detalhes orgânicos e texturas que reaparecem conforme a transformação progride. O diretor de fotografia usa a casa moderna como microcosmo, com planos longos que enfatizam a presença humana diminuta diante de volumes arquitetônicos e enquadramentos que isolam o corpo. Essa escolha formal serve ao propósito temático — a alienação da protagonista em relação ao seu próprio corpo e à família —, mas ao mesmo tempo gera certa frieza estética que, por vezes, diminui a empatia plena necessária para o desfecho emocional. A fotografia e a direção de arte são precisas e muitas vezes belas; o problema é quando a beleza técnica entra em conflito com a necessidade de intensidade dramática. 

Do ponto de vista da construção dramática, Varley sabe dosar o mistério inicial: temos um acidente, uma quarentena, exames em trajes de proteção e a sensação de vigilância constante que transforma a casa em um aquário. Kate Mara lidera com uma contenção que evita melodrama fácil; seus gestos mínimos comunicam dor, confusão e um crescente distanciamento do mundo humano — uma interpretação que equilibra frieza clínica e impulso maternal em momentos precisos. Laurence Fishburne empresta humanidade ao núcleo de autoridade militar, funcionando tanto como catalisador das tensões políticas (o aparato estatal que instrumentaliza o corpo) quanto como figura emocional que tenta proteger, mas acaba por instrumentalizar. Há trabalho de elenco consistente, com cenas familiares funcionando como âncoras afetivas antes que a narrativa as volatilize.

A edição, porém, é um terreno ambivalente: a montagem cria fases muito bem demarcadas — quarentena, isolamento, transgressão corporal — mas esbarra em problemas de ritmo. O filme começa com uma cadência medida e ganha densidade; na metade, contudo, o foco se estreita tanto no micro-horror que o tempo dramático parece estagnar, dependendo de jump-scares e imagens de efeito mais do que de uma progressão psicológica sólida. Já o final acelera na explicação dos acontecimentos, comprimindo reviravoltas que pediriam mais espaço para respirar. Essa escolha deixa uma sensação de descompasso: a construção longa e atmosférica que precede o clímax promete uma resolução igualmente trabalhada, mas acaba optando pela síntese — o que pode frustrar espectadores que esperavam uma revelação mais trabalhada emocionalmente. 

Quanto ao imaginário das criaturas e das transformações corporais, Varley acerta ao evitar o excesso de bobagens tecnológicas: a origem e a natureza do fenômeno mantêm-se parcialmente ambíguas, o que ajuda a preservar o horror metafórico — uma metáfora sobre alienação, perda de identidade e a política do corpo no contexto militar e científico. Ainda assim, a tentativa de dar explicação na reta final passa do enigmático ao expositivo, reduzindo um pouco o mistério. É um filme que ganha quando se entrega ao incômodo sensorial e à imagem forte — as cenas de insetos, a pele que se modifica, os sinais de um corpo que "não pertence" mais — e perde quando tenta amarrar tudo com uma lógica narrativa completa. 

No balanço final, A Astronauta é uma estreia que impressiona mais pelo vocabulário visual e sonoro do que pela coerência dramática perfeita. É cinema de sensações: há vigor na aposta estética, segurança no trabalho de direção de atores e momentos de horror corporal que ficam na retina. Ainda assim, a obra tropeça em escolhas de ritmo e numa conclusão que, por ser demasiadamente apressada, não entrega totalmente o potencial emocional do material. Para quem gosta de ficção científica que funciona como fábula corporal e de filmes de horror intimistas que privilegiam atmosfera sobre explicação, é uma experiência recompensadora; para espectadores que buscam resolução narrativa e profundidade emocional equilibradas do início ao fim, ela pode parecer incompleta.

Em outras palavras: A Astronauta nos leva a um lugar bonito e inquietante — e isso por si só já é mérito —, mas pede, em retorno, uma paciência que nem sempre é recompensada por uma catarse plenamente satisfatória. É um filme que respira e palpita; sua potência está nas imagens e no som, e seu limite está na pressa de explicá-las.